Capítulo XIII - O amor que vence a morte!
O quarto foi ficando vazio aos poucos, mas o eco da cena não saía da minha cabeça. Ainda dava para ouvir, dentro de mim, o som daquele apito contínuo. Era como se tivesse se gravado no meu peito.
O médico pediu que todos saíssemos. Disseram que precisavam estabilizar o quadro, monitorar as reações, fazer exames de emergência para entender a extensão do dano que a parada cardíaca poderia ter causado.
E foi assim que fiquei no corredor, as mãos tremendo, o corpo inteiro suando frio, a respiração curta e pesada. Miguel estava parado ao meu lado, mas parecia tão sem chão quanto eu. Minha mãe andava de um lado para o outro, como quem queria fugir de um pensamento que não conseguia evitar. Dona Eloísa, imóvel, olhava para a porta como se pudesse atravessá-la com os olhos.
— Por que eles não falam nada? — minha voz saiu rouca, quase um sussurro.
Dona Eloísa respirou fundo, como se buscasse forças para se manter firme.
— Caio… eles estão fazendo o possível. A gente precisa confiar…
— Confiar? — minha voz tremeu, subindo um pouco.
— Ele tava bem… quer dizer, do jeito dele… e agora tá lá, preso a máquinas…
— Eu sei — ela respondeu, com o tom sério, mas a voz embargada.
— Mas se a gente desmoronar agora, vai ser pior.
Passei as mãos no rosto, apertando as têmporas, tentando controlar o choro que já estava no limite.
— Dona Eloísa… eu… eu vi o jeito que ele reagiu quando eu peguei na mão dele… e depois…
Ela se aproximou, ajoelhando diante de mim para me olhar nos olhos.
— Caio, meu filho… eu também tô morrendo por dentro. Ele é meu único menino… minha vida inteira. Mas eu preciso que você segure a minha mão agora, porque se eu cair, eu não levanto mais.
Aquelas palavras me desmontaram. Solucei alto e me curvei, encostando a testa na mão dela.
— Eu não posso perder ele… não posso…
Ela passou a mão nos meus cabelos, num gesto quase materno.
— E não vai.
Minha mãe, que ouvia tudo de perto, acrescentou baixinho:
— O Rafael é forte… muito mais do que vocês imaginam.
Mas cada minuto que passava sem notícias parecia uma sentença.
Dez minutos. Quinze. Vinte. Trinta. Uma hora.
— Isso é tortura… — murmurei, olhando para a porta.
— Ficar aqui, sem saber se ele tá vivo, se tá consciente…
Miguel, que até então estava em silêncio, colocou a mão no meu ombro.
— Ele vai sair dessa.
Olhei para ele com raiva e dor.
— Como você pode ter tanta certeza?
— Porque eu conheço o Rafael — respondeu com firmeza. — E conheço o jeito que ele ama você. Ele não vai desistir agora.
O silêncio voltou a tomar conta, apenas quebrado pelo som distante dos passos e das rodas de macas no corredor.
Foi só depois de quase duas horas que a porta finalmente se abriu e o médico apareceu. Seu rosto estava sério, mas não carregava aquele peso de más notícias definitivas.
— Família do paciente Rafael? — perguntou.
Todos nós nos aproximamos de imediato. Meu coração parecia que ia sair pela boca.
— Conseguimos estabilizar — ele começou.
— A parada cardíaca foi revertida e não houve danos neurológicos aparentes até o momento.
Eu quase caí de alívio, mas a tensão ainda não se desfazia.
— E a infecção? — Dona Eloísa perguntou, com um olhar firme.
O médico suspirou. — O quadro infeccioso foi confirmado. Trata-se de uma bactéria hospitalar agressiva, que já está sendo combatida com antibióticos de amplo espectro. Ele está respondendo, mas a situação exige cautela. Qualquer piora pode ser crítica.
— Ele vai ficar bem? — minha voz saiu baixa, trêmula.
— É cedo para dizer, com certeza — respondeu. — Mas ele é jovem, saudável, e isso conta muito a favor. No entanto, precisamos de observação constante.
— Posso vê-lo? — perguntei de imediato.
— Só por alguns minutos e com todos os cuidados — ele disse. — Máscara, touca, luvas. E, Caio… nada de emoções fortes. O corpo dele precisa de paz para se recuperar.
Eu apenas assenti, mesmo sabendo que me controlar seria quase impossível.
Dona Eloísa me olhou e apertou meu braço.
— Vai lá… eu iria, mas sinto que você que tem que falar com ele… mas lembra: ele precisa sentir que você acredita que ele vai voltar.
Entrei na sala, e ao ver Rafael ali, tão vulnerável, conectado a fios e aparelhos, meu peito se fechou. Segurei sua mão com cuidado, senti a pele fria e comecei a falar sobre o poema que ele escreveu, sobre nós dois… mas foi aí que seu corpo começou a reagir, os sinais vitais acelerando, o monitor disparando alarmes.
O médico correu até mim, ordenando que eu me afastasse, mas eu não consegui.
— Rafa! — minha voz ecoou, tomada pelo pânico. — Volta pra mim! Por favor, volta!
E então, diante dos meus olhos, os números na tela despencaram. A parada cardíaca aconteceu de novo. O quarto se encheu de gente, gritos de ordens técnicas cortando o ar, e eu, mesmo sendo empurrado para trás, só conseguia repetir:
— Volta pra mim, Rafael… volta...
O som agudo do monitor invadiu a sala, cortando o ar como uma lâmina. Um segundo antes, eu segurava a mão de Rafael, sentindo a leve pressão inconsciente de seus dedos, como se ele não quisesse me soltar, mesmo em coma. No segundo seguinte… tudo se apagou, dando lugar a um silêncio mortal, quebrado apenas pelo apito estridente do equipamento.
— Parada! — a voz do médico soou, urgente, e em segundos a sala se encheu de enfermeiros e médicos. Um posicionava as pás do desfibrilador, outro iniciava a massagem cardíaca. Eu fiquei paralisado, sem conseguir me mover, até que um enfermeiro me empurrou para trás. Mesmo assim, minha mão ainda segurava a dele, como se minha vida dependesse daquele toque.
— Carregar… 200 joules… choque!
O corpo de Rafael estremeceu, mas o monitor continuou emitindo a linha reta implacável.
— Sem resposta! Mais uma vez! — gritou o médico.
Outro choque. Nada. Meu coração parecia explodir dentro do peito. As lágrimas escorriam incontroláveis.
— 300 joules… choque!
Nada. Apenas silêncio e aquele bip que parecia debochar da minha dor.
O médico mais velho respirou fundo, a expressão grave.
— Não há mais nada que possamos fazer. Hora… 15h47.
Minha mente se fechou. Um vazio absoluto tomou conta de mim.
— Não… — eu murmurei, engolindo soluços. — Não pode ser… não pode…
Antes que alguém pudesse me impedir, atravessei a barreira de médicos e me joguei sobre ele. Segurei seu rosto gelado com as duas mãos e o beijei com desespero, sentindo suas lágrimas se misturarem às minhas.
— Rafa… não me deixa… — minha voz se quebrou. — Você prometeu… prometeu que a gente ia viver essa história… volta pra mim… por favor…
Minha mãe, que estava no corredor, avançou, tentando me segurar, mas Miguel a segurou com firmeza. Dona Eloísa, as mãos trêmulas, implorava:
— Deixem ele falar com meu filho! Ele precisa ouvir a voz do Caio!
Eu continuava falando, sem conseguir parar:
— Volta, Rafa! Eu preciso de você… você prometeu… nosso amor é mais forte que isso… volta pra mim!
Então, algo inesperado aconteceu, sem que eu mesmo e os médicos pudessem sequer explicar tangivelmente. Primeiro, um suspiro quase imperceptível, depois um movimento fraco no peito dele. O monitor, antes morto, emitiu um bip solitário, que se repetiu lentamente.
— Ele… ele tá voltando! — gritou uma enfermeira, surpresa.
Os médicos retomaram o procedimento, agora com números surgindo no visor. O som ritmado dos batimentos cardíacos preencheu a sala, e eu não conseguia acreditar.
— Tirem-no daqui, precisamos estabilizar! — disse um médico, mas a voz estava diferente, cheia de respeito e assombro.
Miguel, minha mãe e Dona Eloísa correram até mim. Todos nós estávamos em choque, mas havia lágrimas de alívio nos olhos de cada um.
— Caio! O que aconteceu? — minha mãe perguntou, a voz embargada, ainda sem entender o que havia se passado.
— Ele… ele morreu… e voltou… — consegui dizer entre soluços.
— Como assim, voltou? — perguntou Miguel, incrédulo.
— Porque você chamou, Rafa ouviu você… — disse Dona Eloísa, ainda trêmula, abraçando-me. — Você salvou meu filho, Caio. Você trouxe ele de volta.
Depois de longos minutos, o médico saiu da sala, ainda ajustando os óculos, claramente impressionado.
— Não há explicação médica… clinicamente ele não tinha mais chance. Foi… um milagre.
— Não foi só um milagre, doutor… foi amor — disse uma das enfermeiras, ainda sem acreditar.
Miguel me abraçou, o corpo inteiro tremendo.
— Caio, vocês dois… vocês são a prova de que amor verdadeiro existe.
Minha mãe acariciou meu rosto, sorrindo entre lágrimas.
— Filho… ele voltou pra nós…
Olhei para a porta da sala onde Rafael estava sendo estabilizado, o coração disparado.
— Eu falei pra ele voltar… e ele voltou… — murmurei.
Dona Eloísa, ainda me segurando firme, disse baixinho:
— Agora ele precisa descansar, mas ele vai voltar completamente… vocês ainda vão viver essa história.
Eu senti cada batida dele, cada fio de vida que retornava, e pela primeira vez, senti esperança genuína. Meu corpo relaxou lentamente, mas meu coração continuava acelerado. Eu sabia, naquele instante, que nada no mundo poderia nos separar.
Miguel, minha mãe e Dona Eloísa ficaram ali, em silêncio, atônitos, mas presentes. Miguel segurava minha mão com firmeza, minha mãe não largava meu ombro, e Dona Eloísa continuava me abraçando, como se dividisse comigo cada respiração de Rafael que voltava à vida.
Cada segundo que passava parecia eterno, mas finalmente, todos nós percebemos que a luta tinha terminado — Rafael estava vivo. O amor tinha vencido a morte. Inexplicavelmente! Mas quem poderá explicar o amor?
Caio narrando...
O corredor ainda tinha aquele cheiro de desinfetante que queimava levemente o nariz, misturado ao som distante dos monitores cardíacos. O “milagre” de Rafael já tinha virado assunto em todos os cantos do hospital. Eu ouvia cochichos sempre que passava — enfermeiros comentando, pacientes contando para familiares, até médicos de outros setores vinham discretamente saber se era verdade. Mas para mim, nada daquilo importava. O que importava era ele.
Naquela manhã, depois de passar um tempo olhando para ele através do vidro da UTI, decidi ir até a sala de espera. Ela estava vazia, exceto por uma televisão ligada no mudo passando um jornal. Sentei no canto mais afastado, as mãos apertando uma xícara de café que já tinha perdido o calor.
Poucos minutos depois, ouvi passos. Era Dona Eloísa.
Ela entrou devagar, como quem carrega no corpo não só o cansaço físico, mas um peso na alma. Ela me viu e, sem dizer nada, puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado. Ficamos alguns segundos em silêncio, ouvindo só o ar-condicionado e um estalar ocasional da madeira velha das cadeiras.
— Caio… — ela começou, a voz baixa, como se ainda estivesse escolhendo as palavras. — Eu… preciso falar com você.
Virei-me, sentindo aquele aperto no peito.
— Pode falar…
Ela respirou fundo, os olhos marejados.
— Eu nunca imaginei viver algo assim… ver meu filho voltar… por causa de alguém. Não foi um remédio, não foi uma máquina. Foi você. Você chamou e ele… ele voltou. Eu vi, Caio. Eu vi com os meus próprios olhos.
Meu coração deu um salto doloroso.
— Dona Eloísa… eu só… — minha voz falhou — eu só não podia deixá-lo ir.
Ela segurou minha mão com firmeza.
— Você ficou aqui noites seguidas, sem comer direito, sem dormir, só por ele. Isso é amor, Caio. E… eu quero que você saiba… que eu nunca mais vou duvidar disso.
Senti meus olhos arderem.
— Isso significa mais do que a senhora imagina…
Ela engoliu em seco, apertando minha mão um pouco mais.
— Eu sei que você ama meu filho. E, Caio… eu amo o jeito que você o ama.
Não consegui responder. Apenas a abracei. Ficamos assim por um tempo, até que ela se levantou para ir falar com os médicos.
Quando fiquei sozinho, olhei para minha mochila. Lá estava o caderno dele. O caderno que eu já tinha folheado tantas vezes nos últimos dias. Peguei-o com cuidado e comecei a virar as páginas devagar, como se as palavras fossem feitas de vidro. Até que um poema me prendeu. A letra dele, ligeiramente inclinada, viva, carregada de sentimento.
Respirei fundo e comecei a ler, sozinho naquela sala silenciosa:
"Amar você é perder o medo da morte,
porque minha vida já é sua.
É querer ser abrigo quando o mundo for tempestade,
é querer ser calor quando o frio entrar na sua alma.
Eu não sei o que existe depois da vida,
mas sei que, se eu não te encontrar lá,
vou procurar até me perder.
E, se o destino me pedisse a minha vida,
eu a daria sorrindo,
porque amar você é ter vivido tudo o que importava."
A cada verso, minha voz ficava mais fraca. Segurei o caderno contra o peito, como se aquilo fosse a única forma de abraçá-lo.
— Rafa… você é tudo. — sussurrei, com os olhos fechados.
Foi então que Dona Eloísa voltou e me viu com o caderno nas mãos.
— Ele escreveu isso pra você, não foi? — perguntou, a voz embargada.
Assenti.
— Foi… e eu só queria que ele soubesse… que tudo o que ele sente, eu sinto também.
Ela se sentou de novo, passando a mão no meu ombro.
— Ele sabe, Caio. Mesmo que não fale, ele sabe.
Naquele instante, percebi que, mesmo separados por paredes e máquinas, estávamos mais próximos do que nunca.
Eu ainda estava sentado, segurando o caderno do Rafa contra o peito, quando ouvi passos apressados no corredor. Olhei de canto de olho e vi Miguel surgindo na porta da sala de espera. Ele carregava uma garrafinha d’água na mão, mas, ao me ver, parou no mesmo instante.
— Caio… — disse, entrando devagar. — Tá tudo bem?
Não consegui responder de imediato. Minha garganta estava travada, e só o movimento dos meus dedos alisando a capa do caderno entregava a tempestade que eu sentia por dentro.
Miguel se aproximou, se abaixando para ficar na minha altura.
— Ei… olha pra mim. — ele pediu, a voz baixa, firme, mas cheia de cuidado. — O que aconteceu?
Eu respirei fundo, tentando não desabar ali.
— Eu… eu tava lendo… outro poema que ele escreveu pra mim. — falei, com a voz embargada. — Miguel… você não tem ideia…
Ele puxou uma cadeira e sentou ao meu lado.
— Quer… ler pra mim? — perguntou, com delicadeza.
Hesitei, mas abri o caderno e mostrei a página marcada. Li o poema novamente, dessa vez com Miguel ali, e vi seus olhos umedecerem a cada verso. Quando terminei, ele passou a mão no rosto, como se quisesse disfarçar.
— Caramba, Caio… — ele murmurou. — Eu nunca vi alguém escrever sobre outra pessoa assim… Isso… isso é amor puro. Cara, chega a ser assombroso. É como se Rafa e você se complementassem perfeitamente.
Eu balancei a cabeça, encarando o chão.
— Eu nunca… nunca pensei que alguém pudesse me amar tanto… e… olha o que ele fez, Miguel… olha onde ele tá, tudo porque quis me proteger.
Miguel suspirou, encostando-se na cadeira.
— Eu sei que é difícil, mas… ele tá lutando, Caio. E você tá aqui todos os dias, segurando a barra, mesmo quebrado por dentro. Isso é o que vai fazer ele voltar.
Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que Miguel falou outra vez:
— Posso ler outro? — perguntou, apontando para o caderno.
Assenti, e ele folheou até encontrar uma página com a letra mais recente. Começou a ler:
"Antes de você, eu morava no vazio,
onde até o eco parecia me evitar.
Meus dias eram longos,
meus silêncios, ainda mais.
Então você chegou,
e cada espaço dentro de mim foi preenchido.
O mundo ganhou cor,
meu riso ganhou motivo,
e minha vida… ganhou sentido."
Miguel fechou o caderno devagar, soltando um suspiro longo.
— Esse cara é incrível, Caio… e vocês… vocês vão vencer tudo isso. Sabe por quê? — ele me olhou nos olhos. — Porque o amor sempre vence. Sempre.
Eu respirei fundo, tentando absorver cada palavra.
— Eu… eu espero que sim, Miguel… porque eu não sei mais viver sem ele.
Miguel me puxou para um abraço forte, e, naquele momento, percebi que ele também estava segurando as próprias emoções.
— Você não vai precisar. Ele vai voltar. E quando isso acontecer… vocês vão viver essa história como ela merece.
Ficamos assim por um tempo, em silêncio, mas era um silêncio bom, de quem sabia que, apesar da dor, ainda havia esperança.