Narrado por: Kaleo
A sala de investigação estava mergulhada em um silêncio pesado, quase um luto, cortado apenas pelo zumbido baixo do ar-condicionado e pelo tilintar irritante e lento do relógio de parede. As pastas abertas sobre a mesa pareciam mapas de um tesouro sombrio, o quadro de cortiça cravado de fotos e os rabiscos das hipóteses em vermelho e preto contribuíam para aquele clima sufocante de um enigma que ainda não fazia sentido. Eu sentia o cheiro característico de café frio, quase azedo, misturado ao de papel úmido e giz de cera, algo que grudava nas narinas e me deixava intoleravelmente inquieto.
Segurei a foto diante dos olhos. O rosto da vítima me fitava de volta, imóvel e distante, como se ainda houvesse um sopro de vida escondido em seus traços. Meu coração acelerava cada vez que eu comparava mentalmente aquela cena com os livros que devorara em noites insones, tentando antecipar a próxima jogada. Era como se o assassino quisesse transformar a morte em uma encenação cruel e calculada.
—Essa foi como a primeira vítima morreu? — perguntei, puxando a foto do quadro e sentindo o olhar de Derek perfurar minhas costas.
Ele sempre parecia desconfiar da minha curiosidade, como se minha empolgação fosse quase uma ameaça ao controle que ele gostava de ter.
—Sim, por quê? Te lembra alguma coisa? — ele respondeu, a voz carregada de impaciência.
Engoli seco, sem desviar os olhos da imagem.
—A vítima levou um tiro bem no peito... mas olha só como ela está arrumada na cama. — minha voz baixou, num misto de fascínio e medo. — Não foi deixada ao acaso. O corpo está cuidadosamente posicionado, coberto até a altura do peito, como se estivesse dormindo. O rosto transmite uma paz enganosa, quase como se fosse uma cena íntima... ou um ritual de despedida.
Derek arqueou as sobrancelhas, curioso apesar de si mesmo.
—Isso quer dizer...?
Minha garganta secou, mas o nome saiu como uma revelação.
— Sidney Sheldon. — completou uma voz firme, feminina, que me fez girar.
Olhei na direção do som. A mulher que acabara de entrar tinha uma postura segura, quase militar, e olhos de um verde-acinzentado que pareciam ler o ambiente em um instante. Os cabelos castanhos, bem cuidados, caíam em ondas pelos ombros. Segurava pastas e fotos como se fossem extensões de si mesma. Meu cérebro, acostumado a classificar perfis rapidamente, registrou a confiança. "Ela sabe o que está fazendo," pensei.
— Muito prazer — ela disse, pousando o material sobre a mesa com um som seco. — Meu nome é Katherine, mas pode me chamar de Kate. Sou da equipe de T.I.
Sorri de canto, ainda impressionado com a sincronia intelectual. Senti meu peito aquecer. Finalmente alguém entendia a linha de raciocínio que eu tentava expor. Não estávamos mais falando apenas de um crime, mas de uma assinatura. Ela tinha me lido como um livro aberto. Antes que eu pudesse responder, ouvi um som seco atrás de nós.
Derek limpava a garganta de propósito, um ruído áspero com aquele tom de autoridade disfarçada de descaso. O ciúme profissional dele era quase tangível.
Sorri de canto, ainda impressionado com a sincronia.
—Você conhece esse livro? — perguntei, curioso.
Kate arqueou uma sobrancelha, quase divertida.
—Claro que conheço. Sheldon tinha um talento raro de transformar luxúria, ambição e poder em armas letais. Essa cena... — ela apontou para a foto da vítima na cama — lembra muito Catherine Alexander, não? A forma quase ritualística de compor a morte.
Senti meu peito aquecer. Finalmente alguém entendia a linha de raciocínio que eu tentava expor.
—Exatamente! — respondi, com empolgação. — Eu sempre admirei a maneira como ele construía assassinos elegantes, frios, mas cheios de símbolos. Ele não deixava nada ao acaso.
Ela me encarou com um sorriso cúmplice.
—E me diga, Kaleo... — ela pronunciou meu nome com naturalidade, como se já fôssemos velhos conhecidos. — Se gosta tanto de Sheldon, deve ter outros favoritos. Quem mais você lê?
Mordi o lábio, pensando rápido.
—Bom... gosto do jeito que Sidney trabalha o psicológico das vítimas e algo parecido encontro em Thomas Harris. Hannibal Lecter, por exemplo, é um personagem que me intriga. Não é só sobre matar, mas sobre criar uma estética da mente.
Kate assentiu, claramente impressionada.
—Interessante. Pouca gente percebe esse detalhe. Então, posso apostar que você não lê só por passatempo. Você tenta entender o padrão, a mente por trás dos crimes.
Meu coração disparou. Ela tinha me lido como um livro aberto.
Antes que eu pudesse responder, ouvi um som seco atrás de nós. Derek limpava a garganta de propósito, com aquele tom de autoridade disfarçada de descaso.
—Já terminaram a feira literária? — perguntou, o olhar cravado em mim primeiro, depois em Kate. — Ou podemos voltar ao assassinato?
A tensão no ar quebrou em segundos. Senti meu rosto corar, e Kate apenas ajeitou as pastas diante dela, assumindo uma postura profissional.
—A propósito... — ela retomou, agora firme. — Trouxe informações sobre a vítima. A legista terminou a identificação.
Aos poucos, a atmosfera voltou ao peso da investigação. Mas o gosto daquela troca rápida sobre livros, o olhar cúmplice de Kate e o incômodo evidente de Derek ficaram grudados em mim como uma marca invisível.
Kate colocou as pastas sobre a mesa, espalhando fotos, relatórios e um envelope plástico transparente. Dentro dele, estavam uma corrente de prata, um crachá e um celular quebrado. Ela ergueu o olhar, firme:
—Trouxe algo que pode interessar. A legista terminou a identificação da vítima. Já sabemos quem ela era.
Meu estômago revirou. Até aquele momento, a mulher sem nome era apenas uma foto, uma cena congelada no tempo. Agora, prestes a ganhar uma identidade, ela se tornava real.
Kate puxou um relatório e começou a explicar, a voz clara e objetiva:
— O nome dela era Mariana Alves, trinta e um anos. Trabalhava como assistente social em uma ONG que atendia mulheres em situação de violência doméstica. Estudou Serviço Social na Universidade de Columbia e era conhecida por ser dedicada, mas discreta. Morava sozinha em um pequeno apartamento no Brooklyn.
Olhei a foto dela no crachá dentro do envelope. Um sorriso tímido, mas cheio de vida. Engoli em seco.
—Ela tinha alguma ligação com a primeira vítima? — perguntei, ainda com a mente fervendo.
Kate balançou a cabeça.
—Nenhuma. Pesquisei todo o círculo social dela. Não há ponto de contato com o outro caso: nem no trabalho, nem nos lugares que frequentava. É como se as duas estivessem em mundos completamente diferentes.
Derek cruzou os braços, o olhar sombrio, mas atento.
—Ou alguém está escolhendo pessoas sem ligação propositalmente, para dificultar a investigação.
Senti um arrepio percorrer minha espinha. O que antes parecia apenas um jogo macabro agora ganhava contornos de algo muito maior: um assassino com método, inspirado em histórias que eu mesmo conhecia.
Peguei a foto da segunda vítima e, em silêncio, prendi-a no quadro de investigação. O som do alfinete atravessando o papel ecoou mais alto do que deveria, como se fosse um prego selando um caixão. Fiquei ali, parado, observando o quadro que já começava a se encher com rostos, detalhes e anotações.
Meus olhos, porém, voltaram para a primeira vítima. Aquela que ainda me perturbava. A mulher arrumada na cama, coberta até o peito, o rosto sereno como quem repousava em um sono eterno. A imagem parecia zombar de mim, como se escondesse algo além do que eu já sabia.
Estendi a mão, puxando a ficha dela para ler com mais calma.
Nome: Helena Montgomery.
Idade: 32 anos.
Profissão: Professora de Educação de Jovens e Adultos.
Origem: família tradicional de Manhattan, herdeira de uma das fortunas mais antigas ligadas ao setor imobiliário.
Pisquei algumas vezes. Não esperava encontrar aquele contraste.
Continuei lendo, quase sem respirar:
Apesar do sobrenome influente, Helena recusara o luxo e a vida cercada de privilégios. Escolhera dedicar-se à educação, não em escolas particulares ou universidades renomadas, mas em um pequeno centro comunitário no Bronx. Lá, trabalhava com jovens à beira da marginalidade — muitos com histórico de pequenos delitos, abandono escolar e vínculos frágeis com a sociedade.
—Interessante... — murmurei, sentindo um aperto no peito.
A ficha trazia relatos de colegas que descreviam Helena como uma mulher doce, firme e implacavelmente justa. Ela acreditava na segunda chance de cada aluno. Havia quem dissesse que ela tinha uma fé inabalável no poder da educação como arma contra a violência.
E ainda assim, estava morta. Arrumada como uma boneca frágil, com uma bala no peito.
Me aproximei mais do quadro, encarando seu rosto congelado na fotografia.
Por que alguém escolheria ela? Não parecia haver conexão direta entre sua vida de altruísmo e o ritual mórbido que a tirou do mundo.
Mas, ao mesmo tempo, a escolha de uma vítima assim não era casual. Havia ironia ali. Talvez até um tipo de mensagem — como se o assassino tivesse prazer em destruir aquilo que era puro, ou em corromper um ideal.
Passei a mão pelo queixo, absorvendo cada detalhe. Helena Montgomery. Professora. Rica, mas indiferente ao dinheiro. Dedicada a salvar jovens que muitos já consideravam perdidos.
A sala de investigação estava mergulhada em um silêncio pesado. O relógio marcava horas que eu já não sabia precisar. Kate e Derek tinham saído havia muito tempo, para resolver algum detalhe burocrático, mas eu permanecera ali, revirando papéis, organizando fotos, anotando pistas em meu caderno como se a qualquer momento fosse encontrar o elo perdido que ligava tudo.
Não percebi quando a tarde se transformou em noite. A janela deixava passar um fiapo de luar que se estendia até o quadro de investigação, iluminando o rosto das vítimas presas ali como fantasmas emoldurados.
Helena Montgomery, a professora, me encarava com serenidade. Aquela serenidade me corroía por dentro.
Passei a mão pelo rosto, sentindo o peso do cansaço nos músculos. Minha mente ardia. Eu precisava encontrar sentido. Precisava provar para mim mesmo que não era apenas mais um corpo em uma lista crescente.
—Você pretende passar a noite inteira aí? — a voz grave soou atrás de mim.
Olhei por cima do ombro e vi Derek encostado à porta, os braços cruzados, a expressão dura como sempre. A luz do corredor desenhava sua silhueta, deixando-o ainda mais imponente.
—Já caiu a noite, Kaleo. Você ficou o dia todo aí dentro. — acrescentou, caminhando até a mesa.
Soltei um suspiro longo e me sentei, exausto. Encostei a cabeça nas mãos por um instante antes de erguer os olhos para ele.
—E isso não te incomoda? — perguntei, minha voz mais frágil do que eu gostaria. — Saber que tem alguém lá fora, matando pessoas inocentes. Dormir sabendo que esse assassino ainda está solto... O que se passa na sua cabeça?
Derek ficou em silêncio por alguns segundos, me observando com aquele olhar clínico que parecia atravessar a pele. Depois se aproximou, puxando uma cadeira e se sentando à minha frente.
Ele inclinou-se para frente, seu perfume amadeirado pairando sutilmente no ar, apoiando os braços na mesa. Sua proximidade, inesperada, me desarmava.
— O que me intriga — disse, a voz firme, baixa, quase um segredo compartilhado — não é o assassino. É você.
Franzi a testa. —Eu?
—Sim. O que me intriga é por que você está aqui.
Senti meu estômago revirar. —Como assim?
Ele inclinou-se para frente, apoiando os braços na mesa.
—Eu sei que você não precisa disso. Dá pra ver. Eu sei ler pessoas, Kaleo. É o que me faz bom no que faço.
Engoli em seco, mas não recuei. Segurei firme o encosto da cadeira e a puxei, sentando-me de frente para ele, os olhos fixos nos dele.
—Então me leia. — desafiei. —Já que você é tão bom nisso.
Um leve sorriso frio curvou os lábios de Derek. Ele aceitou o jogo.
— Tudo bem. — começou, o olhar descendo lentamente, analisando cada detalhe meu com a precisão de um cirurgião. — Pelas roupas que você usa, eu diria que você vem de uma família com dinheiro. Essa camisa... a costura no ombro é impecável, custou, no mínimo, uns trezentos dólares. Não é o tipo de roupa que um policial recém-formado se dá ao luxo de comprar.
Senti o suor frio nas minhas palmas.
— E esse cordão no seu pescoço... — ele inclinou a cabeça, seus olhos castanhos fixos no metal. — Ouro verdadeiro. Não é bijuteria, não é barato. Isso é presente. E presentes assim não são dados sem significado.
Minha respiração começou a falhar. O cordão queimava contra minha pele como se ele tivesse descoberto um segredo que eu jurava manter enterrado, o calor da lembrança subindo à minha face.
—Existem poucos motivos para alguém com dinheiro se meter na polícia. — continuou Derek, implacável. — E quase sempre é porque perdeu alguém. Alguém que você amava muito.
Apertei os punhos.
—Você tinha alguém que se importava... que provavelmente foi tirado de você. E até hoje, isso não foi resolvido. — sua voz baixou, tornando-se mais íntima, mais cruel. — Ou a polícia não conseguiu justiça, ou o culpado nunca pagou como deveria.
Minhas narinas ardiam. Segurei as lágrimas com todas as forças, mas meus olhos já estavam marejados. O peito subia e descia em ondas irregulares, e senti a garganta se fechar.
Derek percebeu. Ele sempre percebia. E, ainda assim, não desviou.
—Eu acertei? — perguntou, quase em um sussurro.
A raiva e a dor colidiram dentro de mim. Eu queria gritar. Queria negar. Mas tudo que consegui foi desviar o olhar, prendendo o choro na garganta.
Juntei os papéis que estavam espalhados sobre a mesa e respirei fundo. O silêncio da sala me sufocava mais do que qualquer palavra não dita. Eu estava cansado, com a cabeça pesada, e a última coisa que queria era prolongar aquele momento. Levantei devagar, empilhei os relatórios de qualquer jeito e, sem olhar muito em volta, soltei um simples:
— Boa noite.
Meus olhos, por um segundo, cruzaram com os de Derek. Ele não disse nada, só me encarou. Não aguentei sustentar aquele olhar, então virei as costas e saí.
Enquanto caminhava pelo corredor, sentia minhas pernas pesadas, como se cada passo fosse mais difícil que o anterior. Eu não sabia se estava chateado, decepcionado ou apenas exausto. Talvez fosse tudo junto. Quando parei diante do elevador, fiquei ali por alguns segundos encarando o painel, perdido nos meus próprios pensamentos.
A porta se abriu com um som metálico, e lá estavam Kate e Maya.
— Que cara é essa, Kaleo? — Kate perguntou, arqueando uma sobrancelha. — Está tudo bem?
Forcei um meio sorriso, tentando disfarçar. — Tudo sim.
Entrei no elevador e fiquei num canto, sem muita energia para conversa. A porta estava quase se fechando quando, de repente, uma mão a segurou com força. Derek.
Meu coração acelerou. Ele estava ofegante, como se tivesse corrido só para me alcançar. Abriu a boca para falar alguma coisa, mas quando percebeu que Maia e Kate estavam ali, pareceu perder a coragem. O constrangimento foi visível. Ele pigarreou e soltou a primeira desculpa que encontrou:
— Eu… esqueci de perguntar… se você queria uma carona, já está tarde.
Olhei para ele sem entender. — Não, Derek. Eu não vou pra casa. Vou parar em algum bar pra tomar uma cerveja depois de um dia como esse.
Ele mordeu o lábio, meio inseguro, e perguntou:
— Quer companhia?
Aquela pergunta me pegou desprevenido. Senti o peso da situação. Respirei fundo e respondi, firme:
— Você é meu chefe. Trabalhamos juntos todos os dias. Acho que não seria o ideal. Boa noite.
Antes que ele pudesse insistir, apertei o botão e as portas começaram a se fechar. O último que vi foi o olhar dele, parado ali, como se tivesse algo preso na garganta.
Encostei na parede fria do elevador e fechei os olhos por alguns segundos, tentando organizar meus pensamentos. O silêncio foi quebrado pela voz suave de Maya:
— Você sabe… nós não somos seus chefes.
Abri os olhos e olhei para as duas, confuso.
— É — completou Kate, com um sorrisinho de canto. — A gente trabalha com você, mas não é nada tão direto quanto com o Derek. Ou seja… a gente pode muito bem tomar uma cerveja com você.
Um riso leve escapou de mim pela primeira vez naquele dia. Balancei a cabeça, rendido. — Vocês não desistem, né?
Elas trocaram um olhar cúmplice e sorriram. E foi assim que, em vez de ir pra casa sozinho remoer tudo, aceitei a companhia delas e seguimos para um bar.
Quando o elevador chegou ao térreo, Maya virou para mim com aquele jeito prático dela:
— Vamos no meu carro. É caminho.
Assenti sem discutir. A noite estava abafada, e o vento que entrou quando saímos do prédio trouxe um certo alívio. Seguimos até o estacionamento, e logo estávamos dentro do carro da Maia, um hatch simples, mas bem cuidado. O rádio tocava baixinho alguma música pop que eu nem prestei atenção. Eu só olhava pela janela, vendo as luzes da cidade passarem rápido, como se minha mente tentasse correr junto para se afastar da confusão do dia.
— Vamos no Laqueza, pode ser? — Kate perguntou do banco da frente, animada.
— Pode — respondi sem pensar muito. Eu só queria uma cerveja gelada e uma pausa.
Chegamos ao bar em poucos minutos. O Laqueza era um daqueles lugares com mesas de madeira gastas, sempre cheias, e um cheiro forte de fritura misturado com chope. Havia risadas altas, música ambiente, e o burburinho do movimento tornava o lugar quase acolhedor. Nos acomodamos em uma mesa no canto, perto da janela, e cada um pediu um chope. Quando os copos chegaram, brindamos sem muita cerimônia.
— A gente merece — disse Maya, erguendo o dela.
— Isso é verdade — completei, dando o primeiro gole. O amargor gelado descendo pela garganta foi quase um abraço depois de um dia longo.
Por alguns instantes ficamos em silêncio, aproveitando a bebida, até que Kate resolveu puxar assunto:
— E aí, Kaleo… como está sendo trabalhar com o Derek?
Rolei os olhos e dei uma risada curta, meio irônica. — Olha… difícil. Essa é a palavra.
Kate riu, Maia também, mas ela logo acrescentou: — Ele é difícil, sim, mas é uma pessoa boa.
A ironia escapou antes que eu pudesse segurar: — Nossa… esse lado bom eu ainda não vi, não.
Elas riram de novo, mas o assunto parecia sério para Maya. — Ele já passou por muita coisa, Kaleo. Mais do que você imagina.
Suspirei, girando o copo entre as mãos. — Todos nós passamos por muita coisa. Nem por isso a gente tem o direito de tratar os outros mal.
O silêncio bateu na mesa por alguns segundos. Eu sabia que tinha soado mais duro do que deveria, mas era o que eu sentia. Derek podia ser o melhor detetive da cidade, mas isso não dava passe livre pra ser frio, seco e arrogante.
— Não é defesa cega — disse Kate, olhando para mim de forma sincera. — Mas, às vezes, ele parece construir um muro para não desmoronar.
Balancei a cabeça, incrédulo. — E nesse muro ele faz questão de trancar todo mundo do lado de fora.
— Ou de proteger — completou Maua, dando outro gole no chope. — Depende do ponto de vista.
Fiquei quieto, apoiado contra o encosto da cadeira, deixando a espuma da bebida descansar na boca. Talvez elas tivessem razão. Talvez não. Eu só sabia que, naquele momento, eu ainda via Derek como um chefe difícil de lidar — e nada além disso.
O tempo foi passando sem que eu percebesse. Entre um chope e outro, os assuntos ficaram cada vez mais aleatórios: histórias de faculdade da Kate, casos bizarros que a Maya já tinha atendido como perita, e eu também deixei escapar umas gafes da academia de polícia. A mesa já não era mais só bebida, estava cheia de batata frita, bolinho de carne e guardanapos amassados.
A gente ria alto, e a sensação de leveza fazia parecer que aquele peso todo do dia tinha evaporado. Eu não lembrava a última vez que tinha gargalhado daquele jeito.
Foi então que Kate, já com as bochechas meio coradas do álcool, me encarou e perguntou:
— Tá, mas me diz uma coisa, Kaleo… você tem namorada? Noiva? Alguém escondido por aí?
Eu ri, balançando a cabeça. Ela não parava de insistir, então me inclinei sobre a mesa, cheguei perto do rosto dela e falei baixinho, como se fosse um segredo de Estado:
— Não conta pra ninguém… mas eu gosto de homem.
Kate arregalou os olhos, e antes que ela dissesse qualquer coisa, Maya estendeu a mão aberta na direção dela.
— Passa. — disse, com um sorriso vitorioso.
— Ai, não acredito… — Kate resmungou, puxando a carteira da bolsa e tirando uma nota. — Cinquenta dólares, tá feliz?
Ela colocou a nota na mão da Maya, que fez questão de erguer como se fosse um troféu. Eu comecei a rir sem entender nada.
— Peraí, peraí… vocês apostaram? — perguntei, tentando conter a gargalhada.
— Claro que sim! — Kate disse, meio rindo, meio fingindo indignação. — Eu jurava que você era hétero. O jeito sério, a postura toda…
— Eu não sei, — Maya entrou no meio, dando de ombros. — Tinha algo no olhar. Eu sabia.
Eu me joguei contra o encosto da cadeira, rindo alto. — Vocês são inacreditáveis. Eu aqui me abrindo, e vocês transformam isso em aposta de bar.
— Relaxa, foi só brincadeira — disse Kate, rindo junto. — Mas olha, obrigada por me fazer perder cinquenta dólares.
Ainda rindo, balancei a cabeça. Depois respirei fundo e, em tom mais sério, acrescentei:
— Só… peço uma coisa pra vocês duas. Não comentem isso com ninguém. Vocês sabem como é. Ser policial já é difícil o suficiente. Ser policial e gay… é outra batalha.
As duas ficaram em silêncio por alguns segundos. Então, Maia encostou a mão na minha e falou com firmeza:
— Segredo guardado.
Kate assentiu. — Entre nós, ninguém vai saber.
Eu respirei aliviado, tomando mais um gole do chope. E pela primeira vez em muito tempo, senti que estava cercado de pessoas em quem podia confiar.