NOTA: Escrevi este conto inicialmente para publicar em meu perfil no Wattpad (@Sativo_) — inclusive, fica o convite para quem utiliza o app —, e só depois decidi trazê-lo para cá também.
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— SINOPSE: Em plena Era Vargas, Riccardo Stefano, filho de anarquistas italianos, sobrevive como garoto de programa enquanto milita secretamente num partido revolucionário perseguido pelo regime. Dividido entre o sexo como arma e o amor verdadeiro por Dora, uma tipógrafa idealista, O Italiano - como é chamado dentro do partido - mergulha num jogo perigoso de desejo, espionagem e sacrifício. Em meio à repressão, traições e escolhas impossíveis, ele arriscará tudo por uma revolução que talvez nunca veja triunfar.
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★ INTRODUÇÃO
Riccardo Stefano nasceu em meio a sussurros de conspiração e o aroma pungente de tinta de panfletos clandestinos. Seu pai, Matteo Stefano, tipógrafo e agitador anarquista nas vielas sombrias de Gênova, era um dos muitos que, desde o alvorecer do regime, se recusaram a baixar os olhos para os camisas-negras de Mussolini. Cercado por operários e estudantes com o rosto sujo da luta, todos dispostos a sacrificar suas vidas por uma causa, Matteo acabaria por ser uma vítima dessa mesma luta e perdeu sua vida.
Numa manhã fatídica, a OVRA, a polícia política do regime fascista, levou Matteo, enquanto Stefano ainda dormia em seus sonhos infantis. Sua mãe, Lucia, tentava confortá-lo com a promessa de um retorno breve, assegurando que o marido fora levado "só para responder algumas perguntas". Contudo, uma semana depois, o corpo foi encontrado jogado ao abandono no canal, atado como uma marionete quebrada, com um cravo vermelho martelando seu paletó como uma ironia cruel. Naquele momento, Stefano não apenas perdeu um pai, mas também parte de sua inocência infantil, um pedaço da luz que ainda iluminava suas jornadas.
Nesse mesmo período, o destino trouxe Giulia Mancini para sua vida. Filha de um professor marxista, esse homem já marcado pela repressão, a jovem esgueirava-se nos fundos de um convento abandonado, onde juntos brincavam de esconder palavras proibidas entre risadas nervosas. Stefano, já carregando em seus olhos uma mistura de tristeza e revolta, encontrou em Giulia, com seus cabelos de cobre e um sorriso que desmentia as durezas da vida, o primeiro toque de doçura.
Já eram adolescentes na última vez em que se encontraram. Era um dia chuvoso e a atmosfera estava carregada de despedidas. Giulia havia recebido a ordem: a família partiria naquela madrugada para algum lugar seguro - França, talvez, ou Argentina. Àquela altura, ela e Stefano já haviam saboreado algumas libertinagens, porém ainda conservavam o frescor da inocência: beijos tímidos, toques desajeitados, mãos intrépidas explorando o outro.
Foi no porão escuro de um casarão abandonado, entre barris de vinho e murmúrios de vento, que o primeiro e único ato de sexo entre eles se desenrolou como um segredo eterno. Seus corpos se encontraram como se o mundo ao redor fosse desvanecer naquele instante, em um amor tecido de suspiros breves e pele arrepiada. Giulia, com os cabelos soltos e o vestido colado pela maresia, pronunciava o nome dele como se estivesse a pedir perdão ao tempo. Stefano a apertava pela cintura, delicado, como quem pressente a iminência da perda. Sem promessas, sem palavras que buscassem a eternidade, eles se reconheceram em um momento de pura autenticidade: órfãos de certezas e famintos por futuro. Quando ela partiu, restou-lhe o eco da solidão.
No ano seguinte, chegou a vez da família de Stefano partir. Embarcaram para o Brasil - uma terra que chamavam de "terra de trabalho", onde, diziam, até os analfabetos tinham chance de recomeçar. Junto a ele, sua mãe, um tio e um primo, atravessaram oceanos com o auxílio de camaradas brasileiros que ainda acreditavam na internacionalização da revolução. Desembarcaram no porto de Santos com seus nomes italianizados nos registros da alfândega e a memória de Matteo gravada como uma cicatriz em tudo que faziam. Dentro das malas, apenas roupas e documentos, mas em seus peitos, levavam a raiva, a dor e uma chama que nunca se apagaria.
Por um bom tempo, viveram no bairro do Brás, em meio a operários, costureiras e exilados da pobreza. Ali, Stefano se desenvolveu em um mundo de dialetos cruzados, greves frustradas e ideias que ressurgiam nas noites de debate acalorado. No correr de um ano e meio, as separações começaram: o tio e o primo se mudaram para Recife, unindo-se a uma célula de um Partido Revolucionário da vanguarda, enquanto sua mãe, buscando refúgio, se casava novamente na Paraíba.
Stefano foi o único a permanecer em São Paulo, não por desejo próprio, mas por influência do tio, que o fez ser recrutado pela célula local do mesmo Partido Revolucionário. Foi a partir daí que, o menino que amou cedo e viu partir as esperanças ainda mais cedo, passou a ser conhecido apenas como O Italiano.
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★ CAPÍTULO 1
Riccardo Stefano, aos vinte e tantos anos, auge da juventude, não era apenas o filho de um mártir. Seu rosto ainda jovem ocultava a alma velha de quem via o mundo em ruínas e ousava reconstruí-lo com as próprias mãos. Na sede improvisada do Partido Revolucionário — um refúgio forçado à clandestinidade, assim como outros partidos de esquerda, no tumultuado período da Era Vargas — os dias se confundiam entre reuniões abafadas, a roda de mimeógrafos e palavras incendiárias. Nesse cenário, conhecido entre os camaradas como "O Italiano", Stefano se destacava com uma seriedade desmedida — falava pouco, mas cada palavra parecia carregar o peso de discursos inteiros.
Foi em meio a esse ambiente vibrante que começou a se dar conta de que a revolução exigia mais que palavras: precisava de sacrifícios íntimos. O Italiano, apesar de sua boa aparência que lhe rendera empregos um pouco melhores que os de seus amigos operários e camponeses, descobriu que também era desejado por aqueles que o cercavam. Incentivado pelas circunstâncias, começou a aceitar propostas que envolviam o uso de seu corpo. O primeiro trago desse novo mundo veio com o casal de patrões da casa onde sua mãe havia trabalhado por um tempo. A senhora, com olhos serpenteantes e um olhar de madame entediada, propositalmente o observava. O marido, um diplomata aposentado, ofereceu livros e dinheiro em troca de "companhia gentil". Assim, numa confortável cama de um lar pequeno-burguês, o jovem encontrou-se como o terceiro — e principal — elemento. Embora tenha sentido um misto de prazer e angústia, compreendeu que seu corpo era uma moeda valiosa para o Partido, permitindo-lhe ajudar a financiar panfletos, apoiar presos e alimentar famílias.
Com o tempo, novos encontros surgiram. O Italiano tornou-se, aos poucos, o amante desejado de homens e mulheres com recursos — esposas carentes de políticos, empresários e figuras do alto escalão. Sempre mantinha uma frieza que calculava tudo em termos de utilidade revolucionária. Nenhum prazer, apenas o necessário. O líder da célula, Baltazar, admirava sua dedicação ao Partido e à causa; mesmo desconfiando da origem do dinheiro, nunca questionou o jovem, confiando nele como se fosse um filho.
Baltazar, desertor do exército e um jornalista caçado pela censura, era um ideólogo de primeira. Ele foi quem ensinou o Italiano a escrever com punhos, e não com dedos. Sempre com o sorriso travesso, falava coisas cômicas enquanto cuspia vinho barato, mas também oferecia conselhos sábios. Tornaram-se cúmplices, apesar das farpas que trocavam. Baltazar ria da seriedade do jovem, chamando-o de "monge vermelho". Stefano apenas escutava em silêncio, absorvendo cada sarcasmo como doutrina.
Foi com Dora, porém, que o mundo dele realmente tremeu.
Conheceu-a na tipografia clandestina do Brás, onde digitava com mãos de bailarina e um olhar que ameaçava tempestades. Dora, filha de operários e nascida entre greves e sopas ralas, fazia da máquina de escrever seu instrumento de luta. Quando ela o olhou pela primeira vez, seu sorriso, um leve levantar do canto da boca, parecia prometer toda uma revolução. Stefano reagiu desviado, mas ficou marcado. Ele contou sobre seu pai, também tipógrafo, e ela sentiu um misto de tristeza e inspiração.
No segundo encontro, Dora lhe trouxe algumas frases datilografadas, suas palavras carregadas de um fervor que ele nunca havia conhecido.
"Se não puder amar, que me matem".
"Revolução é o amor que se tornou ação".
— É do Maiakovski — disse ela, a faísca nos olhos ainda tão presente — Mas copiei só pra você.
Stefano compreendeu, naquele instante em que lia as frases, que Dora possuía tudo o que ele sempre admirou em uma mulher: uma beleza cativante, uma inteligência afiada e uma atitude destemida, como se cada aspecto dela fosse uma declaração de amor à vida em sua essência mais vibrante.
Nos dias que se seguiram, trocaram olhares e silêncios cúmplices, enquanto encontros secretos e os beijos se tornavam arrebatadores, imersos no cheiro intenso de tinta. Certo dia, ficaram até mais tarde entre papéis, com as paredes manchadas de mofo reverberando esperanças. A luz fraca da lamparina projetava sombras em seus rostos quando, em um ato de audácia, Dora retirou a blusa. O Italiano encarou aquele torso nu e o volume discreto dos seios dela como se estivesse contemplando um incêndio: medo e fascínio entrelaçados.
Seus corpos se encontraram como se se reconhecessem de antes, numa espécie de reencontro atemporal. O calor dela emanava urgência, tão intenso quanto às causas que os moviam. Não havia pressa; cada movimento era carregado de um afeto denso, uma paixão militante. Ele a segurava com firmeza pelos quadris, como se estivesse sustentando algo sagrado sobre ele; ela o montava com uma ternura lúcida e feroz, como se dissesse: "sim, nós podemos amar e foder mesmo em tempos como estes".
Depois, enlaçaram-se entre panfletos, os corpos suados pressionando-se contra o chão frio da oficina, como se quisessem se fundir em um só ser. Deixavam escapar sussurros de prazer. Stefano desejou nunca mais sair de dentro dela. O gemido baixinho de Dora ecoava no ar abafado.
— Agora você é meu camarada em todas as frentes — sussurrou ela, seu tom divertido enredado em uma seriedade cortês.
O romance furtivo dos dois já durava mais de um mês quando o dilema se instalou no coração de Stefano. A chama ardente e terna por Dora puxava-o para uma ideia de felicidade possível. Mas, como sempre, a vida tinha outros planos. Uma nova proposta surgiu, desta vez da Dona Carmela Ferraz, uma mulher elegante, com seus cinquenta e poucos anos, modos firmes e um olhar que se tornara indiferente ao tempo. Esposa de Álvaro Ferraz, um poderoso chefe de polícia do governo, Dona Carmela ofereceu a Stefano não apenas dinheiro, mas proteção, sigilo e até uma casa para encontros seguros. Ouvira rumores de que ele poderia ser o "companheiro perfeito" em diversos consensos íntimos e, por isso, o solicitara com certa urgência.
Naquela noite, Stefano deitou-se em seu quarto, o teto mofado se tornando um céu em sua mente. O cheiro fresco de Dora ainda permanecia em sua pele. Lembrou-se das conversas, dos sorrisos trocados, do amor em meio ao caos. Olhando o teto degradado, ponderou:
Pensou em Dora. Pensou em recusar. Pensou na causa.
E aceitou!
[CONTINUA...]