O silêncio era sagrado na capela.
Os bancos de madeira rangiam discretamente sob o peso das famílias bem-vestidas, todas sentadas em reverência. Os hinos haviam cessado. Agora, era o momento do discurso.
O bispo subiu ao púlpito com a serenidade de quem fala em nome de algo maior.
— Irmãos e irmãs — começou ele, abrindo as escrituras diante de si — Deus tem um plano de felicidade para seus filhos. Deus nos ama e quer o melhor para nós. E esse plano divino... esse plano perfeito... tem um centro: a família.
Gabriela abaixou a cabeça, olhando para o encosto do banco à frente. Seus dedos se enroscaram discretamente no vestido florido. Ao lado dela, Solange mantinha os olhos abertos, fixos no bispo, mas com o maxilar tenso.
— Conforme as escrituras, a família é feita por um homem e uma mulher. Essa é a ordem eterna e imutável do Pai Celestial. Mas o inimigo... aquela antiga serpente, sempre encontra um modo de atacar o que é sagrado.
Gabriela sentiu um arrepio que não vinha do ar gelado. Evitou olhar para Solange. Sabia que, se o fizesse, algo em seu rosto desmoronaria — e ela não podia se permitir fraquejar ali, diante de todos.
— E o modo que o inimigo encontrou de destruir o plano de Deus é este: fazer as pessoas acreditarem que a família pode ser construída por dois homens ou duas mulheres. Meus queridos irmãos e irmãs, o movimento gay é uma artimanha de Satanás para confundir os corações e destruir a verdade eterna.
Solange baixou os olhos. Respirou fundo. Sua mãe, sentada ao lado, fez um discreto “amém” com a cabeça.
Gabriela mordeu o lábio. A mente dela havia se desviado — voltado uma semana no tempo, para a quietude do acampamento das moças, no meio das árvores, sob o céu estrelado.
Ela se lembrou da barraca abafada onde havia dormido com Solange. Lembrou-se de como suas mãos se tocaram por acaso ao ajeitarem os sacos de dormir, e como nenhuma das duas afastou a mão.
Gabriela sentiu de novo aquele frio no estômago, aquela antecipação nervosa que crescera em seu peito. Solange havia olhado para ela por alguns segundos — demorados, intensos. Quando seus rostos se aproximaram ... aconteceu ... o primeiro beijo foi hesitante, mas também quente e suave, e as emoções explodiam dentro dela como fogos de artifício.
“Eu... me desculpa”, disse Gabriela, a voz falha.
“Não pede desculpa. Eu também quis”, respondeu Sol.
Os lábios de Solange eram macios, e havia um calor naquele toque que percorreu o corpo de Gabriela como um fio elétrico.
Ela se lembrava de ter fechado os olhos, sentindo algo despertar dentro de si — algo novo, que não cabia nas palavras dos discursos de domingo.
As primeiras carícias foram tímidas.. As pontas dos dedos explorando com curiosidade, viajando pelo corpo de Solange, as sensações que elas mesmas ainda não sabiam nomear.
A masturbação mútua.
Gabriela sentira a pele arrepiar, os pulmões parecerem pequenos demais para conter a respiração. Mais do que desejo, havia um sentimento de descoberta: ela gostava de Solange, mas não apenas como amiga. Mas como mulher. Não era só atração. Era amor.
Naquele instante, dentro da barraca, não havia culpa, apenas a alegria de estar onde queria estar. Era como encontrar uma nota musical que sempre estivera ali, mas que só agora ela conseguia ouvir.
De volta ao presente, no banco da capela, Gabriela apertou levemente os joelhos, tentando conter o calor que ainda lhe subia. Seu coração ainda se confundia entre temor e alegria — mas no fundo, ela sabia: o que sentira era real.
Enquanto o bispo continuava o discurso, Gabriela nem ouvia mais. Ela ainda estava naquela noite sob as estrelas, dentro da barraca fechada, onde o mundo lá fora parecia não existir.
"Se isso é errado, por que parece tão cheio de luz?" Pensou
— Temos que proteger nossas famílias, proteger nossos filhos e filhas desse engodo de Satanás. Não se enganem, irmãos. Amor verdadeiro é o que segue os mandamentos do Senhor – Continuou o Bispo, sua voz ecoava pela capela como um veneno suave
Solange piscou lentamente.
O coração de Gabriela batia forte. Não era raiva. Era uma mistura de dor, vergonha e uma vontade quase física de fugir. Mas fugir pra onde, se até Deus parecia contra o que ela sentia?
"Talvez seja só uma fase."
"Talvez eu precise orar mais."
"Talvez... talvez ela não sinta o mesmo."
Gabriela finalmente arriscou um olhar para o lado. Solange também olhava para ela. Foi só um segundo. Mas ali havia algo que o bispo não podia ver: um amor escondido atrás da dor, um segredo entre duas meninas, duas mulheres, que só queriam existir sem medo.
O bispo continuava falando, mas agora as palavras se tornavam distantes, como se viessem debaixo d’água.
O amém final da reunião sacramental ainda ecoava no salão quando Solange se aproximou de Gabriela no corredor da capela. As duas usavam vestidos discretos, cabelos bem presos, sorrisos suaves — mas os olhos, ah, os olhos diziam mais do que qualquer discurso dominical.
“Ei, Gabi”, disse Solange, com um tom mais doce do que o habitual. “Você quer almoçar lá em casa hoje? “
Gabriela vibrou. O convite, poderia ser simples, comum. Mas vindo de Solange... Era como se lhe tivessem oferecido um pedacinho do céu — não o céu pregado nos discursos da primária, mas um céu íntimo, secreto.
“Quero muito”, respondeu, os olhos brilhando. “Só vou avisar meus pais.”
Ela caminhou quase dançando até onde os pais estavam, e explicou que almoçaria na casa de Solange. Eles consentiram sem hesitar, talvez confiando na reputação irrepreensível da família de Sol. Mas, para Gabriela, aquilo era mais do que um simples almoço. Era estar com Sol. Era ter um momento fora das paredes da igreja.
Na casa de Solange, o almoço foi regado a conversas leves, piadas discretas e trocas de olhares que diziam o que as bocas não ousavam. Gabriela se sentia bem ali. Havia algo no jeito que Sol puxava assunto, como tocava levemente seu braço ao rir, como lhe servia um pedaço a comida, que a fazia sentir-se especial. Era carinho disfarçado de amizade. E ela adorava isso.
Terminado o almoço, os pais de Solange disseram que precisavam ir a uma reunião na Ala. A mãe de Sol deu um beijo na testa dela. “Vocês podem estudar juntas. Nada como as escrituras pra fortalecer o Espírito”, disse, já saindo. Gabriela forçou um sorriso e baixou os olhos.
Assim que a porta se fechou as duas foram para o quarto. Solange foi a primeira a romper o silêncio, com a voz trêmula: “Você sente isso também, meu amor?”
Gabriela sentiu um arrepio quando ouviu Solange mais uma vez chamá-la de “amor”.
Ela tinha medo de se entregar, de ser algo errado perante os olhos de Deus.
Mas aquele olhar... aquele pedido mudo no fundo dos olhos de Solange, fez com que ela se rendesse ao desejo.
Aproximou-se e puxou o vestido dela devagar. Solange levantou os braços, num gesto quase solene. O sutiã era pequeno, de alças finas, e os seios marcavam com firmeza. Gabriela então tirou sua própria roupa. Ficou ali, peito nu, recebendo o olhar quente de Solange.
Não havia como resistir à beleza do corpo de Gabriela, o par de seios durinhos e bem feitos.
Se jogaram para um beijo faminto. Suas línguas se buscaram, molhadas, cruas.
As mãos de Gabriela abriram o sutiã de Sol, com a agilidade de quem sabia o que queria. Jogou-o longe.
Solange desceu os lábios pelo pescoço de Gabriela, sugando, deixando um rastro quente, prendeu o mamilo entre os lábios, girando a língua em movimentos circulares, lentos. Gabriela soltou um gemido baixo, abafado. Os olhos semicerrados, o corpo já se curvando para ela.
Solange alternava os seios com a boca e as mãos. Chupava, lambia, mordiscava, num ato faminto.
Gabriela estava entregue, completamente rendida ao prazer. O jeito como arqueava o corpo, como puxava Solange pelos cabelos, dizia mais que qualquer palavra.
Quando sentiu que o calor já queimava por dentro, Gabriela recuou e tirou a calcinha de uma vez. Ficou ali, nua, sem pressa. Solange olhou seu corpo com fome nos olhos, parando entre suas pernas. A língua dela deslizou instintivamente pelos próprios lábios. Gabriela percebeu. Sorriu. Passou os dedos devagar por sua própria intimidade, provocando — só um toque, só pra mostrar o quanto já estava molhada. Solange corou. Não desviou.
Passou a língua de baixo para cima, num movimento longo, lento. A ponta da língua brincou com o clitóris antes de mergulhar mais fundo. Gabriela soltava gemidos descontrolados, segurando-se como podia. Solange não parava. Lambia, sugava, explorava como quem conhece cada centímetro de um mapa de prazer.
O riso de Gabriela foi ficando mais suave até virar só um sorriso entreaberto, ainda ofegante. Solange a segurava com firmeza, o rosto ainda colado na pele quente da vagina
Gabriela então estendeu a mão, puxando Solange de volta para cima. As bocas se encontraram mais uma vez. O beijo agora era lento, cheio de línguas e suspiros. Solange enfiou as mãos nos cabelos de Gabriela, puxando, trazendo pra mais perto. A outra respondeu colando o corpo inteiro no dela, os seios se tocando, as bocetas molhadas escorregando uma na outra.
— Quero você — sussurrou Solange, com a boca colada no ouvido dela. — Assim, inteira.
Gabriela sentiu o ventre contrair. Tomou Solange pela cintura e a virou contra a parede, com delicadeza, mas com firmeza. A encostou na parede, ergueu uma das pernas dela com cuidado e pressionou o próprio corpo entre as coxas dela.
Fricção. Pele contra pele. Vulva contra vulva. Molhadas, pulsando, deslizando. Os quadris começaram a se mover, primeiro devagar, depois com mais ritmo. Solange gemia perto do ouvido dela, os dedos cravados nas costas de Gabriela. Os seios das duas se amassavam, os mamilos sensíveis roçando e provocando pequenos choques de prazer a cada movimento.
— Assim… — Solange gemeu, jogando a cabeça para trás. — Não para…
Gabriela obedeceu. Movia o quadril com precisão, sentindo o clitóris esfregar contra o dela, sentindo os corpos se encaixarem, cada vez mais. As respirações se misturavam, os gemidos enchiam o quarto. O som da pele molhada, do corpo deslizando. Um ritmo primal. Quase ritualístico.
O orgasmo veio chegando como uma onda — primeiro nas coxas, depois no ventre, depois em todo o corpo. Solange estremeceu, o corpo inteiro tremendo. Gabriela a segurou firme, continuou se movendo até sentir o próprio corpo explodir também, num gemido abafado entre os cabelos de Sol.
Ficaram ali um tempo. Os corpos grudados, os corações disparados
Solange encostou a testa no ombro de Gabriela. Sorriu. Fechou os olhos.
— Eu nunca… — sussurrou. — Nunca me senti assim. Tão… inteira. Tão viva.
Gabriela a abraçou mais forte. Passou os dedos pelas costas dela. Não disse nada. Não precisava. Só ficou ali, sentindo.
Naquele instante, não havia mais culpa. Nem medo. Só desejo, toque e presença.
Ofegantes e suadas.
Gabriela puxou Solange pra dentro do banheiro, ligou o chuveiro. A água quente desceu pelas duas enquanto os corpos se colavam de novo. Beijaram-se novamente. Gabriela agarrou o bumbum firme dela com as duas mãos, apertando, guiando, sentindo. A proximidade era alucinante.
Agora era a sua vez, desceu os beijos, sem pressa. Beijou o pescoço, os seios, passou a língua pela barriga, brincando com a pele molhada. Encostou os lábios na virilha de Solange, lambia o contorno da pele sensível, enquanto a água escorria
A visão da vulva de Solange, lisinha, úmida, toda exposta, fez seu corpo vibrar. Ela aproximou o rosto e deu um beijo bem no centro. Um beijo cheio, quente, molhado. Solange gemeu alto, as mãos tremendo sobre os ombros dela.
Gabriela sorriu de volta, com a boca ainda molhada do gosto dela. E ali, debaixo do chuveiro, com os corpos colados, as pernas trêmulas e o riso solto: não havia mais retorno.
. Ainda sob o chuveiro, que agora já nem importava. A água podia estar fria ou quente — elas já queimavam por dentro.
O banho terminou.
Os pais de Solange voltaram.
Gabriela foi para casa.
Já em casa, Gabriela degustava o jantar morno. Arroz, carne de panela e feijão aguado. A televisão da sala falava baixo sobre a guerra em algum país distante, mas ninguém prestava atenção. A irmã de Gabriela já havia se recolhido, e os pais mastigavam em silêncio.
Gabriela pousou o garfo no prato, hesitando.
— Pai... mãe... posso perguntar uma coisa?
Ambos ergueram os olhos. O pai franziu o cenho, a mãe apenas esperou.
— O que a gente faz... quando sente vontade de pecar?
A pergunta pairou no ar como um cheiro de queimado.
— Como assim? — perguntou o pai, com a voz grave.
— Tipo... vontade de fazer algo que a gente sabe que é errado. Que a Igreja diz que é errado.
A mãe ajeitou a cadeira, endireitando-se.
— A gente ora, Gabriela. A gente jejua. E afasta os maus pensamentos.
— Mas e se... mesmo orando, a vontade não vai embora?
O pai limpou a boca com o guardanapo, respirando fundo.
— O salário do pecado é a morte, minha filha. É o que as escrituras dizem.
— Eu sei... — Gabriela respondeu baixo, quase se arrependendo de ter começado.
— Deus mandou seu próprio Filho pra morrer por nós — completou a mãe. — E às vezes a gente retribui isso com ingratidão. Com egoísmo.
— Mas... e se não for egoísmo? E se for algo que nasce dentro da gente? Algo que não escolhemos?
O pai ficou sério.
— Todos somos tentados, Gabriela. Não é porque algo nasce dentro de nós que é de Deus. O coração humano é enganoso.
Gabriela olhou para o prato, que agora parecia enorme, vazio e frio.
— Mas tem gente que... sente diferente. Que ama diferente. E mesmo assim acredita em Deus.
A mãe soltou um suspiro indignado.
— Esse mundo tá perdido, Gabi. Acha que esse povo “moderno” sabe mais que os profetas? Tudo agora é “amor”, “sentimento”, “liberdade”. Mas é só rebeldia fantasiada.
O pai assentiu, batendo levemente os dedos na mesa.
— E não é porque todo mundo tá fazendo que Deus vai mudar as regras. O certo continua sendo certo, mesmo que ninguém esteja fazendo. E o errado... continua errado, mesmo que todo mundo esteja fazendo.
Gabriela fechou os olhos por um instante. A garganta apertada.
“Se eu disser que sou lésbica, eles não vão entender” - pensou
Ela engoliu a dor com um copo d’água.
— É só curiosidade — mentiu. — Perguntei porque ouvi uma conversa na escola. Só isso.
A mãe relaxou.
— Então fica firme, filha. Você é uma moça tão boa. Vai ser uma grande esposa um dia, vai ter filhos. Deus tem algo lindo pra você.
Gabriela forçou um sorriso.
— Amém.
Terminou o prato em silêncio, enquanto por dentro, uma parte dela desabava. Não por ser quem era — mas por saber que, naquele lar, não haveria espaço para a verdade.
E naquele momento, Gabriela entendeu algo que nunca quis entender:
“Às vezes, o fundo do poço não é solidão. É convivência sem sinceridade.”
Já no seu quarto, se preparando para dormir, o celular de Gabriela vibrou sobre o travesseiro.
Ela viu o nome de Solange brilhar na tela escura: Sol 💫
Hesitou por alguns segundos antes de atender. Estava deitada no escuro, a Bíblia aberta ao lado, as páginas já lidas tantas vezes que pareciam não dizer mais nada.
— Alô? — disse com a voz baixa.
— Oi, Gabi. Tá tudo bem?
Gabriela não respondeu de imediato. Sua voz parecia trancada num lugar muito fundo.
— Tá sim.
Do outro lado, Solange respirou fundo.
— Eu só queria dizer... que tô pensando em você.
— Hm.
— E que... eu te amo. Muito. Eu sei que é difícil. Mas você é especial, Gabi. De verdade.
Gabriela engoliu seco. O coração doía de um jeito estranho — como se estivesse sendo espremido por dentro.
— Não fala isso, Sol. Eu não sou especial.
— É sim.
— Não sou! — explodiu, num sussurro forçado. — Eu sou uma fraca. Uma pecadora. Uma ingrata com tudo que Deus me deu. Meus pais, minha fé, minha vida... e eu ainda assim consigo decepcionar todo mundo.
Silêncio.
— Gabi... você não tá decepcionando ninguém sendo quem é.
— Não. Mas eu tô traindo Deus. E se eu continuar... vou perder tudo. A vida eterna. O templo. Minha família. Você não entende!
A voz de Gabriela quebrou no final. E Solange sentiu um aperto no peito como se alguém tivesse apagado todas as luzes dentro dela.
— Ei, não fala assim. Me escuta. Isso é só um momento ruim, tá? Amanhã a gente se vê, conversa com calma. Você não tá sozinha. Eu prometo que...
— Desculpa — interrompeu Gabriela, com a voz quase inaudível.
— Gabi?
— Eu não sei se vou aguentar.
— Gabriela, pelo amor de Deus, o que você tá dizendo?
A ligação caiu.
Solange tentou ligar de volta. Três vezes. Caixa postal.
A noite passou em claro.
Na manhã seguinte, Solange foi até a casa de Gabriela. Tocou a campainha com o coração disparado.
Foi a irmã de Gabriela quem atendeu, o rosto inchado, os olhos vermelhos.
— Oi, Sol...
— Eu posso falar com a Gabi?
A menina hesitou, mordeu o lábio e respondeu:
— Ela... ela tá no hospital. Foi internada de madrugada. Minha mãe disse que foi um "surto espiritual". Mas... eu vi os remédios. Ela tentou...
A voz falhou.
Solange sentiu o mundo girar. O chão virou um eco sem som.
Tentou falar, mas só conseguiu sussurrar:
— Onde ela tá?
Ao atravessar as portas de vidro — que se abriram com um sibilo metálico, quase hostil — Sol foi engolida pelo corredor longo e mal iluminado do Hospital. As luzes fluorescentes zumbiam sobre sua cabeça, piscando de tempos em tempos, lançando sombras nas paredes frias, revestidas de azulejos.
No balcão da recepção, uma enfermeira com olhos cansados olhou para ela.
— Gabriela... Santos? — a voz de Sol saiu trêmula.
A mulher hesitou por um segundo. Depois se levantou.
— Você é da família?
— Não... sou amiga. Melhor amiga.
A enfermeira abaixou os olhos.
— Me espera aqui um minuto, tá?
Solange sentiu o mundo girar devagar, como se o tempo tivesse ficado mais espesso. O relógio na parede marcava 08:13 da manhã.
A enfermeira voltou acompanhada de um homem de jaleco branco. Ele parecia jovem demais para ser médico, mas o olhar dele era de alguém que já tinha dito aquilo muitas vezes antes.
— Você é Solange?
Ela assentiu.
— Gabriela chegou aqui de madrugada. A equipe fez tudo o que podia... mas ela não resistiu.
O mundo de Solange desabou sem som.
Ela não gritou.
Não caiu.
Só ficou ali. Parada.
— Ela... morreu?
O médico apenas abaixou a cabeça.
Solange levou as mãos ao rosto, como se quisesse impedir o mundo de entrar. As lágrimas vieram quentes, rápidas, como se não houvesse tempo para contê-las.
— Ela estava tão triste — sussurrou. — Mas ninguém via.
— A dor dela era muito profunda — disse o médico, com cuidado. — Sinto muito.
Solange não respondeu.
— Eu posso... ver ela?
A enfermeira hesitou, depois assentiu. Levou Solange por um corredor até uma sala fria.
Atrás de uma porta marcada com números descascados, estava sua amiga, seu Amor.
O corpo de Gabriela jazia sobre a maca, coberto até os ombros. O rosto pálido — mas tranquilo. Como se finalmente estivesse em paz.
Solange se aproximou devagar.
— Gabi...
A voz quebrou.
— Eu devia ter vindo ontem. Devia ter batido na sua porta. Devia ter gritado que você não tava sozinha. Que te amar não era pecado. Que você... era luz. Mesmo no fundo.
Ela segurou a mão fria de Gabriela e a encostou no rosto.
— Eles podem ter te feito acreditar que você não era digna.
Mas você era. Você é. Sempre foi.
Chorou ali, em silêncio. O amor inteiro preso no peito. Tarde demais para ser ouvido. Mas ainda assim verdadeiro.
O fundo do poço não era só tristeza. Era ausência.
Era o eco do que não foi dito, do que foi sufocado em nome de uma fé que esqueceu o amor.
E naquele silêncio, Solange prometeu: Gabriela não seria esquecida.
O quarto de Solange estava escuro havia dias.
As cortinas permaneciam fechadas. A luz do celular vinha apenas para confirmar a passagem das horas. Nenhuma notificação. Nenhum “bom dia”. Apenas o nome de Gabriela ainda salvo nos favoritos.
Lá fora, a mãe chamava para o almoço. O pai tentava agir como se tudo fosse voltar ao normal. Mas Solange não respondia. Não tinha forças nem pra dizer que não queria.
Ela dormia em ciclos curtos, acordando com o rosto molhado. Às vezes sem lembrar se tinha chorado dormindo ou acordada. O travesseiro já não tinha cheiro de sabão, só de ausência.
A Bíblia continuava na cabeceira. Mas ela não abria mais.
O hino "Sou um Filho de Deus" ecoava em sua mente como uma ironia cruel.
Filhos de Deus não deviam morrer por amarem.
Filhos de Deus não deviam se sentir lixo.
Filhos de Deus não deviam... querer sumir.
Ela se perguntava se alguém na ala sabia. Se o bispo já havia falado.
Se os jovens ainda comentavam.
Se os pais de Gabriela culpavam o “pecado”, ou só o silêncio.
Solange pensava em tudo. E não pensava em nada.
A comida na bandeja trazida pela mãe ficava intocada. Os dias passavam borrados. No espelho, o rosto dela murchava — como uma flor sem luz.
Ela não lia mais, não orava, não escrevia.
Só existia.
Ou melhor: só resistia.
Uma tarde, abriu o celular.
Releu a última mensagem de Gabriela:
"Desculpa. Me perdoa se eu não for forte o suficiente."
"Eu te amo. E isso foi a coisa mais certa da minha vida."
Solange abraçou o aparelho contra o peito. Ficou assim por horas.
Não chorou. Nem gritou.
A dor era mais funda que o choro.
No fundo do poço, Solange descobriu que a dor não tem som. Só peso.
E que, às vezes, sobreviver parece mais castigo do que mil infernos.
Solange estava no quarto, deitada de bruços na cama, o olhar perdido no teto manchado pelo tempo.
Do corredor, a voz baixa dos pais chegava abafada, mas clara o suficiente para seu coração apertar.
— Acho que a Sol tá precisando de ajuda... — disse a mãe, hesitante. — Um psicólogo. Alguém que possa conversar com ela.
Um silêncio breve, pesado.
— O maior psicólogo que existe é Jesus, e é pra ele que a gente tem que pedir ajuda — respondeu o pai, firme, quase dogmático. — Com oração e jejum, ela vai sair dessa.
— Mas e se não sair? E se ela continuar assim? — a mãe insistiu, a voz trêmula.
— A gente não pode vacilar. A fé tem que ser o nosso escudo. Psicólogo é tudo depravado, eles estimulam os jovens à luxuria e ao homossexualismo, são agentes do inimigo. Se a Sol se entregar a isso, vai ser pior.
Solange sentiu um nó no estômago. Era como se suas lágrimas fossem invisíveis para eles, e sua dor só uma prova para sua falta de fé.
— Eu só queria que alguém me escutasse... — pensou ela, em silêncio, sentindo o quarto fechar ainda mais.
No fundo do poço, até a esperança parece uma prece sem resposta.
E a alma grita por um ouvido que não julgue, por um abraço que não condene.
Um leve toque na porta.
Solange levantou a cabeça, surpresa. Havia quase uma semana que ninguém tinha vindo falar com ela.
— Pode entrar — disse, com a voz baixa e sem muita esperança.
A porta se abriu devagar. Uma mulher entrou, com um sorriso gentil e um olhar acolhedor.
— Oi, Solange. Meu nome é Clara. Estou aqui para ajudar.
Solange sentiu um nó na garganta.
— Você pode... voltar no tempo? Trazer a Gabriela de volta? — perguntou, tentando não chorar.
Clara respirou fundo, com tristeza.
— Infelizmente, não posso. Não tenho esse poder.
Solange fechou os olhos e, com voz quase inaudível, respondeu:
— Então não pode ajudar em nada. Não tem motivo para eu viver.
Clara se aproximou devagar, com respeito.
— Eu não posso trazer sua amiga de volta. Mas você pode encontrar um motivo para continuar, lutando para que outras pessoas não passem pelo que você passou. Para que ninguém mais se sinta sozinho, culpado ou rejeitado.
Solange permaneceu em silêncio, a frase ecoando na sua mente como uma semente plantada em terra árida.
Dias depois
A porta do quarto se abriu pela primeira vez em dias.
Solange saiu lentamente para o corredor, os passos incertos, mas decididos.
Com o tempo, ela chegou até a sala. Depois, aos poucos, encontrou coragem para passar pelo jardim.
Finalmente, um dia, cruzou o portão de casa e respirou o ar do mundo lá fora.
Seus pais acreditavam ser um milagre — fruto das orações e do jejum.
Mas a verdade era outra.
Solange carregava uma chama acesa pela memória de Gabriela, uma missão silenciosa: lutar para que ninguém mais fosse esmagado pelo peso da culpa e do medo.
No fundo do poço, a luz às vezes vem da dor transformada em propósito.
E mesmo que o mundo não veja, ela brilha.
Solange se desfiliou oficialmente da igreja numa manhã de sol tímido, o peso que a oprimia começava a se desfazer, mesmo que devagar.
Conheceu Luana, numa roda de amigos que não conhecia antes, onde o amor não precisava ser escondido ou disfarçado.
Luana tinha um sorriso aberto, e um jeito doce de acolher. Era a primeira vez que Sol sentia o toque de outra mulher sem sentir o nó da culpa apertando o peito.
Era um toque de liberdade.
No abraço de Luana, Sol descobriu que podia ser inteira, sem medo.
Os dias seguintes foram descobertas e risos, confidências e sonhos compartilhados.
Uma noite, depois de um beijo longo e sereno, Sol sentiu algo — uma presença suave, um sussurro no coração.
Era Gabriela.
Não em carne, mas em espírito.
Como se dissesse:
"Eu te amo. E você não está sozinha."
Sol fechou os olhos e sussurrou, com a voz embargada:
— Nunca vou esquecer você, Gabi. Nem você, nem todos que sofreram e sofrem por amor, por serem quem são... em nome de um deus que, no fundo, esqueceu que o amor é o que salva.
Luana segurou sua mão, sentindo a emoção.
Sol sorriu com lágrimas nos olhos.
— Mas eu vou lutar. Pela gente. Por todos nós.
E assim, no meio da dor, nasceu a esperança — não a esperança de um milagre divino, mas a certeza de que o amor verdadeiro pode romper qualquer prisão.
No fundo do poço, Sol encontrou a luz que nunca morreu.
E decidiu brilhar por todos aqueles que ainda vivem na sombra.
NOTA DO AUTOR: Frequentei uma igreja cristã fundamentalista até os 22 anos. As personagens deste conto são fictícias, mas infelizmente suas histórias refletem dezenas, centenas, talvez milhares de casos reais.
Sou heterossexual. Ainda assim, carrego marcas emocionais profundas causadas pelos anos de doutrinação e culpa. Precisei de ajuda profissional para me reconstruir por dentro — e consegui. Mas me pergunto, com dor verdadeira: se foi difícil para mim, que era "aceito", como deve ter sido — e ainda é — para os jovens LGBTs que crescem ouvindo que Deus os rejeita?
A depressão e o suicídio entre jovens LGBTs em contextos religiosos como o que vivi é uma realidade brutal. A fé não deveria ferir. Nenhuma orientação sexual é pecado. O preconceito, sim.
Deixarei links nos comentários para quem quiser se informar melhor sobre esse tema.