Parte 23: “E O Vento Vai Levando Tudo Embora”.
Após sair de casa, os primeiros dias no hotel pareceram uma névoa. Celo acordava cedo, dormia tarde, com os olhos sempre cansados e a mente em turbilhão. O quarto era limpo, funcional, mas impessoal demais. Nada ali tinha a ver com ele. A cama de casal parecia grande demais para um homem só, e o silêncio era ensurdecedor. Depois de três noites mal dormidas e um incômodo constante no peito, ele percebeu que aquele não podia ser seu novo lar. Precisava de um lugar para chamar de seu, ainda que fosse provisório, ainda que doesse chamá-lo de “lar”.
Em menos de uma semana, encontrou um apartamento pequeno, de um quarto, num prédio discreto e tranquilo. Era tudo que ele queria: praticidade, solidão e algum controle sobre sua nova rotina. Contratou uma faxineira, comprou o mínimo necessário, e levou poucas roupas e pertences. O essencial. Como se o excesso, pudesse lembrá-lo demais do que havia deixado para trás.
Mergulhou fundo no trabalho. As horas se estendiam mais do que o normal nos projetos em execução. Celo se agarrava ao expediente profissional como quem tenta se agarrar a algo firme em meio à correnteza. Era ali, entre reuniões virtuais, planilhas e códigos, que ele sentia algum respiro. Que conseguia calar, mesmo que não completamente, as perguntas que martelavam sua mente.
“Será que eu fiz certo? Será que abandonei o amor da minha vida por orgulho? Será que ela ainda pensa em mim?”.
As respostas nunca vinham. E quando a noite chegava, a solidão pesava ainda mais. As paredes nuas do apartamento ecoavam o vazio. Celo comia pouco, dormia menos. Tentava assistir a filmes, tocar e ouvir música, mas tudo parecia carregar alguma memória de Mari. Até o silêncio tinha o rosto dela.
Tomava um demorado banho antes de se deitar, mexia no celular como quem procura algo que sabe que não está lá. Pensava em mandar mensagem, mas travava. Ele havia tomado uma decisão. Uma dura, amarga e solitária decisão, e precisava ser fiel a ela, pelo menos por enquanto.
Era o início de uma nova fase. Uma que ele nunca imaginou viver e, para a qual não se sentia preparado. Mas estava ali. Respirando. Um dia de cada vez.
Nos dias seguintes, Celo começou a notar o telefone tocar com mais frequência. Números conhecidos. Chamadas da filha, sempre à noite, quando o silêncio do apartamento parecia gritar mais alto. Ela falava com uma mistura de preocupação e doçura. Não perguntava diretamente, mas deixava nas entrelinhas que sabia do que havia acontecido.
— Pai … a mamãe está estranha. Quieta demais. Dorme o dia inteiro, depois acorda e fica andando pela casa como se tivesse se perdido dentro dela … — A voz da filha vinha embargada, como quem tentava ser forte para não desabar.
Celo fechava os olhos, sentado no sofá, a cabeça apoiada na parede.
— Filha … isso não é um assunto seu. Eu sei que é difícil, mas você não tem que carregar esse peso. Sua mãe e eu … somos adultos. A gente vai resolver do nosso jeito, tá bom?
— Resolver? — Ela insistia, quase em um sussurro. — Mas vocês … se separaram, pai. Isso era mesmo necessário?
Ele engoliu seco, forçando a voz a sair firme.
— E mesmo assim, não deixa de ser entre nós dois. Cuida da sua mãe, como eu sei que você já está fazendo. E cuida de você também, tá? Isso vai passar.
Em outro dia, foi o filho quem ligou. A voz mais seca, direta. Típica dele. Mas havia tensão também.
— Pai, a gente precisa conversar. Olha … minha formatura tá chegando. E sinceramente, eu tô preocupado com o que vai acontecer. Com o clima, com vocês dois. Acha mesmo que dá pra fingir que tá tudo bem? Ainda não entendo, não acredito que vocês estão passando por isso. Não entra na minha cabeça.
Celo fechou os olhos por um instante. O orgulho do filho sempre fora sua alegria. Um garoto focado, determinado. Mas agora, sentia que estava cobrando uma explicação que ele ainda não tinha, nem tinha para si mesmo.
— Filho, eu entendo sua preocupação. Mas não é justo jogar isso sobre você. Sua formatura é um momento especial, único. Conquista sua. Não permita que nada, nem mesmo essa situação entre sua mãe e eu, tire isso de você. Foque em você agora. O resto … deixa com a gente.
— Mas pai …
— Chega, tá? — A voz de Celo subiu um pouco, firme. — Eu continuo sendo seu pai. E agora, mais do que nunca, você precisa confiar em mim. Mesmo que não entenda tudo. Eu te amo, filho. E vou estar na sua formatura. Só … me dá esse tempo.
O silêncio do outro lado foi breve, mas pesado. Então, o filho respondeu, num tom mais baixo:
— Tá bom, mas não demora muito, pai. A gente sente a sua falta.
Celo encerrou a chamada com um nó na garganta. Ficou olhando o celular na palma da mão por alguns segundos, como se esperasse que ele dissesse algo mais. Mas tudo o que encontrou foi o próprio reflexo, cansado e cheio de dúvidas, na tela apagada.
Os dias se arrastavam como páginas de um livro que ele não queria continuar lendo. Saber que Mari estava sofrendo lhe corroía o peito. Não porque ainda duvidasse da decisão que tomou, mas pela forma como tudo aconteceu. Pela dor que deixou para trás. Pela ausência que agora, mesmo cercado de tarefas e projetos, insistia em se fazer presente.
A culpa era uma sombra discreta, mas constante. O impedia de buscar alívio em novas companhias, o afastava de convites para happy hours, encontros, jantares. Sempre havia uma desculpa para não ir. Sempre um motivo para voltar direto ao silencioso apartamento.
Mas, naquele dia comum de meio de semana, em meio à maratona de reuniões no centro da cidade, aceitou almoçar com um cliente antigo num restaurante tradicional, discreto, daqueles que serviam comida caseira e ofereciam um refúgio breve da correria urbana. A conversa fluía sem muito entusiasmo, mais por obrigação do que por interesse genuíno, até que, num movimento automático, Celo ergueu os olhos ... e parou.
Do outro lado do salão: Anna.
Ela também o viu. E por um segundo que pareceu muito mais longo, os olhares se prenderam. Nada foi dito, mas tudo foi sentido: surpresa, lembrança, talvez até culpa mútua. Anna sorriu, com um aceno quase imperceptível, e voltou a se concentrar na pessoa à sua frente. Celo desviou o olhar, inquieto.
Minutos depois, quando o cliente foi ao toalete, Anna aproveitou a brecha. Se levantou com elegância, atravessou o pequeno salão e parou ao lado da mesa de Celo.
— Posso? — Anna disse, com o mesmo sorriso sereno, mas os olhos revelando algo mais.
Celo assentiu, ainda meio que pego de surpresa.
— Claro.
E ali estavam, frente a frente, depois de tudo. A cidade lá fora seguia no seu ritmo apressado, mas por um instante, tudo pareceu parar de novo.
— É verdade então? — Anna perguntou sem rodeios, apoiando as mãos na cadeira à sua frente. — Você saiu de casa?
— Faz algumas semanas. — Celo assentiu, seus olhos nos dela, firmes, mas sem agressividade.
Anna hesitou por um segundo, o semblante se suavizando, como se algo dentro dela estivesse prestes a ceder.
— Celo, eu … eu sinto muito. Por tudo. Eu deveria ter percebido. Ter recuado. Às vezes penso que se eu e Paul …
— Anna … — Ele a interrompeu com firmeza, mas sem elevar a voz. — … Você não tem culpa de nada. Nem você, nem o Paul, nem ninguém.
Ela piscou, surpresa. Celo respirou fundo e continuou:
— Eu passei um bom tempo jogando essa culpa pra todo mundo. Paul, o ambiente ... Chris, Fabi, Cora, até o Giba. Mas a verdade? A verdade é que eu me coloquei numa posição pra qual eu não estava preparado. Me iludi, acreditando que eu era mais evoluído, mais maduro, mais ... mente aberta. Só que eu não era. E quando a conta chegou, eu já tinha machucado quem eu mais amava. O maior culpado disso tudo ... sou eu mesmo.
Anna o encarava, em silêncio. A expressão, antes tensa, agora misturava tristeza, respeito e algo mais — uma faísca quase imperceptível, mas viva. Celo desviou o olhar por um instante, incomodado com a honestidade que acabara de despejar.
O cliente do Celo retornou à mesa, puxando a cadeira com um ruído alto demais.
— Desculpe interromper … — Disse Anna, recuando um passo, mas mantendo o olhar firme. — … A gente pode conversar com mais calma outro dia?
Celo hesitou por um segundo. Aquele encontro já era estranho o suficiente. Mas algo nele, talvez curiosidade, talvez necessidade, o fez responder:
— Pode ser. Me avisa.
Ela sorriu, genuinamente feliz.
— Vou avisar. Até logo, Celo.
— Até mais, Anna.
Ela se afastou com elegância, voltando para a própria mesa. Celo acompanhou com os olhos por um momento antes de se virar de volta para o cliente.
— Amiga sua? — O homem perguntou, olhando descaradamente na direção de Anna. — Bonita demais ... e que presença, hein?
Celo forçou um sorriso.
— É. Ela é tudo isso mesmo.
Mas por dentro, se remoía. Não pelo elogio, e sim pelo tom. Pela vulgaridade disfarçada de cortesia. E pela irritação que sentiu, inesperada, com o modo como o outro homem olhou para Anna. Como se aquilo não dissesse nada, mas, ao mesmo, dissesse tudo.
Os dias seguintes se arrastaram com a mesma cadência silenciosa e exaustiva. O apartamento pequeno, escolhido por praticidade, começava a parecer uma cela. Celo acordava cedo, se jogava no trabalho com afinco, mas à noite, a solidão sussurrava nas paredes brancas, cada vez mais alto. Tentava preencher o vazio com tarefas, planilhas, vídeos aleatórios, mas nenhuma distração o mantinha distante o suficiente.
Mari surgia em seus pensamentos com uma frequência dolorosa. Às vezes nos pequenos gestos, como quando esquecia de comprar algo no mercado e pensava em como ela teria lembrado. Outras, de maneira abrupta, o cheiro de um perfume em alguém na rua, uma música tocando ao fundo em algum lugar.
E então, Anna. Desde o almoço no centro, ela aparecia em sua mente com uma frequência incômoda. Uma faísca. Um olhar. A forma como ela o escutou. Desde então, Paul havia ligado algumas vezes. Mandado mensagens. Todas cordiais, mas carregadas de um subtexto evidente: "Precisamos conversar". Celo lia cada uma e apagava a tela logo em seguida. Não sabia o que dizer, nem o que ouvir. Não estava pronto para mergulhar de novo naquela dor.
Foi numa dessas noites silenciosas, encarando o teto, que resolveu responder uma das antigas mensagens de Vicente. O amigo liberal de longas e francas conversas, alguém que sempre o tratara sem julgamentos.
"E aí, sumido. Como tá essa vida de recém-solteiro?".
Celo digitou e apagou algumas vezes antes de enviar:
"Meio merda, pra ser honesto".
A resposta veio rápida.
"Então é hora de dar um jeito nisso. Tem uma festa acontecendo esse fim de semana. Gente bacana, vibe boa. Vai tirar esse peso todo das suas costas. Vem com a mente aberta, como da primeira vez".
Celo hesitou. Não queria parecer carente. Mas talvez estivesse. O convite foi se repetindo, em tom cada vez mais insistente, quase cúmplice. Vicente sabia como provocar.
"Você precisa viver, meu amigo. Nem que seja só por uma noite".
E naquela noite, cercado por garrafas vazias de água mineral e um silêncio que fazia eco, Celo pegou o celular e respondeu:
"Me manda o endereço".
Talvez fosse isso. Uma chance para se divertir. Ou pelo menos, para esquecer — nem que fosse por algumas horas — a culpa, os rostos e as vozes que ainda o acompanhavam em cada esquina da própria memória.
O endereço enviado por Vicente levava a uma casa discreta, num bairro residencial, fachada comum para quem passasse rápido. Mas bastou atravessar o portão e seguir o caminho até os fundos, iluminado por luzes âmbar, para Celo perceber que não havia nada de comum ali.
O jardim era amplo, decorado com bom gosto: sofás baixos, almofadas coloridas espalhadas pelo gramado, lanternas penduradas nas árvores e uma playlist envolvente de MPB moderna misturada com um groove eletrônico leve. O cheiro de incenso misturava-se com o perfume das convidadas, e o burburinho era animado, entre risadas e taças tilintando.
Vicente o encontrou assim que ele entrou, vestindo uma camisa branca aberta até o peito, pulseiras no braço e aquele sorriso fácil de quem nasceu para socializar.
— Olha quem resolveu sair da caverna! — Exclamou, abraçando Celo com força. — Chegou na hora certa. Já tá rolando vinho, papo cabeça e gente bonita com sede de vida.
Celo sorriu, ainda tímido, e aceitou a taça que o amigo lhe entregou.
— Vai com calma. Só quero ver, observar ...
— Observar é ótimo, desde que não vire um hábito eterno. — Respondeu Vicente, já conduzindo-o pelo jardim como se fosse um guia de museu.
Durante a noite, Vicente o apresentou a pelo menos três casais e quatro mulheres solteiras. Todas interessantes, de perfis diversos. Teve a advogada que adorava meditação e quase arrastou Celo para a roda de dança; a tatuadora com um humor afiado que tentou convencê-lo a fazer uma tatuagem de “liberdade”; e a engenheira, Rebeca, que não parava de sorrir enquanto ouvia Celo contar sobre seu trabalho.
— Você tem um charme sereno ... misterioso. — Ela disse, encostando o ombro no dele num momento espontâneo. — Isso é quase perigoso.
— É só cara de cansado mesmo. — Celo respondeu, meio sem graça, arrancando risos dela.
Vicente, de longe, observava tudo como um mestre Jedi. De tempos em tempos, se aproximava, fazia um comentário ou jogava uma piada.
— Sabe o que você precisa, Celo? Uma boa dose de “não tô nem aí”. Tá levando a vida a sério demais.
— É que ela tem cobrado caro. — Retrucou Celo, meio sério.
— Tudo bem. Mas você foi honesto. Se separou com respeito, não enganou ninguém. Agora é hora de lembrar quem você é sem a dor. A vida não vai esperar você cicatrizar completamente pra te dar novas oportunidades.
Apesar de não ceder a nenhum avanço, sempre respeitoso, com um sorriso e um “obrigado, mas hoje não”, Celo se permitia, aos poucos, rir, conversar, e até se sentar no chão de almofadas para ouvir uma história absurda de um casal sobre uma viagem psicodélica ao Jalapão.
— Tinha uma onça de chapéu, juro! — Dizia o homem, arrancando gargalhadas da roda.
Em um momento, Vicente puxou Celo para o canto do bar improvisado, pegou duas doses de tequila e entregou uma a ele.
— Sei que você ainda tá digerindo o fim, irmão. Mas deixa eu te falar uma coisa: às vezes, viver é a melhor forma de honrar o que passou. Você não traiu, não mentiu. Você só ... foi honesto com a sua dor. Agora, seja honesto com sua vontade de recomeçar. Nem que seja aos poucos.
Celo olhou a dose, pensou em Mari, pensou até mesmo em Anna ... depois pensou em si mesmo. E sorriu um sorriso tímido, de canto de boca.
— Aos poucos ... — Murmurou, brindando com Vicente.
A noite ainda renderia risos, histórias e talvez alguma pontinha de desejo represado. Mas Celo sentiu que estava presente. Que talvez, entre a culpa e a saudade, ainda existisse espaço para algo novo. Nem que fosse só por uma noite leve como aquela.
A festa avançava com suavidade, como uma trilha sonora que não impõe ritmo, mas embala os sentidos. Celo havia se afastado do grupo maior e estava sentado próximo ao bar improvisado, observando as luzes dançarem nos copos e a fumaça de um narguilé se dissolver no ar. Foi quando Rebeca se aproximou novamente, duas taças de vinho nas mãos.
Ela chamava atenção com naturalidade, sem esforço. Rebeca era uma mulher de beleza firme, com traços marcantes e um olhar atento que parecia ler mais do que mostrava. A pele dourada pelo sol contrastava com os cabelos castanhos escuros, presos num coque desalinhado que deixava escapar algumas mechas pela nuca. Seus olhos, de um verde suave, traziam uma calma quase hipnótica.
Ela vestia um vestido preto de alças finas que moldava suas curvas com discrição e elegância. O tecido leve realçava o movimento do corpo e deixava as costas quase nuas, revelando também parte das pernas sempre que ela caminhava com aquela leveza que misturava confiança e charme. Era uma sensualidade sutil, embutida nos detalhes.
— Pensei que pudesse estar com sede de algo mais leve — disse, oferecendo-lhe uma das taças com um sorriso tranquilo, os olhos faiscando sob a iluminação baixa.
Celo aceitou, tocando levemente os dedos dela. — Obrigado ... pela bebida e pela companhia.
— Você fala como quem ainda tá negociando com o universo se deve ou não relaxar. — Ela brincou, sentando-se ao lado dele.
Ele riu, abrindo espaço para ela.
— É que o universo e eu andamos meio que em conflito ultimamente. Ainda não sei se estamos na mesma sintonia.
Rebeca o encarou surpresa, divertida.
— Engraçado ... você não parece em conflito. Parece só ... cauteloso. E eu entendo isso. Acho bonito, até.
— Bonito? — Celo estranhou.
— Homens que sabem o que querem, mas também sabem esperar. Isso não é fraqueza, é maturidade. — Ela tomou um gole do vinho, depois o olhou direto nos olhos. — Mas às vezes, Celo ... a gente precisa deixar de analisar e só viver. Nem que seja por uma noite.
As palavras dela bateram forte, como se ecoassem as de Vicente minutos antes. “Você foi honesto ... agora seja honesto com sua vontade de recomeçar”.
Ele não respondeu de imediato. Apenas a olhou, como quem tentava decifrar se aquele desejo era fuga ou impulso. Mas o olhar de Rebeca era sereno, não havia pressa, só presença. Ele ergueu a taça num brinde tímido.
— Então ... por uma noite leve.
Ela sorriu, e o sorriso dela parecia aquecer o ar entre eles.
Depois de mais alguns minutos de conversa sobre arquitetura urbana, viagens adiadas e playlists favoritas, Rebeca se levantou e estendeu a mão.
— Vem. Não aceito um “não” dessa vez. A música tá boa demais pra deixar passar.
Era “Você me Vira a Cabeça”, na voz de Alcione, remixada com uma batida lounge. Celo hesitou, mas segurou a mão dela. Foram para a parte central do jardim, onde alguns casais dançavam despretensiosamente. A dança foi lenta, quase estática. Mais olhares do que passos. Mais respirações sincronizadas do que movimentos.
Rebeca se aproximou, de leve, até que seus corpos estavam próximos o suficiente para que ele sentisse o perfume suave que ela usava. As mãos dele repousaram com cuidado na cintura dela. E ela, sem pedir permissão, colou os lábios nos dele.
O beijo foi firme e calmo. Um beijo de gente que já passou por dores, mas que ainda acredita no sabor do presente. Não foi voraz, foi íntimo. Um convite sutil para que ele deixasse de lado os pesos do passado, mesmo que por poucas horas. Celo aceitou.
Ainda dançavam, corpos colados, sorrisos mais frouxos, quando ela sussurrou:
— Se quiser parar, é só dizer.
— Se eu quisesse ... — Ele começou, mas não completou. Apenas a beijou de novo, com mais intensidade.
Naquele instante, o mundo lá fora parecia ter se calado. Só restava a música, o calor da pele e a sensação de que, talvez, ele pudesse, sim, viver alguma coisa nova. Mesmo que sem promessas. Mesmo que sem certezas.
Aquela noite, enfim, começava a esquentar.
Rebeca afastou os lábios apenas o suficiente para encará-lo. O olhar dela era firme, decidido e, ao mesmo tempo, provocante. Sem dizer mais nada, segurou a mão de Celo com firmeza e começou a puxá-lo pela casa, serpenteando entre os grupos de pessoas, pelos corredores iluminados por luzes baixas.
Ele a seguiu, em silêncio, como quem é guiado por algo maior do que a vontade. Era instinto. Desejo cru.
Passaram por uma porta semiaberta e entraram rapidamente no pequeno banheiro do andar de cima. Rebeca encostou a porta com o pé, trancando-a com um estalo seco, sem perder o contato visual.
Naquele local, no silêncio abafado e entre quatro paredes estreitas, tudo ganharia outra temperatura.
— O que você está fazendo? — Celo sussurrou, mas seus olhos brilhavam de desejo.
— O que você acha? — Ela respondeu, aproximando-se dele.
— Rebeca … é que … eu não estou preparado – Disse ele com a voz entrecortada.
— O que você quer dizer com isso? Como assim, não está preparado? — Perguntou Rebeca, surpresa.
— Me expressei mal. O que eu quis dizer é que eu não vim “preparado”. Eu não trouxe preservativo.
— Ih, garoto … ponto a menos para você. Como você vai para uma festa “desprotegido” — Disse Rebeca e, parecendo se divertir com a situação, pegou um pacote de preservativo da sua bolsa e deu para ele.
Rebeca não disse mais nada. Em vez disso, ela levantou os braços e envolveu o pescoço dele, puxando-o para um beijo voraz. Celo a segurou pela cintura, sentindo o corpo dela pressionar contra o seu. O beijo era urgente, desesperado, como se ambos estivessem contidos há muito tempo.
Ele a empurrou contra a parede fria do banheiro, e ela deixou escapar um gemido abafado contra sua boca. Celo deslizou as mãos pelo corpo dela, sentindo a textura macia da pele através do vestido. Rebeca o puxou ainda mais para perto, suas unhas cravando-se em suas costas.
— Rápido. — Ela murmurou entre beijos — Antes que alguém nos procure.
Celo não precisou de mais incentivo. Ele levantou o vestido dela até a cintura, expondo suas coxas longas e tonificadas. Rebeca o ajudou a tirar a camisa, e logo ambos estavam ofegantes, consumidos pela paixão do momento.
Ele a beijou novamente, descendo pela linha do queixo até o pescoço, onde depositou beijos quentes e mordidas suaves. Rebeca arqueou as costas, gemendo baixinho, enquanto suas mãos exploravam o corpo dele com urgência.
— Celo … que gostoso … — Ela sussurrou, a voz falhando pelo tesão.
Sem dizer uma palavra, ele a levantou e ela enrolou suas pernas em volta de sua cintura. Rebeca o segurou firme, seus dedos entrelaçados em seus cabelos, enquanto ele a posicionava contra a parede fria.
— Você é muito louca … — Celo disse, com a voz rouca de desejo.
— Nesse momento, por você. — Ela respondeu, ofegante.
Celo não esperou mais, colocou o preservativo e a penetrou de uma vez, sentindo o corpo dela o envolver com calor e umidade. Rebeca deixou escapar um gemido alto, mordendo o lábio para abafar o som. Ele começou a se mover, devagar no início, mas logo aumentando o ritmo, impulsionado pela necessidade urgente de estar dentro dela.
— Ahhhh … tá me fodendo gostoso demais … não para … — Os gemidos dela aumentavam rápido.
O espaço apertado do banheiro só aumentava a intensidade do momento. Cada movimento amplificado, cada som ecoava nas paredes de azulejo. Celo segurava Rebeca firme, estocando ferozmente, sentindo o corpo dela se mover em sincronia com o seu. Ela enterrou o rosto em seu pescoço, gemendo baixinho, enquanto suas unhas deixavam marcas vermelhas em suas costas.
— Mais rápido … mais forte … — Ela pediu, a voz trêmula.
Celo obedeceu, aumentando o ritmo até que ambos estivessem ofegantes, à beira do abismo. Ele a beijou profundamente, sentindo o gosto dela em sua boca, enquanto continuavam a se mover em um ritmo frenético.
— Vou … — Celo começou, mas não conseguiu terminar a frase.
A ejaculação feio forte, e Celo mal teve tempo de tirar o pau de dentro dela. Fez esse movimento, se esquecendo que estava protegido. De olhos fechados, ele curtia a intensidade daquele sexo repentino e prazeroso.
Rebeca não acreditava que aquilo estava acontecendo. Por um segundo, até pensou em protestar, se sentiu insatisfeita, mas se resignou. “Era apenas uma rapidinha, uma coisa aleatória”. Pensou, se convencendo de que não era grande coisa.
Por um momento, Celo ficou imóvel, respirando pesadamente. Rebeca se manteve neutra, não demonstrando sua frustração.
— Que loucura! — Celo exclamou, ainda sob efeito da adrenalina.
— Que bom que gostou. — Rebeca respondeu, se afastando e ajustando o vestido.
Eles se arrumaram em silêncio, conscientes de que o tempo estava se esgotando. Quando finalmente abriram a porta da cabine, o banheiro estava impecável, como se nada tivesse acontecido. Rebeca ajeitou o cabelo e o vestido, enquanto Celo abotoava a camisa.
— Nos vemos lá fora. — Rebeca disse, dando-lhe um beijo rápido na bochecha, mas sem encará-lo diretamente.
Celo acenou com a cabeça, sorrindo, os olhos brilhando com uma mistura de desejo e cumplicidade. Eles saíram do banheiro separadamente, misturando-se aos outros convidados como se nada tivesse acontecido.
Celo sabia que algo havia mudado, que a linha entre o certo, o errado e o possível, havia sido esticada. E enquanto voltava para o bar, ele não conseguia deixar de pensar em como, apesar do risco, pensava ainda mais em Mari naquele momento. E por mais que tentasse negar, também em Anna.
De volta ao bar, Celo se sentou, pegando um copo qualquer que estava mais próximo. Ainda sentia o coração acelerado, mas não pela euforia, e sim, por uma inquietação silenciosa que ele não sabia nomear. Quando levou o copo aos lábios, Vicente surgiu ao seu lado como se tivesse brotado do chão, com aquele sorrisinho malicioso de quem já sabia mais do que devia.
— Olha só quem voltou do além. — Disse Vicente, dando um tapinha nas costas dele. — Tá tudo certo por aí? O banheiro ainda existe ou vocês derrubaram a porta?
Celo soltou um riso contido, tentando manter a discrição.
— Para com isso, cara ...
— Eu vi, não precisa fingir. Você achou mesmo que ia passar despercebido? — Vicente pegou uma cerveja do balde de gelo sobre o balcão. — Rebeca ... Hummm. Boa escolha. Inteligente, bonita, decidida. E o melhor: do tipo que não se apega fácil.
— Acho que não foi exatamente ... o que esperávamos. — Disse Celo, se lembrando dos detalhes.
— Para você? Claro que não foi. Você ainda tá com a cabeça em outro lugar, meu amigo. — Vicente sorria ao falar. — Mas deixa eu te lembrar de uma coisa: não precisa estar cem por cento pronto pra tudo dar certo. Às vezes, só precisa estar disposto a tentar.
Celo encarou o líquido âmbar no copo.
— Não estava falando de mim … Quer saber, deixa pra lá. Às vezes acho que nem sei o que tô fazendo aqui.
— Você tá vivendo, cara. Tá se permitindo. Isso já é mais do que muita gente por aí. E falando em se permitir ... — Vicente bateu no ombro dele, mudando o tom — já que você tá nesse clima introspectivo, que tal soltar essa energia na música?
— Ah não ... Não sei se tô no clima pra isso. — Celo disse, já sorrindo, antecipando a insistência.
— Ah, sim! — Vicente rebateu, empolgado. — Eu já falei pro pessoal que você toca. A galera tá curiosa. Até mostrei os vídeos da sua apresentação naquele barzinho do interior. E o violão tá ali, só esperando por você.
Vicente se levantou da cadeira, puxando Celo junto com ele.
— Bora, Celo. Nada de se esconder atrás de copo, de silêncio, de passado. Vai lá e faz o que você faz de melhor.
— Vicente ...
— Sem "mas". Toca uma. Só uma. Se for ruim, eu juro que nunca mais peço.
— Isso é mentira e você sabe. — Celo respirou fundo, riu e o acompanhou. — Tá bom, só uma.
— Vai lá e arrebenta. E se for tocar algo triste, pelo menos escolhe uma melodia bonita. Nada de cortar os pulsos da galera. — Vicente brincou, levantando a garrafa em um brinde solitário.
Enquanto Celo se dirigia ao canto onde o violão repousava sobre um suporte improvisado, o burburinho ao redor diminuiu levemente, como se o ambiente reconhecesse que algo diferente estava prestes a acontecer.
Assim que os dedos de Celo tocaram o violão, ele sentiu uma fisgada no peito. O peso da madeira era leve nas mãos, mas o som que carregava vinha de um lugar fundo demais dentro dele. Afinou as cordas de leve, mais por hábito do que por necessidade, enquanto a conversa ao redor ia diminuindo, como se o ambiente respeitasse o silêncio de quem se prepara pra dizer mais com música do que com palavras.
Era só um momento, só uma música, mas, mesmo assim, algo em Celo se retraía. Por dentro, ele se sentia dividido. Sabia que não havia feito nada de errado. Era um homem separado, livre. Mas ao lembrar do olhar contido de Rebeca, da forma como ela ajeitou o vestido sem olhá-lo nos olhos e, principalmente da lembrança inevitável de Mari, uma sombra de culpa se instalou. Se sentia um traidor, mesmo que não tenha traído ninguém.
Alguém, meio alterado e animado pela bebida, gritou do fundo do salão:
— Toca Legião, pô! A melhor!
Risadas se espalharam. Celo ergueu os olhos, meio surpreso, e quase agradecido por aquele empurrão inconsciente do destino. Porque bastou ouvir "Legião" para que uma memória específica voltasse com força: Mari cantando baixinho "Vento no Litoral", os olhos fechados, a cabeça encostada no ombro dele, num fim de tarde qualquer, anos atrás.
Era uma música que ela amava. E, embora ele fosse mais de Chico, Caetano e Milton, sabia os acordes daquela canção com perfeição. Tocava por ela. Sempre foi assim.
Respirou fundo, baixou os olhos para o violão e começou com o dedilhado suave, as notas abrindo espaço no ar como uma lembrança que ninguém pediu, mas que todo mundo sente.
A melodia preencheu o salão aos poucos e logo, o silêncio foi absoluto. A voz de Celo saiu baixa, quase íntima, como se cantasse apenas para uma pessoa, mesmo que ela não estivesse ali.
“De tarde eu quero descansar
Chegar até a praia e ver
Se o vento ainda está forte, vai
Ser bom subir nas pedras, sei
Que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora
Agora está tão longe, vê
A linha do horizonte me distrai
Dos nossos planos é que tenho mais saudade
Quando olhávamos juntos na mesma direção
Aonde está você agora
Além de aqui dentro de mim
Agimos certo sem querer
Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil eu sem você
Porque você está comigo o tempo todo
E quando vejo o mar
Existe algo que diz
Que a vida continua e se entregar é uma bobagem
Já que você não está aqui
O que posso fazer é cuidar de mim
Quero ser feliz ao menos
Lembra que o plano era ficarmos bem
Ei, olha só o que eu achei, humm
Cavalos-marinhos
Sei que faço isso pra esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora”
Os olhos de algumas pessoas já estavam marejados. Vicente, mais atrás, cruzou os braços, em silêncio, respeitando o momento. Rebeca parou ao ouvir os primeiros versos e ficou ali, observando de longe, vendo como Celo cantava como se estivesse vivendo a letra da música. Ela entendeu tudo sem que ele dissesse uma palavra.
E Celo ... Bem, ele continuou cantando. Não para impressionar, nem para se mostrar. Mas porque, naquele momento, era a única forma que ele conhecia de continuar respirando.
Assim que a última nota de Vento no Litoral se dissolveu no ar, Celo abaixou o violão devagar, como quem devolve um segredo ao silêncio. O salão permaneceu quieto por alguns segundos, antes de explodir em aplausos emocionados. Mesmo assim, ele não sorriu. Apenas levantou-se e caminhou em direção a Vicente, que o esperava próximo ao bar com um copo na mão e um olhar atento.
— Vai embora já? — Vicente perguntou, reconhecendo o semblante triste e sombrio, oferecendo uma cerveja, que Celo recusou com um gesto.
— Preciso de ar ... e de silêncio. — Celo respondeu com honestidade.
Vicente concordou, sem insistir.
— Foi bonito o que você fez. Mexeu com muita gente. Eu, inclusive. Mas ... eu entendo. Vai com calma, irmão. Você ainda tá no olho do furacão.
Celo sorriu meio sem graça e deu um leve tapa no ombro do amigo.
— Obrigado por tudo hoje. De verdade.
— Só faz o seguinte: não desaparece. E ... — Vicente deu uma piscadela — você precisa conversar com a Rebeca. Mandei o número dela por mensagem. Acho que rolou uma sintonia, mesmo que vocês ainda não tenham entendido direito.
Celo apenas acenou com a cabeça, sem prometer nada.
Na semana seguinte, ele pensou várias vezes em Rebeca. Não pela noite em si, mas pela forma como ela o olhou antes de ir embora. Havia algo não resolvido naquele olhar, ou talvez fosse só a culpa dele falando mais alto. Ainda assim, decidiu tentar.
Na terça, mandou a primeira mensagem:
“Oi, Rebeca. Tudo bem? Estava pensando em você. Será que a gente podia tomar um café qualquer dia desses?”.
Rebeca:
“Oi, Celo. Tudo sim, e você? Essa semana tá corrida por aqui ... fechamento de projeto e algumas reuniões de última hora”.
Celo:
“Imagino. Sem pressa. Quando você tiver uma brecha, me avisa”.
Rebeca:
“Claro! Te aviso sim”.
Mandou mensagem novamente no final de semana
“Oi. Vi que vai ter aquele evento de startups na sexta, você vai? Podíamos aproveitar e conversar um pouco …”.
Rebeca:
“Poxa, Celo ... queria muito ir, mas fui escalada para um treinamento interno no mesmo horário. Você vai gostar, é um bom ambiente. Mas vou ficar devendo essa”.
Mais uma semana, e Celo tentou novamente:
“Bom dia. Pensei em te chamar pra almoçar, só pra gente bater um papo mesmo. Sem pressa, sem compromisso”.
Rebeca:
“Oi, Celo. Hoje é aniversário da minha afilhada ... vou passar o dia com a família. Mas obrigada pelo convite, viu?”.
Celo:
“Tudo bem. Aproveita o dia. Parabéns para ela”.
Celo ficou olhando para a última mensagem por longos segundos. Nenhuma das respostas dela era seca, nem desinteressada. Mas havia uma distância ali. Um cuidado. Uma forma sutil e delicada de dizer “não”, sem a intenção de magoar.
Ele não insistiu mais. Guardou o celular no bolso e soltou um suspiro fundo. Sabia reconhecer quando alguém não queria continuar. E mesmo que não houvesse mágoa, havia um tipo de silêncio que falava mais do que palavras. Talvez fosse só isso entre eles: uma noite, um momento fora do tempo. Um impulso.
Talvez não devesse ter tentado esticar a situação. Estava recém separado e não tinha nenhum tipo de sentimento a mais por ela. Mas parte dele ainda se perguntava se teria sido diferente se a música, ao invés de Vento no Litoral, tivesse sido outra.
Vicente nunca sumia. Mesmo com a rotina puxada e os compromissos da vida adulta, fazia questão de manter o contato com Celo, seja com memes sobre solteirice, convites aleatórios para festas ou apenas um “e aí, sumido”. Depois de tantas recusas, Celo finalmente cedeu.
— Tá bom, Vicente. Hoje eu topo. Me manda o endereço.
O barzinho era um desses lugares descolados que vivem mudando de nome e cardápio, mas continuam lotados de gente bonita e música no volume certo. Vicente já estava lá, encostado no balcão, camisa aberta até o terceiro botão, drink colorido na mão e aquele sorriso de quem já estava no segundo round da noite.
— Olha quem veio tirar a teia da alma! — Brincou Vicente, abrindo os braços.
Celo riu, meio sem graça.
— Eu precisava sair. A cabeça não anda legal.
— Isso aqui vai te fazer bem, confia. — Disse, erguendo o copo para chamar o garçom. — Duas doses de tequila pra começar. É por minha conta.
Algumas rodadas depois, Celo se soltava mais. Contou por alto sobre Rebeca, sem mágoas, mas com um certo peso na voz.
— Gente boa, inteligente. Mas ... muito diferente de mim. Foi só uma noite. Achei que podia rolar algo mais leve, sem compromisso, mas ... acho que me enganei.
Vicente assentiu, compreensivo.
— Às vezes a gente força uma vibe que não existe. Não é sobre transar ou não, é sobre se encaixar. E se não encaixou, bola pra frente. Ela não foi feita pro teu momento, e tá tudo certo.
Mais algumas doses, e o bar parecia girar num ritmo menos duro. Foi quando duas mulheres se aproximaram, puxadas por Vicente com naturalidade.
— Celo, essas são a Raíssa e a Bruna. Elas estavam aqui na nossa órbita e achei que valia apresentar.
Raíssa, cabelos ondulados, sorriso aberto e piercing no nariz. Bruna, elegante, olhar curioso e vestido de alça fina. Celo, normalmente reservado, deixou-se levar. Brincadeiras leves, risadas compartilhadas, flertes escancarados. Vicente, claro, conduzia tudo como um maestro, alternando entre piadas e elogios exagerados.
— Então você é o músico? — Bruna perguntou, encostando levemente o ombro no dele.
— Amador ... muito amador — Celo respondeu, rindo.
— Tem cara de quem canta com a alma. — Disse Raíssa, provocando. — Isso é sexy.
Celo sentia o álcool circulando, o ambiente aquecido, o corpo respondendo a estímulos há tempos esquecidos. Vicente o cutucou discretamente, sussurrando:
— Meu apê é aqui do lado. Tô achando que a noite ainda vai render.
Celo hesitou por um segundo. Mas depois de tanto silêncio, tanta introspecção, tanta saudade do toque humano ... ele se deixou levar.
— Bora. — Respondeu, pegando o casaco.
Saíram os quatro juntos, misturados ao cheiro da noite, ao som abafado do bar ficando para trás. No caminho, risadas, mãos que se entrelaçavam, promessas de um momento sem cobranças.
No elevador, Celo olhou para o próprio reflexo no espelho lateral. Não reconhecia bem quem estava ali. Mas, por ora, não se importava.
A noite tinha sido barulhenta, suada e um pouco bagunçada. Mas, no fundo, vazia. Celo, ainda envolto nos lençóis amassados do quarto de hóspedes de Vicente, acordou com a cabeça pesada e uma sensação incômoda no peito. A luz entrava pela janela com violência, como se o mundo quisesse esfregar na cara dele que o escapismo tem prazo de validade.
Bocejou, coçou os olhos e, ao ouvir vozes vindo da cozinha, parou por um instante. Reconheceu a risada de Vicente e, logo em seguida, a voz de Bruna, a mulher com quem passara a noite.
— Olha, desculpa, Vicente — Ela dizia, meio que debochando. — Mas da próxima vez, escolhe um cara com mais energia. Mas, se não tiver energia, pelo menos, que seja criativo. Ele é bonito, tem aquele jeito misterioso ... mas é bem devagar.
Outra risada, dessa vez de Raíssa, a amiga:
— Ah, ele é tímido, vai ver só precisa esquentar ... com calma.
Bruna continuou, em tom de deboche leve:
— Calma? O cara não tinha muita noção do que tava fazendo. Eu lá tenho tempo pra aquecer gente em crise existencial? Vai ver ele ainda tá apaixonado pela ex ... ou pela própria tristeza.
Celo fechou os olhos. Sentiu o estômago revirar, mas não por causa da bebida. Aquilo doía mais do que deveria, porque no fundo, ele sabia: elas não estavam exatamente erradas.
Sentou na cama devagar, calçando os tênis espalhados pelo chão. Pegou o celular, viu a tela acesa com uma mensagem não lida de Paul, mais uma tentativa de conversa. Suspirou pesadamente.
Respirou fundo e foi até o banheiro no corredor. Escovou os dentes com o dedo, ajeitou o cabelo com a mão e saiu. O riso cessou por alguns segundos quando ele apareceu na cozinha. Vicente, percebendo a situação, tratou de disfarçar:
— Olha só quem resolveu dar as caras. Dormiu bem?
Celo forçou um sorriso.
— Como uma pedra.
Bruna sorriu, sem graça, mas não pediu desculpas. Apenas ergueu a caneca de café como quem dá um brinde e disse:
— Bom dia, moço misterioso.
Celo apenas acenou de leve com a cabeça. Pegou a jaqueta que estava pendurada na cadeira e disse:
— Valeu, gente. Vicente, te ligo depois.
Vicente levantou, acompanhando o amigo até a porta. No olhar, o respeito de quem entende que pode ter exagerado, mesmo sem arrependimento.
— Celo ... foi mal. Só quis te tirar um pouco da caverna.
— Eu sei, cara. Valeu mesmo. Mas acho que eu ainda tô na caverna.
— Tá tudo bem. Quando quiser sair de novo, me chama. Sem pressa.
Celo desceu as escadas sem olhar para trás. Lá fora, o sol batia forte demais pra quem carregava uma ressaca emocional. Ele sabia: precisava encarar o que sentia de verdade. Fugir não estava mais funcionando.
As semanas passaram com uma sucessão de festas, bares e encontros organizados — ou improvisados — por Vicente. Celo, ainda tentando se encaixar naquele novo universo de liberdade, seguia o fluxo, mas cada noite terminava com mais frustração do que prazer.
Na primeira vez, em uma festa num rooftop elegante, conheceu Júlia, uma mulher vibrante que riu de todas as piadas dele e o puxou para um canto mais reservado. Mas na hora “H”, Celo se atrapalhou. Tentou ser delicado demais, hesitou, e ela, paciente no início, terminou com um beijo na bochecha e um “foi legal te conhecer, mas acho que a gente não combina”.
Na segunda, uma balada eletrônica onde tudo parecia girar em torno da velocidade — música, bebida, intenções — conheceu Lara, cheia de atitude, que o levou pra casa sem rodeios. Celo tentou corresponder, mas entre movimentos robóticos e beijos fora de tempo, terminou dormindo sozinho no sofá, enquanto ela preferiu o próprio quarto, dizendo:
— Acho melhor cada um descansar no seu canto hoje.
Na terceira, em uma casa de swing, Celo hesitou até na hora de tirar a camisa. Uma mulher mais experiente, com um sorriso gentil, o guiou por alguns momentos, mas no meio da interação, ele travou, murmurando um “acho que não tô pronto”. Ela só assentiu, com um olhar compreensivo e quase maternal.
Vicente observava tudo com atenção. Não zombava, não expunha. Mas naquela noite, na saída de uma balada com clima mais intimista, ele decidiu ser honesto.
— Celo ... posso te falar uma parada, sem filtro? — Perguntou, acendendo um cigarro enquanto esperavam o carro.
— Pode. — Celo respondeu, cabeça baixa, encarando o chão.
— Cara, você é boa pinta, inteligente, tem carisma. Mas ... tu tá tentando viver algo que ainda não entendeu. Tá querendo agradar sem saber o que elas querem. Tá com medo de errar tanto que ... tá errando até no básico.
Celo respirou fundo.
— Eu não sei o que tô fazendo, Vicente. Só estive com a Mari. A vida inteira. Só ela.
— Eu sei, mano. E é por isso que tô falando. Sexo não é só técnica, mas também não é só emoção. Tem que ouvir o corpo da mulher, prestar atenção. E principalmente: parar de pensar tanto.
— Fácil pra você dizer.
— Não é fácil pra ninguém no começo. Mas escuta: se tu quiser, eu te ajudo. Não pra virar pegador. Mas para que, quando você se envolver com alguém de novo, e vai acontecer, você saiba entregar mais do que presença. Entregar prazer.
Celo concordou, engolindo o orgulho com um gole seco de cerveja.
— Valeu, Vic ... obrigado por não debochar.
— Debochar de quê? Você é meu amigo, pô. Só quero ver tu deixar de ser turista nesse rolê.
Celo se afastou de tudo. Parou de responder às mensagens de Vicente, silenciou os grupos, cancelou convites, e deixou de aparecer nas festas que, até pouco tempo atrás, frequentava como quem busca um mapa no escuro. O apartamento, pequeno e antes tão cheio de esperança de recomeço, agora parecia encolher em volta dele, tornando-se uma extensão do seu próprio desânimo.
Acordava tarde, ou nem dormia. Passava horas deitado no sofá, encarando o teto, a luz da janela desenhando formas tristes nas paredes. O violão ficou encostado no canto, coberto de silêncio. As músicas que antes o preenchiam agora soavam como zombarias distantes, lembranças de uma versão sua que já não sabia se existia.
Ele se sentia um adolescente deslocado, um estranho no próprio corpo. Se já carregava a culpa silenciosa por nunca ter sido o suficiente para Mari, agora aquela sensação o sufocava. A imagem dela, entregue nos braços de Paul, voltava como um pesadelo lúcido. Mas pior ainda era a certeza que amadurecia dentro dele: talvez tenha feito o certo ao se afastar. Talvez ele realmente não tivesse muito a oferecer. Nem como marido, nem como amante. Nem como homem.
“Ela merecia mais. Merecia alguém que a fizesse vibrar, que soubesse tocá-la, guiá-la. Que a olhasse com fome e não com insegurança”.
Esses pensamentos martelavam como um refrão cruel. Cada tentativa frustrada com outras mulheres se tornava um espelho da própria inadequação. Celo se via pequeno, indigno, frágil. Sentia que havia deixado Mari livre ... e que, no fundo, isso tinha sido o melhor que poderia ter feito por ela. Um último ato de amor silencioso: deixá-la ir.
Mas aquele pensamento, que deveria ser nobre, só lhe doía. Porque junto com ela, parecia ter perdido a si mesmo.
A solidão deveria ser um refúgio, mas parecia uma prisão. Cada dia parecia mais cinza, cada minuto mais pesado. E o medo, que antes era de ficar sozinho, agora era de nunca mais voltar a se reconhecer.
A campainha tocou uma, duas vezes. Celo nem olhou pelo olho mágico. Apenas girou a maçaneta no automático, como se abrir a porta fosse mais um reflexo do que uma escolha.
Do outro lado estavam Paul e Anna.
Os olhos de Celo, fundos e apagados, demoraram alguns segundos para entender o que estavam vendo. O peito afundou em surpresa. Não uma surpresa boa, daquela que aquece, mas um sobressalto desconfortável, que o fez querer fechar a porta de novo, voltar para sua caverna escura e se esconder sob o peso da vergonha e do cansaço.
Anna foi a primeira a notar. Bastou um olhar.
— Meu Deus, Celo … — Disse ela, num tom suave, mas cheio de preocupação.
Paul, que vinha logo atrás, também ficou em silêncio por um momento, observando o rosto magro, a barba por fazer, os olhos opacos e a camisa amassada. Não era o mesmo homem vibrante que tinham conhecido, nem mesmo aquele deitado em uma cama de hospital lá atrás, se recuperando do acidente com um sorriso no rosto, mesmo entre a dor. O Celo atual parecia apagado, sem vida.
— A gente pode entrar? — Paul perguntou, cuidadoso, quase com medo da resposta.
Celo não disse nada. Deu um passo para o lado, permitindo a entrada, e voltou lentamente para o sofá, como quem carrega os próprios pés.
Anna entrou, hesitante, olhando ao redor. O apartamento estava em silêncio, com luz baixa, roupas largadas sobre uma cadeira, louça suja na pia, embalagens de comida espalhadas. O violão encostado no canto parecia abandonado há semanas. O ar era pesado, quase tóxico.
— A gente tentou ligar várias vezes. — Paul disse, parando próximo à porta, como se respeitasse um limite invisível.
— Desculpa. — Celo respondeu, com a voz rouca. — Eu ... não queria falar com ninguém.
Anna se aproximou devagar, os olhos marejando ao vê-lo daquele jeito, tão diferente daquele homem que havia se jogado na frente de um carro para salvar uma criança. Uma atitude impulsiva? Sim, mas repleta de vida. Agora, parecia que ele mal conseguia salvar a si mesmo.
— Celo, o que aconteceu com você?
Ele deu um sorriso frouxo, quase cínico.
— A vida “aconteceu” comigo.
O silêncio que se seguiu dizia mais do que qualquer palavra. Paul e Anna trocaram um olhar. Estavam ali por um motivo, mas o que encontraram foi muito além do que imaginavam.
Celo estava despedaçado. Era preciso juntar e colar os cacos.
Anna não se segurou, começando a limpar e organizar a bagunça. Se sentia obrigada a tentar trazer alguma positividade para o momento. Lavou a louça, recolheu as embalagens de comida, enquanto o cheiro de limpeza começava a disputar espaço com o ar abafado do apartamento. Paul permaneceu de pé no centro da sala, observando tudo com um nó na garganta.
Quando Celo se sentou no sofá, sem forças até para demonstrar desconforto, Paul finalmente falou.
— Celo … — Ele começou, com a voz baixa. — Cara, eu pensei em mil formas de ter essa conversa com você. E todas elas pareciam erradas.
Paul fez uma pausa curta, os olhos no chão. Depois o encarou.
— Eu fui um idiota, um babaca. Um péssimo anfitrião. Um cara sem noção. Quando vocês vieram na nossa casa, naquele feriado, eu achei, de verdade, que estava ajudando. Que estava abrindo uma porta para vocês explorarem juntos, com liberdade ... Mas agora eu entendo que eu só fui burro. Surdo. Cego. Achei que estava sendo acolhedor, parceiro, e, no fim das contas, eu agi como um canalha.
Paul esfregou os olhos, num gesto tenso, quase irritado consigo mesmo.
— Eu não li os sinais. Não percebi que vocês ainda estavam engatinhando naquele universo. Não vi que vocês ainda carregavam dúvidas, receios, até inseguranças ... Eu avancei o sinal, agi por impulso, deixei o ego falar mais alto. Fui invasivo. E mesmo que nada tenha sido escondido ou forçado, eu fui o cara errado no momento mais frágil da vida de vocês.
Paul respirou fundo, engolindo seco.
— Você confiou em mim, Celo. E eu não honrei essa confiança. Não da forma que eu devia. Não com o respeito que você merecia. Eu achei que estava fazendo o certo. Mas hoje, olhando para trás, percebo que só piorei tudo.
O silêncio se instalou por um momento, preenchido apenas pelo som de Anna ajeitando almofadas no sofá e colocando água pra ferver, como se criar um ambiente melhor fosse sua forma de pedir desculpas também.
Paul deu um passo à frente, com olhar sincero e firme.
— Me desculpe, irmão. De verdade. Se eu tivesse parado pra sentir, entender, ao invés de só agir, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Eu só quero ... consertar, se é que dá. Nem que seja só limpando um pouco da bagunça que eu causei na sua vida.
Celo respirou fundo. Ainda se sentia desmoronando por dentro, mas havia algo no olhar de Paul que o fez encontrar um fio de dignidade para se agarrar. Ergueu os olhos e, com voz rouca, mas firme, respondeu:
— Eu também errei, Paul. Muito. Hoje eu entendo melhor ... que não existem vilões nessa história. Só gente tentando se entender no meio do caos.
Ele passou a mão pelo rosto, como se quisesse varrer a exaustão acumulada.
— Eu devia ter falado. Enfrentado. Mas eu fugi. Como um moleque. Desapareci, deixei vocês preocupados ... Me tranquei num mundo de vergonha, raiva e confusão. E, cara ... eu sinto muito por isso também.
Paul deu um passo à frente, como se quisesse contestar, mas Celo ergueu a mão, pedindo para continuar.
— Eu não sou mais o mesmo de antes. Mas também não sei quem eu sou agora. E, naquele tempo ... eu estava no meio do fogo cruzado entre querer descobrir coisas novas e ainda me sentir preso a tudo que era seguro. Você errou, sim, Paul. Mas eu também. Não sou vítima. Fui só ... confuso e imaturo.
Paul balançou a cabeça com um meio sorriso triste.
— Cê tem razão em tudo o que disse. E não tem que pedir desculpa por nada. A responsabilidade era minha. E, se serve de consolo, eu aprendi. Aprendi do pior jeito, mas aprendi.
O silêncio que se seguiu foi diferente dos anteriores. Mais leve, mais honesto. Como se, depois de tanto tempo, a poeira tivesse começado a baixar.
Foi então que Anna, que observava tudo com olhos cuidadosos, se levantou e foi até a bancada da cozinha. Puxou uma folha de papel, rabiscou algumas palavras e estendeu para Paul com um pequeno sorriso.
— Preciso de algumas coisas. Dá um pulo no mercado pra mim? Por favor?
Paul leu a lista rapidamente e entendeu na hora. Anna queria ficar a sós com Celo. Ele não questionou, apenas assentiu.
— Claro. Volto rápido.
Pegou as chaves, deu um último olhar para os dois e saiu. A porta se fechou suavemente. Agora, só restavam Anna e Celo. E um silêncio novo entre eles. Mais carregado. Mais íntimo.
Anna não perdeu tempo com rodeios. Assim que a porta se fechou atrás de Paul, ela cruzou os braços, encostando-se na bancada da cozinha.
— Então ... fiquei sabendo que você anda se divertindo pela cidade.
Celo franziu a testa, surpreso. A expressão no rosto dele oscilava entre o espanto e a desconfiança.
— Como assim? — Ele perguntou, se aproximando, puxando uma cadeira e se sentando, desconfortável.
Anna deu de ombros, como quem joga a informação no ar, sem o menor esforço para amenizar.
— Vicente é uma figura conhecida. Muito pomposo pro meu gosto. Aquele jeito espalhafatoso dele não combina com discrição, sabe?
Ela caminhou até a janela, abrindo uma fresta para deixar entrar um pouco de ar fresco. A luz da lua desenhava um contorno suave ao redor dela.
— Apesar de ser do bem ... ele fala demais. Principalmente quando bebe.
Celo baixou o olhar, apertando os dedos entre si. Tentou mudar de assunto, como quem busca uma rota de fuga.
— Você não precisava ter mandado o Paul ao mercado. Eu tenho tudo o que preciso aqui. — Disse, quase num resmungo.
Anna virou-se de volta para ele, caminhando com calma, mas com um olhar firme, penetrante.
— Paul não vai voltar. Não agora.
Celo a fitou, sem entender de imediato.
— Como assim?
Ela parou diante de Celo, os olhos cravados nos dele.
— Nós temos assuntos pendentes a resolver. Esqueceu?
Continua …
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