Comprei uma esteira para começar a correr sem precisar sair de casa, mas acabei descobrindo que meu rendimento cai drasticamente quando não estou perdida no horizonte que a minha capital me proporciona. Ainda assim, ela conseguiu quebrar o galho porque o meu objetivo objetivo era apenas gastar energia e ocupar o tempo.
Quando saí do banho, Júlia estava distraída trabalhando e eu encostei para dar um beijinho. Deitei com a cabeça apoiada na coxa dela e ficamos ali conversando e trocando carinho.
— Eu deveria lidar melhor com o tédio — Falei.
— Não se cobra tanto, amor — Juh disse, enquanto digitava. Mas logo voltou a mão para dentro do meu cabelo.
— Vai demorar muito aí? — Perguntei, após algum tempo, subindo a mão por sua coxa.
— Vou! — Juh exclamou, rindo e deu um tapinha na minha mão.
— Acho que não vou atrapalhar... — Disse-lhe e comecei a ir em sua direção.
— Amor, não! — Júlia falou, apontando para mim e com um riso no rosto.
— Tá com medo, é? — Perguntei, antes de tentar morder o dedo indicador apontado.
— Não, quero terminar o que eu estou fazendo — Ela me respondeu.
— Medo de mim ou de você mesma? — Sussurrei próximo ao seu ouvido.
— Amor... — Juh disse, vacilante.
Eu comecei a rir e tomei seu pescoço em beijos.
— Já te perturbei, agora deixa eu abusar Kaká — Falei levantando.
— Isso mesmo, vai embora daqui — Ela disse, convencida.
— Doooooidinha para eu continuar você estava — Brinquei, passando pela porta.
Kaique estava de frente para o celular fazendo um polichinelo todo errado, já cheguei na sala rindo.
— Que dança da chuva é essa, homi? — Zoei.
— Tenho que mandar para o professor, mas sou todo desengonçado — Ele lamentou, se jogando no sofá com os braços cruzados.
— Dá para melhorar um pouquinho... — Falei, sinalizando com o dedo.
— Todo mundo já mandou, menos eu — Meu filho me disse.
— Vem, vou gravar para você — O chamei.
Acredito que fizemos uns dez vídeos de um segundo porque eu simplesmente não estava dando conta dax falta de coordenação motora de Kaique e estragava asax gravações com a minha risada.
— Você não faz isso no futebol e no jiu-jitsu, não? — Questionei.
— Sou ruim de polichinelo — Ele respondeu.
— Não, meu filho, isso eu já notei... — Eu ia dizendo quando Kaká me interrompeu.
— Mãe!!! — Exclamou bravo e subiu as escadas.
— Pera aê, rapaz — Eu tentei chama-lo, mas ainda rindo, logo não funcionou.
Quando cheguei no quarto ele já tinha me dedurado e Juh apenas balançou a cabeça negativamente enquanto prendia o riso entre os lábios. Ela dividia a atenção entre o nosso filho em seus braços e o notebook, que agora estava ao seu lado.
— Bora, agora vou te ajudar, lindo — Falei, passando a mão nas costas dele.
Kaká fez um bico e virou o rosto para o outro lado.
— Não, a senhora tá me abusando — Ele disparou.
— Eu vou parar, desculpa... — Disse-lhe, tentando parecer mais séria.
— Vai lá, Kaká, daqui a pouco o prof não aceita mais — Juh me ajudou.
— Vem, vamos deixar a mamãe trabalhar — Falei, carregando-o de cabeça para baixo.
Isso divertiu o guri que não conseguiu manter-se bravo comigo ao encarar nosso reflexo no espelho.
— Vamos treinar um pouco antes e depois fazemos o vídeo — Sugeri, quando chegamos na sala e ele assentiu.
— Primeiro faz somente o movimento dos membros inferiores devagar — Instruí e ele inciou.
— Quando junta tudo que dá errado — Kaká constatou.
— Uma coisa de cada vez, tenta pôr os braços agora — Falei.
Devagar até que funcionava, mas quando pegava o ritmo normal... Os movimentos ficavam confusos.
Fiz a gravação dele fazendo bem devagarinho mesmo.
— Vamos enviar assim? — Ele perguntou, visivelmente triste.
— Não, nós vamos editar a rapidez em um aplicativo — Falei, rindo e meu filho adorou a ideia.
Deixei de uma maneira natural e juntei com os vidros que ele havia feito antes, de flexão e abdominal.
— Vou mostrar para a mamãe para ver de ela descobre — Ele disse, animado.
E foi correndo.
Cheguei lá e ele estava contando tudo o que fizemos.
— Nem dá para perceber — Juh observou.
— É, parece que fiz fui certinho!!! — Kaique exclamou.
— Você faz tudo certinho, só que no tempo errado... — Comentei.
O nosso dia levinho e descontraído virou de cabeça para baixo quando, pela tarde, Júlia recebeu uma ligação de Léo. A voz dele era pura preocupação, nos avisou que estava chegando na cidade com Jamile porque seus pais estavam para serem internados, em um estado não muito animador.
A ligação caiu e, quando Júlia se preparava para retornar, a mãe dela ligou para contar a mesma notícia. Foi nesse instante que o desespero começou a tomar conta da família Oliver. Juh prontamente quis ir até onde estavam, mas eu sabia que todos já estavam a caminho de Salvador, onde receberiam tratamento. A preocupação dela transbordava, principalmente com Léo e Jamile, e a insegurança aumentava à medida que pensava na gravidade da situação.
Por mais que desejasse ajudar, a presença dela naquele momento não mudaria o quadro, apenas a colocaria em risco. Ainda assim, era impossível ignorar a ansiedade que crescia diante de tantas incertezas. Ela temia que seus primos não chegassem a tempo de ter algum tipo de comunicação com seus tios e se perguntava se eles precisariam de respiradores. Era um dos piores períodos para estar contaminado... Até quem nunca se importou com números sabia que a taxa de ocupação de leitos permanecia constantemente acima do aceitável. O suporte ventilatório, apesar das entregas do Ministério da Saúde, era disputado como um recurso raro.
As informações que recebemos indicavam que a necessidade poderia ser real, mas não havia como confirmar. Eu preferi não alimentar o medo e me concentrar no presente, no que estava ao nosso alcance naquele momento. Os tios dela já estavam a caminho do hospital e os primos chegariam em breve.
Léo, Jamile e uma moça que até então eu não conhecia, chegaram de madrugada e não tiveram a oportunidade de encontrar com os enfermos.
Para ser sincera, eu achei positivo... Nesses momentos onde vemos quem amamos em situações difíceis envolvendo a saúde, somos capazes de inúmeras coisas, que nem sempre nos dão o melhor resultado.
Kaique não conseguia dormir, então eu falei rapidinho com os irmãos e deixei a gatinha conversando com eles para ficar com meu filhote no quarto.
Ele estava bem agitado com as notícias que ouvia e partilhando do mesmo medo: não ver os tios novamente.
Só que Kaique com sono... Fica com um humor terrível!
O guri estava agoniado, rolando na cama e batucando os dedos no lençol. Ele perguntava quantos dias os tios ficariam internados, se o tratamento demorava muito, se respirador machucava. Cada vez que eu respondia com calma, ele retrucava com mais uma possibilidade que deixava tudo ainda mais complicado de explicar. Su sentia meu filho implorando por certezas que eu não tinha como oferecer.
Quando tentei mudar o assunto, ele pegou o celular e abriu o calendário, passando os dedos rápido pelas semanas, como se pudesse prever um prazo seguro para tudo acabar bem. Eu o observava em silêncio, e foi ali, no meio daquela busca ansiosa por datas, que ele congelou a tela e arregalou os olhos.
— Não acredito! — Ele exclamou.
— O que foi??? — Perguntei, sem entender.
— Eu e Mih vamos passar o aniversário separados??????? — Kaká questionou, sentando na cama.
O que antes era inquietação virou um choro frustrado, cheio de raiva, soluços e palavras desconexas que eu não consegui compreender.
— Meu amor, o aniversário de vocês é no final do mês que vem... Depois pensamos nisso... — Falei, fazendo-o deitar novamente.
Mas eu sabia que não era somente isso a causa do seu descontrole...
O sono, o estresse acumulado, o medo da morte, a saudade da irmã... Tudo se misturou em uma confusão de sentimentos que ele não sabia organizar.
Pedi que Kaká respirasse comigo, que deixasse a mente descansar um pouco. Disse que, por mais que parecesse impossível agora, as coisas poderiam melhorar, e que ele precisava estar descansado para enfrentar o que viesse. No início, ele relutou, porém aos poucos se deixou levar e o anti finalmente mais calmo.
Ficamos deitados lado a lado, e eu continuei passando a mão em seus cabelos até achar que meu filho estava dormindo.
Quando eu já me preparava para levantar ele abriu os olhos.
— Mãe, quando Mih casar ela vai amar mais a nova família do que a mim? — Kaká perguntou baixinho.
Eu respirei tão fundo nesse momento...
— É porque eu a ama muito mesmo e seu que ela também me ama e não queria que isso mudasse — Kaique se apressou em se justificar, quando percebeu que a minha paciência estava por um fio.
— Filhinho lindo do meu coração — Comecei em tom irônico e ele sorriu sutilmente — Não apresse a coisas, por favor... Isso não faz bem... Te garanto que sua irmã nunca vai deixar de te amar do jeito que te ama... Agora, pra favor, vá dormir... Eu estou aqui para não te deixar sozinho em um momento que eu sei que é difícil, mas estou cansada... Você consegue cooperar? — Finalizei, perguntando e ele acenou positivamente com a cabeça.
Dei um beijo em sua testa e levantei-me.
— Só mais uma pergunta — Kaique pediu.
— Te concedo, use bem — Disse-lhe, após alguns segundos encarando aqueles olhinhos lindos.
— A senhora ama mais a mamãe do que meus tios, não é? — Ele perguntou e eu ri.
— Usou mal a sua chance... Você sabe a resposta... — Falei.
— Ama... — Ele mesmo completou.
— Se você quiser, mais tarde, eu desenvolvo melhor. Agora eu só peço que você durma — Pedi encarecidamente.
— Certo, vou dormir para chegar logo mais tarde — Ele falou, me fazendo rir novamente.
Já se aproximava às 4h da manhã quando saí do quarto dele e fui para sala onde estavam Juh, Léo, Jamile e Bruna, a namorada de Jamile.
Como Léo e Jamile não tinham uma boa relação com os pais, isso também pesava naquele momento. Eles estavam bem abalados.
Juh me chamou na cozinha e eu fui até ela.
— Amor, conversa com eles, por favor — A gatinha pediu, em um sussurro.
— Oxe, conversar o quê? — Questionei, sem entender.
— Eles precisam conversar com você!!! — Ela exclamou, baixinho.
— Eu não faço ideia do que você quer que eu diga... — Falei.
— Você sabe dizer as coisas certas, eles estão se culpando. Vai lá, eu vou chamar Bruna aqui para me ajudar em um lanche — Júlia falou, sem me dar opção de recuar.
— Antes eu ficasse lá com Kaká e seus questionamentos — Lamentei no ombro dela que me deu um leve empurrão em direção a sala.
~ Eu tenho a sensação que Juh acredita firmemente, que eu resolveria uma guerra mundial no papo 🤣
E assim fizemos... Primeiro os ouvi, depois tivemos um longo diálogo. Eles carregavam aquela sensação sufocante de “agora é tarde demais para qualquer coisa”. Reforcei, o tempo todo, que o que importava era estarem ali, presentes, ajudando naquele momento, e que isso, no fim, era o mais bonito no amor. Porque, apesar das discordâncias, o vínculo e o cuidado falavam mais alto, tão intensos que a emoção deles era impossível de disfarçar.
Lanchamos e fomos deitar, até tentamos dormir entretanto não foi possível... Mas ficando quietinhas, apenas com um carinho aqui e outro ali.
Enquanto a gente preparava o café da manhã, conversamos sobre Kaká e como íamos ajudá-lo a trabalhar toda aquela ansiedade. Inclusive, por causa desse papo, adiamos a minha conversa com ele em relação ao amor. Também fofocamos sobre a namorada de Jamile e eu dei uma risadinha com uma péssima piada que surgiu na minhas cabeça.
— Do que tá rindo? — Júlia quis saber.
— Vai por mim, é melhor eu não dizer porque você não vai gostar — Falei, ainda rindo.
— Agora eu quero saber — Ela falou, se aproximando.
— É coisa do meu horrível senso de humor, eu nem penso só veio de maneira involuntária na mente — Adverti.
— Conta! — Juh exclamou, cruzando os braços atrás do meu pescoço.
Eu definitivamente não queria dizer.
— Gatinha, por favor... — Pedi, meio sem graça e dei um selinho nela.
— Vai ter que me dizer — Juh insistiu.
— Se seus tios... — Comecei a dizer, mas me interrompi — Tem certeza? — Questionei, apertando os olhos.
— Tenho! — Ela disse, convicta.
— Se seus tios não morreram de Covid, morrem vendo Jamile grudada no cangote da muié — Falei, vacilante.
— Credoooooo! — Juh exclamou, soltando o meu pescoço.
— Falei que era péssimo... Esquece, esquece — Pedi, estalando os dedos na frente do rosto dela.
— Vira essa boca para lá — Juh falou, mas eu vi que ela agora controlava um riso que surgia.
— Ih, você tá rindo! — Falei, apontando para a boca dela.
— Não estou! — Disse-me e me bateu com um pano de prato.
— Tá sim, não vou para o inferno sozinha — Brinquei.
Não tinha mais como Júlia negar, ela riu!
O boletim médico chegou em partes e a tarde, primeiro pelo telefone. Léo atendeu e, assim que colocou no viva-voz. Confirmou-se que os pais estavam na UTI, recebendo suporte ventilatório, com quadro considerado grave. Não havia previsão de melhora ou piora imediata, mas a equipe reforçou que as próximas 48 horas seriam decisivas.
Pouco depois, o e-mail chegou. Dessa vez, as palavras eram mais técnicas e detalhadas.
Senti que existia uma grande expectativa no que eu diria após ler porque todos olhavam para mim. E não havia nada tão animador para ser falado, era aquilo mesmo que nos passaram pra ligação.
— Eles estão lutando pela vida e tudo que pode ser feito está sendo executado. Vamos torcer para que eles melhorem logo, porque é uma probabilidade... Sei que no momento é mais propício nos inclinarmos a pensar no pior, mas dá para acreditar na melhora deles e nós vamos fazer isso — Falei, com toda a convicção que eu consegui.
— Vamos! — Juh garantiu, abraçando os primos.
No quarto dia, a ligação tão aguardada finalmente veio. Nos informaram que, apesar da fraqueza, os dois haviam apresentado melhora suficiente para deixar a UTI e seguir a recuperação no quarto.
E essa já era uma vitória importante!
No mesmo dia, com autorização e auxílio da equipe, foi possível fazer uma chamada de vídeo. A tela do celular tremia nas mãos de Léo, e Jamile respirava fundo, depois ela nos explicou que estava com medo da reação deles ao vê-los... Também poderia ser algo negativo, devido ao histórico.
Mas graças a Deus não foi!
Foi uma ligação carregada de emoção. Embora visivelmente abatidos, estavam igualmente felizes, e eu arriscaria dizer que mais da metade dessa felicidade vinha apenas do fato de terem os filhos presentes naquele momento.
Tudo parecia bem, até que no dia seguinte...
Cof, cof 😷
Continua... 🦠