Paul se encostou na cadeira novamente, fingindo alívio, mas por dentro sorrindo com frieza.
— Ótimo. Então é isso. Vamos trabalhar, fazer a nova empresa andar direito. E se quiser mesmo se redimir, começa aparecendo mais, agindo como homem, não se escondendo atrás do André.
Jonas se levantou, aliviado por aparentemente ter sido perdoado.
— Obrigado, Paul. Você não vai se arrepender.
Quando a porta se fechou atrás dele, Paul, novamente, se encostou na cadeira, expirando devagar. Pegou o celular, digitou uma mensagem curta para Celo:
"O rato entrou na armadilha. Agora é uma questão de tempo".
Continuando:
Parte 39: “Qual é o Teu Negócio? O Nome do Teu Sócio? Confia em Mim”*
De volta ao hotel, Jonas fechou a porta devagar, como se o silêncio do gesto pudesse abafar o turbilhão que fervia dentro dele. Atirou as chaves na mesa, arrancou o paletó com raiva e soltou um palavrão abafado. A conversa com Paul, a submissão forçada, ainda latejava em sua mente. Aquele tom controlado, o olhar firme, as palavras escolhidas com frieza cirúrgica. Jonas odiava ter se curvado. Odiava, mais ainda, por imaginar que Paul não havia engolido a encenação.
Mas não havia alternativa. Era aquilo ou perder tudo.
Ele se jogou na cama, com o teto branco refletido em seus olhos. Tentou desviar o pensamento, mas não conseguiu. Mari não saia de sua cabeça. Desde aquela última vez no shopping, e depois ela o ignorando completamente na festa do Paul, ele não conseguia pensar em outra coisa. Se ela tivesse escutado … se tivesse lhe dado uma chance de se explicar … Ele só queria ser ouvido. Só queria que alguém admitisse que ele também sofreu. Que ele também foi enganado por um mundo que cuspia nos mais fracos.
Pegou o celular. Desbloqueou. Travou de novo. Caminhou pelo quarto. Voltou para a cama. Por fim, tomou uma decisão e ligou para Cora
— Alô? — A voz de Cora soou cansada, mas alerta, do outro lado da linha.
— Sou eu, Jonas. Preciso da sua ajuda.
Silêncio do outro lado.
— Cora, eu tô falando sério. Você me ofereceu uma parceria, lembra? Disse que estava do meu lado. Eu preciso que você me ajude a falar com a Mari.
— Você tá louco? — Cora protestou.
— Eu só quero uma conversa. — Ele explicou. — Um minuto, um encontro. Você a conhece. Pode inventar alguma coisa, um evento, um acaso ... qualquer situação. Só preciso que ela esteja lá. Que ela me escute. Você tem que trazê-la até mim.
— Jonas … — Cora suspirou, com um peso que não era só da angústia. — ... Escuta uma coisa: eu já contei tudo. Pro Giba, pro Paul, pro Celo e também para a Mari. Já pedi desculpas. Já encarei minha vergonha. Já me humilhei o suficiente. E sabe de uma coisa? Eles me perdoaram. Não porque eu merecia, mas porque foram grandes o bastante para isso …
— Isso não tem nada a ver com você ou com eles. — Jonas a interrompeu, nervoso, falando alto. — É entre ela e eu. Você devia entender!
— Eu entendi, sim. — Cora não se acovardou. — Entendi que eu tava brincando com fogo, prestes a me queimar inteira. Mas eu voltei. Voltei a tempo. Porque eles me puxaram de volta. Você ... você não quer ser ouvido. Você quer controle.
A voz de Jonas ficou fria.
— Cuidado com o que diz.
Cora já estava sem paciência.
— Eu não sou mais a mesma idiota que se perdeu, que se achava injustiçada, usada. Eu entendi a minha posição e o meu valor para os meus amigos. Eu não quero perder isso nunca mais.
Jonas tentou interromper novamente, mas ela não deixou.
— E escuta bem: se você tentar se aproximar da Mari de novo, se me envolver nisso de qualquer jeito, eu mesma conto tudo para o Paul. Tudinho. Sem filtro, sem ...
Jonas, irado, cortou a ligação no meio do aviso. O celular ficou vibrando na palma da mão por alguns segundos, até que ele o atirou com fúria na parede a sua frente.
Do outro lado da cidade, Cora tinha gravado a ligação desde o momento que o número dele apareceu na tela. Foi instintivo, para se proteger. Ela imediatamente fez uma chamada de vídeo para o marido.
— Amor … — Ela disse quando ele atendeu. — Aconteceu o que vocês previram.
— Jonas? — Giba perguntou, sem medo de errar.
Ela assentiu e colocou o áudio gravado na nuvem para rodar no notebook, reproduzindo tudo. Ao final, Giba ficou alguns segundos em silêncio e depois chamou o Paul.
— Escuta isso aqui, irmão. A Cora acabou de receber uma ligação do Jonas. Ele está tentando se aproximar da Mari. De novo.
Cora, com o coração apertado, falou:
— Mas eu cortei logo. Deixei claro que não vou participar de mais nada sujo. Eu gravei tudo. Se ele insistir, eu entrego para a Mari. — Cora soltou novamente o áudio da ligação gravada.
Do outro lado, em silêncio, Paul estava ouvindo com atenção.
— Cora … — Disse ele por fim, em tom sério, mas sereno. — Obrigado. De verdade. Isso mostra que você está voltando a ser quem era. Se continuar assim, leal aos amigos … a confiança pode, e vai, ser reconquistada.
Cora respirou fundo. Sabia que não seria imediato, mas ouvir aquilo era o primeiro passo.
Giba, para acalmá-la, disse:
— Jonas cavou a própria cova. Agora é só esperar o momento certo para enterrar o que restar dele.
Antes de desligar, ele ainda falou.
— Obrigado, amor. Essa é a minha Cora. A mulher que eu amo e respeito.
Um sorriso sincero, de gratidão, nasceu no rosto de Cora. Segundas chances não são fáceis de conseguir.
{…}
Os dias seguintes foram pesados. Paul, mais centrado e estratégico, já não deixava transparecer sua raiva. Era hora de agir, e ele sabia: não se combate com armas amadoras quando o inimigo joga sujo.
Sua primeira medida foi discreta, mas certeira. Sem levantar suspeitas, contratou uma auditoria silenciosa, técnica conhecida no meio corporativo como “due diligence paralela”. Em vez de anunciar uma auditoria oficial, que certamente faria Jonas e André blindarem dados e apagarem rastros, Paul acionou uma empresa especializada em varreduras financeiras sigilosas.
A missão era clara: rastrear todos os movimentos bancários e fiscais dos dois no novo empreendimento, inclusive pagamentos a fornecedores, repasses internacionais e movimentações fora do padrão.
Paralelamente, Paul ativou seus contatos na Europa. Mais especificamente, na Itália, onde sabia que Jonas e André haviam fechado um negócio nebuloso, anos atrás. Utilizando uma rede de investigadores financeiros com experiência em cooperação internacional, ele buscava entender se existiam empresas de fachada, movimentações bancárias ligadas a paraísos fiscais, ou até nomes falsos associados aos dois. O objetivo era obter provas, não apenas suposições.
Semanas antes, Celo havia mencionado um contato de confiança na Receita Federal, um auditor de carreira, técnico e correto, mas com boa vontade para frear irregularidades. Paul acionou Giba, pedindo que fosse até Celo e formalizasse o pedido de colaboração com esse auditor, enquanto se mantinha vigilante, atuando para manter Jonas e André na rédea, sem que eles desconfiassem das medidas que estavam sendo tomadas. Era hora de tirar a investigação do campo da curiosidade e trazê-la para o campo da legalidade.
Com o status de sócio majoritário, Paul estava juridicamente respaldado para autorizar uma investigação interna. Ele assinou uma autorização formal de auditoria de compliance e risco, incluindo uma cláusula específica que dava a Celo carta branca para utilizar seu software de análise de riscos em todas as bases de dados públicas e privadas permitidas por lei. Até mesmo as de score bancário, histórico societário, registros da Junta Comercial, dados fiscais e cruzamentos internacionais.
Celo não perdeu tempo. Assim que recebeu a autorização oficial, acessou o módulo avançado do sistema, aquele que havia sido desenvolvido para seguradoras e instituições financeiras de alto risco. Agora, sem barreiras legais, ele podia cruzar dados de Jonas e André com ações judiciais, movimentações suspeitas do COAF, registros de empresas com vínculos diretos e indiretos e até anotações internas em agências de crédito corporativo do mundo inteiro.
Celo olhava a tela com a atenção de um cirurgião. Uma notificação surgiu no painel:
"Alerta de inconsistência societária: empresa offshore ligada a 'A.G. Partners', registrada no Chipre, com ramificações em Milão e São Paulo".
Era o início de uma teia muito maior.
Giba, por sua vez, apresentado por Celo, levou os documentos até o auditor da Receita e pediu um parecer técnico sobre a legalidade da estrutura fiscal da nova empresa. O auditor, experiente, analisou por cima e murmurou:
— Estranho … vínculo com uma empresa de intermediação internacional, mas os códigos fiscais estão desalinhados com a natureza da atividade principal. Pode haver simulação aqui …
Giba apenas assentiu.
— Pode nos ajudar com uma análise mais profunda?
O auditor respondeu:
— Claro. Mas preciso de um dossiê completo. E, acima de tudo, preciso saber se vocês querem que isso vá para o Ministério Público, ou se preferem manter internamente. Se houver fraudes, a denúncia será inevitável. É o meu trabalho.
Paul ainda não tinha essa resposta. Precisava saber mais antes de tomar uma decisão definitiva. Por ora, preferia manter tudo em sigilo. E se o pior fosse constatado, não interferiria na obrigação profissional do auditor. A máscara de Jonas ainda estava firme diante dos olhos dos demais. Mas não por muito tempo.
Nas semanas seguintes, os primeiros resultados começaram a aparecer. Discretos, mas preocupantes.
Com a autorização de Paul e o suporte silencioso de Giba, Celo e o próprio Giba fizeram contato com antigos sócios de Jonas e André na Europa. A prioridade era a Itália, onde o último negócio suspeito de Jonas e André aconteceu. Os ex-sócios, inicialmente desconfiados, mudaram de postura ao saberem que havia uma investigação em andamento e ao analisarem o que Celo e Giba apresentaram. Vários deles ainda arcavam com prejuízos e ações judiciais deixadas por Jonas e André. Agora, viam a chance de acertar as contas.
Com os dados fornecidos pelos “novos parceiros” europeus, Celo conseguiu acesso a documentos antigos, movimentações financeiras, cópias de contratos e e-mails trocados durante os últimos meses do empreendimento italiano. Com essas peças, ele alimentou seu software de rastreamento de risco, que operava em camadas: verificação de vínculos empresariais, análise de transferências internacionais e conexões entre contratos envolvidos direta ou indiretamente nos negócios. Em paralelo, cruzava informações com bancos de dados públicos e privados da Europa e do Brasil.
Aos poucos, o que parecia apenas uma má gestão, ou um fracasso comum, foi se revelando como algo muito mais sombrio.
Havia dinheiro vindo de offshores sediadas em paraísos fiscais: Ilhas Virgens, Chipre, Malta. Esses recursos, inicialmente mascarados como "aportes estratégicos", eram na verdade lavagem de capital de terceiros com forte envolvimento em atividades ilícitas, principalmente no sul da Itália. Um dos vínculos levou Celo a um velho conhecido das autoridades italianas: um empresário "fantasma" com ligações diretas com a Ndrangheta, a máfia calabresa. O dinheiro passava por laranjas italianos e brasileiros, e empresas de fachada registradas em nomes de pessoas simples, algumas delas já falecidas.
Enquanto isso, no Brasil, Paul recebeu o primeiro relatório completo da auditoria silenciosa contratada para analisar o novo empreendimento. O documento veio robusto, quase duzentas páginas, entre laudos, planilhas, pareceres e apêndices. Os auditores haviam encontrado notas frias emitidas por empresas sem lastro real, investimentos com retornos incompatíveis com o mercado e atravessadores desnecessários e suspeitos, envolvidos nas importações de maquinário e insumos.
Algumas transações chamavam atenção pela ousadia: pagamentos antecipados para fornecedores desconhecidos, contratos superfaturados com cláusulas de confidencialidade incomuns, e depósitos para contas vinculadas a corretoras obscuras fora do Brasil.
O Auditor Chefe, profissional sério e experiente, recomendou formalmente que as informações fossem encaminhadas às autoridades. Era impossível ignorar os sinais: lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, evasão de divisas e até possível formação de quadrilha internacional. Como tudo ainda estava dentro da empresa, e com Paul como sócio majoritário, a denúncia poderia seguir o caminho correto e legal, sem exposição pública.
E, assim foi feito. O material seguiu para o Ministério Público Federal, sob um protocolo discreto. Em menos de uma semana, foi instaurado um inquérito em segredo de justiça, com colaboração entre a Receita Federal, o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e a Polícia Federal. Os nomes de Jonas e André ainda não apareciam nos documentos públicos, mas internamente, já eram alvos diretos.
Alheios a tempestade que se aproximava, Jonas e André seguiam suas rotinas como se nada estivesse acontecendo. Participavam de reuniões, negociavam com investidores e planejavam expansões. Estavam tão confiantes quanto cegos, ignorando que, a cada novo passo, deixavam mais pegadas para trás. Pegadas que estavam sendo rastreadas com precisão cirúrgica.
Eles seriam pegos de calça curta. Era só uma questão de tempo.
{…}
Mari e Luciana se encontraram num restaurante discreto, aconchegante, daqueles que privilegiam pratos leves e saudáveis, e poucas mesas ocupadas naquele horário. Era uma terça-feira tranquila, com céu nublado e temperatura amena, o tipo de dia que convida à conversa demorada.
— Você está linda, Mari. Voltar a ser uma mulher casada te fez muito bem. — Elogiou Luciana, brincando, sorrindo enquanto se sentavam perto da janela.
— Só você pra dizer uma coisa dessas — Mari respondeu, sem esconder o sorriso. — Mas obrigada … acho que estou mesmo mais leve, feliz.
As duas pediram saladas bem montadas, acompanhadas de sucos naturais. Nada muito elaborado. Luciana optou por uma de folhas verdes com salmão grelhado e molho de mostarda e mel, enquanto Mari escolheu uma salada morna de grão-de-bico com legumes salteados. Comeram devagar, conversando sobre amenidades, lembrando de tempos antigos, mas sem fugir completamente do que era inevitável: a nova vida de Mari e o retorno de Celo. Mari contou tudo.
Luciana, sempre cuidadosa, mais escutava do que falava. Mari, por sua vez, se sentia confortável. Não precisava medir as palavras com ela.
Depois do almoço, ao consultar o relógio, Luciana comentou:
— Tenho um tempo antes do meu primeiro paciente da tarde. Se quiser continuar a conversa, podemos ir lá pro consultório. O café de lá é ótimo. — Disse, com um sorriso cúmplice.
— Acho uma boa — Respondeu Mari, levantando-se com ela. — Ainda estou com a cabeça cheia de coisas. Estou até pensando em voltar ao trabalho …
As duas caminharam calmamente até o prédio do consultório, atravessando algumas quadras entre risadas e confidências. Mari sentia que, depois de tanto tempo tentando entender o que havia desmoronado, estava, finalmente, se reconstruindo aos poucos.
O ambiente era calmo, com uma música instrumental suave preenchendo o ar, enquanto a luz natural entrava pelas amplas janelas do consultório. Mari sentou-se no sofá de canto com uma leve inquietação. Seus dedos brincavam com a alça da bolsa, os olhos pareciam perdidos em alguma lembrança distante.
Luciana, que havia deixado o jaleco sobre a cadeira e agora mexia na cafeteira, olhou de relance para a amiga.
— Vai … conta logo o que se passa nessa cabecinha. — Luciana disse com um sorriso afetuoso. — Te conheço demais para cair nesse teatrinho. Sei que ainda não disse tudo o que queria.
Mari suspirou fundo, como se precisasse encher os pulmões para sustentar a coragem.
— O Celo … — Ela começou olhando fixamente para a mesa de centro. — Ele ainda pensa no estilo de vida liberal.
Luciana ergueu as sobrancelhas, mas manteve o tom acolhedor:
— Você quer dizer … mesmo depois de tudo?
— Sim. — Mari mordeu o lábio. — Ele me pegou de surpresa, comentando com a Anna e o Paul … e não de forma vaga, sabe? Ele insinuou claramente, com todas as letras. Que ainda pensa nisso. Que talvez … queira experimentar de novo. E o pior … — Ela fez uma pausa. — Eles ficaram animados. Como se fosse uma promessa.
Luciana se sentou ao lado da amiga e cruzou as pernas com calma, analisando o que acabara de ouvir.
— E o que você quer, Mari?
Mari hesitou, olhando nos olhos da amiga. Aquela pergunta era um espelho, e a resposta não vinha fácil.
— Eu não sei. Quer dizer … eu sabia no começo. Quando tudo era novidade. Eu era curiosa, meio ansiosa até. Mas depois daquilo tudo … depois dos traumas, da cagada que eu fiz, de quase perder meu marido … isso mexeu comigo. Jogou lama na minha cabeça, na minha autoestima, nos meus valores.
— E respingou no seu casamento com o Celo … — Completou Luciana com cuidado.
Mari assentiu.
— E ainda assim … não consigo fechar completamente essa porta. Eu e o Celo, quando estamos bem, somos intensos. Somos bons juntos. E eu fico pensando … se a gente conseguir encontrar um meio-termo, uma forma que seja confortável para os dois … talvez ainda possa funcionar. Talvez não precise ser como antes.
Luciana apoiou os cotovelos nos joelhos e uniu as mãos, pensativa.
— Mari, você é uma das mulheres mais fortes que eu conheço. Ninguém passa pelo que você passou e sai ilesa. É justo ter medo. Mas força e justiça não servem de nada, se você não for totalmente honesta, principalmente com você mesma.
Mari baixou o olhar.
— Eu tenho medo de abrir essa porta e acabar me perdendo de novo.
— Então, ou não abra, ou abra só até onde você alcança. — Disse Luciana. — Não é física quântica, amiga. Na verdade, é bem simples. É desejo. É construção. É um casal decidindo, juntos, o que querem viver. Com diálogo. Com respeito. Se vocês decidirem tentar de novo, com novos limites, com mais maturidade … quem pode dizer que não vai dar certo?
— E se eu não conseguir corresponder? Se eu errar novamente? — Mari mantinha, ainda, o olhar baixo, indecisa.
— A confiança não precisa vir inteira, Mari. Ela vem aos poucos, com provas de cuidado. E o Celo … bem, você errou, mas ele te ama. Isso é visível até para quem passa cinco minutos com vocês. Só que o amor, sozinho, não sustenta uma nova tentativa. Vocês precisam se ouvir. Com coragem. Sem fingimentos. Seja honesta, diga o que precisa dizer. Até mesmo que você pode falhar, e veja se esse é um risco que o Celo está disposto a correr.
Mari respirou fundo. Encarou Luciana com os olhos úmidos, mas firmes.
— Você tem razão, amiga … é isso que eu preciso fazer. Ser honesta, inteira e me abrir completamente.
Luciana apertou a mão da amiga.
— Então faça isso. Se abre. Mas lembra: não faça só por ele, nem por medo. Faça por você. Pelo que você deseja viver — Luciana sorriu para ela, positiva. — E se esse caminho for mesmo o de vocês, que ele seja construído com amor, e não com culpa.
Mari sorriu de volta, um sorriso pequeno, mas genuíno. Como quem sente que, talvez, ainda haja luz depois da escuridão.
Mari se despediu de Luciana com um sorriso sincero, um abraço apertado e a mente em ebulição. A conversa com a amiga tinha sido direta, honesta, como só Luciana conseguia ser. E, enquanto dirigia de volta para casa com os pensamentos embaralhados, sabia que tinha muito a digerir.
O silêncio do lar pareceu acolhedor, ao menos por alguns minutos. Ela colocou a bolsa no aparador, tirou os sapatos e foi direto para o jardim. Era ali, entre as flores, que costumava encontrar um pouco de paz. Podou as hortênsias, limpou folhas secas, regou a lavanda. Mas nem o perfume da terra molhada foi suficiente para espantar os pensamentos.
“Se a vontade ainda vive em mim, mesmo que ferida … então talvez ela nunca tenha morrido de fato”, pensou.
Tentou se distrair. Tomou um banho, colocou uma roupa confortável, deu play no episódio da série que estava assistindo, mas mal percebeu quando os créditos finais subiram. Sua cabeça seguia lá, com Luciana, com as palavras que ainda ecoavam:
“Isso não é física quântica. É só desejo, Mari. Desejo e honestidade”.
No fim da tarde, o som das vozes e das chaves na porta a despertou do torpor. Quase ao mesmo tempo, entraram pela sala Celo, Diego e Dani. Mari se levantou com leveza, abraçou os filhos, e quando os olhos encontraram os de Celo, ela o beijou com mais intensidade do que ele esperava.
— Que saudade ... — Ela disse, com um sorriso que escondia tempestades.
— Também senti, amor. — Ele respondeu com sinceridade.
Enquanto Mari começava a organizar os ingredientes para o jantar, Celo subiu para tomar banho. Com naturalidade, largou o celular na mesinha de centro da sala. Um gesto aparentemente simples, mas que logo se tornaria um novo turbilhão.
Mari, a caminho da cozinha, notou a tela do aparelho se acendendo. O nome que apareceu ali, no remetente de um e-mail, pareceu gritar em letras maiúsculas: Clara.
Mesmo antes de entender o conteúdo, nas poucas linhas que apareciam por conta do bloqueio de tela, já sentiu o estômago revirar. Era como se o passado tivesse batido na porta com um sorriso enviesado.
O olhar hesitante ficou preso às primeiras linhas da mensagem:
“Boa noite, Celo! Já faz um tempo, né? Espero que esteja bem e que tenha conseguido resolver as coisas com sua ...”
Mari recuou, como se tivesse tocado em algo quente demais. Engoliu seco. A vontade de deslizar o dedo na tela e abrir o restante do e-mail era grande. Mas o medo de se perder naquilo que poderia encontrar era ainda maior.
Ela se forçou a virar as costas, mesmo com o coração acelerado e a mente gritando perguntas que ela não queria ouvir. Tentou focar nas panelas, no corte dos legumes, no tempero da carne ... Celo desceu pouco depois, o cabelo ainda úmido, o rosto tranquilo. Não se deu conta de nada. Nem sequer olhou o celular. Foi direto até ela, ajudando com os pratos, perguntando sobre o dia, contando alguma bobagem engraçada que Diego disse no caminho de casa.
Mari sorriu. Riu até. Mas lá dentro, o coração parecia apertado. Ela não era mais a mulher de antes, que guardava tudo para si e explodia meses depois. Mas também não queria invadir um espaço que ainda estava em reconstrução. Confiava em Celo. Tinha que confiar. Não havia mais espaço para dúvidas ou inseguranças. Não era preciso ter. E se aquele e-mail tivesse mesmo importância, se representasse algo que merecesse ser dito, ele contaria. Ela precisava acreditar nele.
Enquanto a casa se enchia com o cheiro do jantar e as vozes da família, Mari tentava lembrar da conversa com Luciana: “Não era física quântica. Na verdade, era bem simples. Era desejo. Era honestidade”. Ela apenas esperava que a honestidade viesse dele também.
Numa reviravolta do destino, o celular de Mari também se acendeu com uma notificação. Ela olhou, ainda mexendo na panela, e sentiu o estômago revirar: Jonas.
"Oi, Mari. Sei que sou a última pessoa do mundo que você quer ver, mas eu preciso te pedir desculpas novamente. Eu já me acertei com o Paul, me desculpei pessoalmente, e gostaria de te encontrar uma última vez. Não quero que as coisas entre a gente terminem dessa forma nebulosa, errada. Fomos importantes um para o outro, mesmo que por pouco tempo, e eu gostaria de encerrar isso da forma certa. Me liga".
Mari leu a mensagem em silêncio, os olhos fixos na tela por alguns segundos. Depois, sem hesitar, caminhou até o marido, que cortava legumes na bancada. Não disse uma palavra. Apenas entregou o celular para ele.
Celo ergueu os olhos, confuso, e só entendeu quando leu o conteúdo da mensagem. A expressão fechou. O maxilar travou. Ele pegou o celular dela com firmeza e digitou com rapidez, mesmo sabendo que não podia deixar a raiva transbordar. Havia muita coisa em jogo.
"Fica longe da minha mulher. Ainda precisamos trabalhar juntos, para o bem da sua empresa e do Paul, mas qualquer contato seu com a minha esposa está oficialmente encerrado a partir de agora. Não teste a minha paciência".
Sem dar tempo para arrependimentos ou justificativas, ele enviou a resposta e imediatamente bloqueou o contato de Jonas no celular de Mari.
Ela sorriu, aliviada. Um sorriso pequeno, mas cheio de significado. Em seguida, o abraçou por trás e deixou um beijo em seu ombro.
— Obrigada! — Disse Mari, num sussurro.
— Não precisa me agradecer por te proteger. Esse é o meu papel. — Ele respondeu, virando-se para encontrá-la com um beijo mais longo e seguro. Havia paz ali.
Naquela noite, a casa se encheu de risos e vozes entrelaçadas. Dani contou histórias divertidas, Diego comentou sobre uma nova atualização do sistema que ele e Celo desenvolviam. O jantar, simples, se transformou num banquete emocional. Uma trégua definitiva. Laços se reataram e feridas se fechavam.
Mari e Celo se deitaram cedo naquela noite, e fizeram amor calmo e carinhoso, pois sempre que estavam a sós, não conseguiam manter as mãos longe, um do outro. Ela não conseguiu dormir tão rápido como ele. Após se revirar na cama por longos minutos, se levantou devagar, tentando não o acordar, e seguiu até a cozinha para beber um copo d’água.
O silêncio da casa era quase terapêutico. Sem sono algum, decidiu abrir o notebook e revisar alguns planos antigos. Pensava seriamente em retomar o trabalho nas próximas semanas, e aquela quietude da madrugada parecia o momento ideal para refletir com clareza.
{…}
Mais algumas semanas se passaram, e a teia montada por Celo, Giba e os antigos sócios italianos de Jonas e André começou a dar resultados. A Polícia Federal, respaldada pelas autoridades italianas e com o apoio direto da Interpol, conseguiu consolidar provas suficientes para deflagrar uma operação de grande escala. As escutas autorizadas, os relatórios da auditoria e as quebras de sigilo feitas pelas vias legais complementaram o material obtido por Celo. Embora de forma não convencional, foi o estopim para antecipar o desmonte do esquema.
Numa manhã que parecia como qualquer outra, a “Operação Rota Clandestina” foi deflagrada simultaneamente em três estados brasileiros e em duas regiões da Itália. Jonas e André foram presos ainda sonolentos, pegos completamente de surpresa. A polícia arrombou portas, confiscou documentos, computadores, celulares, pen drives e até documentos manuscritos escondidos em fundos falsos de móveis.
A cena se repetiu do outro lado do oceano, onde os antigos comparsas europeus da dupla também foram detidos, alguns tentando se desfazer de provas sem sucesso. A ação coordenada entre as autoridades dos dois países foi precisa, cirúrgica e sem alarde prévio.
As provas eram robustas: transações entre contas em paraísos fiscais, notas fiscais frias emitidas por empresas laranjas, repasses feitos por atravessadores sem qualquer função legítima no processo de importação, e movimentações financeiras incompatíveis com a contabilidade oficial da empresa de Paul. Havia um padrão claro de evasão de divisas e reinjeção de recursos limpos no mercado, mascarados por investimentos fictícios e triangulações com empresas de fachada.
A marca europeia de produtos alimentícios, que seria representada no Brasil por meio da parceria intermediada por Jonas e André, acabou sendo pega de surpresa com o desenrolar da investigação. Reconhecida por sua tradição e reputação no setor gourmet, a empresa viu seu nome envolvido num escândalo que sequer imaginava estar acontecendo.
Assim que foi notificada pelas autoridades, a marca se mostrou imediatamente colaborativa. Sem hesitar, autorizou o acesso voluntário a todos os seus dados comerciais, fiscais e de comunicação com os envolvidos no Brasil. Seus representantes legais forneceram declarações formais, contratos, documentos contábeis e e-mails trocados com os intermediários, demonstrando total transparência e interesse em esclarecer os fatos.
A análise da documentação revelou que a empresa também havia sido enganada. Ela acreditava estar firmando um acordo legítimo de distribuição e terceirização de produção com um grupo sério de empresários brasileiros, sem saber que Jonas e André, sob a fachada de executivos bem relacionados, faziam parte de uma organização criminosa que usava a negociação como cortina para aplicar golpes financeiros.
As autoridades logo descartaram qualquer participação ou conivência da marca no esquema. Na verdade, ficou claro que, assim como Paul, ela também havia sido vítima, usada como isca para atrair investimentos, camuflar fraudes e conferir uma aparência de legitimidade ao negócio.
Esse movimento de cooperação e boa-fé da empresa europeia não apenas preservou sua imagem pública, como também fortaleceu as investigações, ajudando a traçar o verdadeiro caminho do dinheiro e o papel desempenhado por cada envolvido no golpe.
A imprensa logo repercutiu o caso: "Quadrilha internacional é desarticulada em ação conjunta entre Brasil e Itália", estampou os jornais. A Polícia Federal confirmou que a organização vinha operando há pelo menos dezoito anos, com foco na lavagem de dinheiro e no financiamento de atividades mafiosas na Europa, inclusive, com indícios de apoio logístico a grupos do crime organizado em Nápoles e Palermo.
No centro do furacão, Paul foi notícia. Ele apareceu nos autos como vítima de um golpe sofisticado. Os peritos confirmaram que sua assinatura foi replicada digitalmente em contratos fraudulentos e que decisões administrativas foram tomadas por Jonas e André à revelia dele. O laudo do auditor externo, somada ao rastro de desvios revelados nos e-mails e movimentações suspeitas constatados durante a investigação criminal, sustentaram que Paul não apenas foi enganado, como quase foi usado como laranja de última instância para proteger os verdadeiros beneficiários do esquema.
Celo, por sua vez, não saiu ileso, mas também não foi tratado como criminoso. Suas ações iniciais, que violaram o sigilo de sistemas internos de empresas e órgãos governamentais, foram classificadas como infrações éticas e administrativas, não criminais. O Ministério Público decidiu não oferecer denúncia formal contra ele, considerando o contexto excepcional: sua curiosidade indevida evitou um prejuízo milionário ao Estado e ao setor privado, e ainda impediu o uso da empresa como canal contínuo de lavagem de capitais. A promotoria registrou o caso como uma exceção, onde a utilidade pública se sobrepôs à infração, e sugeriu apenas que Celo arcasse com uma multa administrativa simbólica por invasão de privacidade e exposição indevida de dados sigilosos, mesmo que não os tenha tornado públicos.
O delegado responsável pela operação declarou em coletiva:
— Não fosse o faro investigativo de um dos envolvidos, o estrago poderia ter sido muito maior. Foi uma dessas situações em que a irregularidade de um, levou à descoberta de um crime muito mais grave.
Enquanto Jonas e André se viam diante de um futuro nebuloso, com risco certo de prisão e penas severas tanto no Brasil quanto na Itália, Paul retomou aos poucos o controle da empresa, agora sob auditoria permanente e com um novo conselho gestor. Os contatos com a matriz europeia foram intensificados, na tentativa de manter o negócio.
Celo, apesar do cansaço, sentia que cumpriu um dever moral que não cabia a ele, mas que o destino colocou em suas mãos.
Ainda restaram algumas pontas soltas. A investigação corria em segredo de justiça, e havia a possibilidade de mais nomes surgirem. Mas uma coisa era certa: Jonas e André não apenas foram pegos com a calça curta. Foram pegos nus, de costas, diante de um tribunal que não teria piedade.
{…}
Após o espetáculo público das prisões de Jonas e André, uma sombra de melancolia se instalou em Mari. Apesar do alívio que a justiça trazia, havia um gosto amargo em sua boca. Ela sentia como se tivesse falhado em proteger sua família. Como se, de algum modo, fosse culpada por ter trazido Jonas para dentro de sua casa, confiado nele, acreditado em suas palavras, em sua história.
— Eu coloquei um criminoso na nossa mesa ... — Murmurou, sentada à beira da cama, os olhos fixos no nada. — Ele segurou nas mãos dos nossos filhos. Riu com a gente. Tava lá, do nosso lado ... E eu nem desconfiei.
Celo se aproximou devagar, sentando-se ao lado dela. Pegou suavemente suas mãos e as apertou com carinho.
— Ei ... Você não tinha como saber. Nem eu teria. Ele era bom nisso, Mari. A especialidade dele era enganar. Teve gente experiente que caiu. Você só confiou. Isso não é um crime ... é humano.
Mari balançou a cabeça, tentando afastar aquele sentimento de culpa, mas era difícil. Sua intuição, geralmente tão afiada, havia falhado com Jonas. Aquilo só havia acontecido uma outra vez, no passado, com o ex-noivo. E aquilo a corroía por dentro.
Celo respirou fundo. Ele sabia que Mari precisava de algo mais do que consolo, precisava de conexão, de confiança renovada. Levantou-se, foi até a escrivaninha e pegou o celular. Voltou, sentou-se ao lado dela de novo e abriu um e-mail antigo.
— Tem uma coisa que eu queria ter te mostrado antes, mas com tudo o que aconteceu, a investigação, os conflitos ... eu fui adiando. Esperei o momento certo. Talvez esse seja o momento.
Ele virou a tela em direção a ela. Era um e-mail de Clara, datado de algumas semanas atrás.
— É da Clara. — Disse ele, com um tom calmo. — Ela escreveu há algumas semanas. Ela vem ao Brasil nos próximos dias, vai ficar por aqui um tempo. E eu queria saber se você ficaria chateada se eu mantivesse essa amizade.
Ele rapidamente se explicou.
— É só isso mesmo. — Completou, sincero. — Ah ... e lógico que, se você quiser, pode ir comigo quando a gente se encontrar. Não tenho nada a esconder. Você é sempre bem-vinda.
Mari hesitou. Respirou fundo e disse para Celo que não era necessário. O olhar decidido de Celo lhe deram a coragem necessária para dar aquele passo. Ela sabia que poderia confiar nele. Mesmo porque, o coração, inquieto, impulsivo, tomado por uma curiosidade difícil de justificar, já havia decidido por ela. Mari não conseguiu se segurar. Foi mais forte do que ela, mais urgente, inevitável. E ela leu.
“Boa noite, Celo!
Já faz um tempo, né?
Espero que esteja bem … e que tenha conseguido resolver as coisas com sua esposa. Torço de verdade por isso.
Queria ter mandado mensagem antes, mas acabei me enrolando. O novo trabalho aqui na Espanha tem sido puxado, mas também muito gratificante. Estou finalmente me sentindo parte de algo maior. Já consegui me estabelecer, fiz novos amigos, aprendi a pedir café do jeito certo (risos) e estou até arranhando bem o espanhol.
Mas … sabe, tem dias que sinto falta das nossas conversas. Não de forma sexual, não é isso. É que você era um porto seguro. Alguém com quem eu podia falar sem medo de julgamento. Sempre me escutava, com calma, com aquele olhar atento e ao mesmo tempo divertido. Você tem essa coisa de fazer a gente se sentir compreendida. Sinto falta disso.
Ah, e tem uma coisa que preciso contar. Estou de rolo com um espanhol. Um charme, claro, mas o mais curioso é o estilo de vida dele. Liberal. Pois é … quem diria, né?
Lembro das nossas conversas sobre esse universo e de como eu achava tudo tão distante da minha realidade. Pois bem, aqui estou eu, me aventurando. Nada sério, por enquanto. Ainda estou me descobrindo. Mas estou me divertindo, me sentindo viva, livre, e também tomando cuidado com meu coração. A cena liberal na Espanha é intensa … e encantadora.
Tive que trocar de chip e, sem querer, perdi todos os contatos do Brasil. Sorte que seu e-mail estava salvo na nuvem. Anexo aqui meu número novo. Se quiser conversar alguma hora … sem pressa, sem pressão. Só saudade mesmo.
Estarei no Brasil em algumas semanas, e gostaria de te encontrar. Colocar a conversa em dia, matar a saudade da sua amizade … ou apenas tomar um café.
E, por fim, quero te dizer uma coisa sincera: espero, de verdade, que você e a Mari tenham se reencontrado. Um amor como o de vocês não se encontra em qualquer esquina. E, se você ainda está lutando por ela, não pare. Vale a pena. Amor verdadeiro sempre vale.
Com carinho, Clara”.
Mari leu até o fim com o coração apertado, mas não de ciúme. Havia ternura ali. Clareza. Verdade. Releu o texto com calma, com os olhos marejados, não por desconfiança, mas por gratidão e reconheceu a gentileza de Clara, das palavras suaves e sinceras, da forma como ela incentivava Celo a não desistir do amor deles.
Mari devolveu o celular com um pequeno sorriso.
— Eu não tenho nada contra a amizade de vocês, Celo. Pelo contrário. Acho que você precisa de pessoas assim, por perto ... e eu também. — Ela fez uma breve pausa, depois completou. — Estou curiosa para conhecê-la. Acho, na verdade, que nós duas vamos nos dar muito bem.
Celo sorriu, visivelmente aliviado. Havia um brilho sincero nos olhos dele, o tipo de gratidão silenciosa que só existe quando o amor passa pelo crivo da dúvida e sai mais forte.
— Eu gosto muito dela, Mari. Mas é um gostar diferente ... você sabe. Eu até te falei isso no final de semana da festa do Paul, quando a gente decidiu recomeçar de verdade. Clara me ajudou a enxergar as coisas quando eu estava no fundo do poço. Só isso. Nada mais.
Mari assentiu, dessa vez com mais firmeza. Sentia que, apesar de tudo, o amor deles estava mais inteiro agora. Mais verdadeiro. E que, talvez, Clara fosse mesmo uma peça importante nessa reconstrução, não como ameaça, mas como ponte.
Ela se inclinou, apoiou a cabeça no ombro dele e sussurrou:
— Obrigada por me mostrar. Obrigada por confiar.
Celo a envolveu com o braço e a puxou para perto. Ali, no silêncio que se seguiu, não havia mais espaço para fantasmas. Apenas para a verdade e para o que viria a seguir.
Aquela mulher que ela um dia temeu como ameaça, agora parecia mais uma peça-chave no quebra-cabeça da reconexão com seu marido. Clara não tentou tomar Celo, ela apenas cuidou dele quando Mari não pôde, quando ele estava quebrado, e depois, o devolveu, inteiro.
Naquela noite, Celo subiu para se deitar antes dela. A maratona que ele viveu nas últimas semanas, estava cobrando o seu preço. Mari, sozinha na penumbra da sala, ainda rememorava o e-mail de Clara. Cada frase, cada palavra e, uma ideia estranha passou por sua cabeça. Estranha e, surpreendentemente, agradável. Ela sorriu sozinha. Subiu para o quarto, se deitou ao lado de Celo e o abraçou por trás, sussurrando no escuro:
— Algumas pessoas passam por nossas vidas só pra nos lembrar de quem somos de verdade. Acho que a Clara foi uma dessas.
Celo murmurou algo incompreensível, desconexo, virando-se para abraçá-la de volta. Estava completamente apagado. Mari fechou os olhos, mas não pode parar de pensar: talvez … só talvez … Clara ainda tivesse um papel a cumprir na história deles. Depois de um tempo, ela também entregou os pontos e dormiu.
Na tarde silenciosa do dia seguinte, sozinha em casa, Mari caminhava pela sala com o celular nas mãos. Após tantas reviravoltas, reconciliações e lágrimas, ela sentia que ainda havia uma peça solta no quebra-cabeça emocional que se tornara sua vida: Clara.
Ela não era uma ameaça. Isso, Mari sabia. Mas era impossível ignorar o impacto que aquela mulher teve sobre Celo. E não só pelas palavras doces do e-mail que ele finalmente lhe mostrara, mas por tudo o que ela representou no momento mais frágil da história do casal. Agora, com a alma mais serena, Mari sabia que precisava agradecer.
Respirou fundo, sentou-se diante do computador, buscou o contato de Clara, já que, com a volta de Celo para casa, a sincronização dos dispositivos dele na rede familiar aconteceu automaticamente. E, com cuidado, redigiu o e-mail.
“Assunto: Sobre o e-mail que você enviou ao Celo.
Olá, Clara.
Espero que esta mensagem te encontre bem.
Meu nome é Marilena, mas todos me chamam de Mari. Eu sou a esposa do Marcelo, ou como todos carinhosamente o chamam, Celo.
Ontem, ele compartilhou comigo o e-mail que você enviou semanas atrás. Quero agradecer, de coração, pelas palavras tão gentis e por ter estado ao lado dele num momento tão delicado. Sei que vocês criaram um laço especial naquele tempo em que estiveram mais próximos, e posso ver que foi uma amizade honesta, cuidadosa, generosa.
Gostaria de conversar com você, se for possível. Sem qualquer confronto, sem mágoas — nada disso. Na verdade, quero ouvir sua voz, entender mais do que aqueles parágrafos já me disseram, e agradecer pessoalmente por ter cuidado dele quando eu, por tantas razões, não pude.
Se você estiver disposta, poderia me informar um horário em que possamos nos falar por telefone?
Com carinho, Mari”.
A resposta chegou menos de uma hora depois, com a gentileza quase palpável nas palavras:
“Assunto: Re: Sobre o e-mail que você enviou ao Marcelo.
Olá, Mari!
Que bom receber sua mensagem. Fiquei emocionada com suas palavras e muito feliz por saber que o e-mail chegou até vocês em um bom momento. O Celo já me contou as novidades e eu fico muito feliz por saber que o amor verdadeiro encontrou seu caminho de casa.
Claro que podemos conversar! Hoje mesmo estarei livre por volta das 20h daqui, isso deve ser no meio da tarde aí no Brasil, 15h, certo?
Me avise se esse horário funcionar para você. Fico no aguardo.
Com carinho, Clara”.
Às quinze horas em ponto, no Brasil — vinte horas em Barcelona — Mari discou o número. Sentia o coração acelerar como se estivesse diante de uma entrevista de primeiro emprego ou prestes a entrar no palco de uma peça importante.
O telefone chamou três vezes até ser atendido. A voz do outro lado, tranquila e suave, disse:
— Alô?
Mari sorriu, ainda um pouco nervosa.
— Oi, Clara. É a Mari ...
E então, a porta daquela conversa se abriu. Uma conversa que poderia impactar novamente a relação entre Mari Celo.
{…}
Os dias seguintes à prisão de Jonas e André foram intensos. A defesa dos dois tentou, de imediato, obter liminares e habeas corpus, alegando falta de provas, obtensão fraudulenta das mesmas, excesso de exposição midiática … qualquer coisa que pudesse ajudar os dois, mas a Justiça foi firme. Diante do volume de evidências levantadas pela força-tarefa e da gravidade dos crimes, que envolviam fraude empresarial, falsidade ideológica e tentativa de estelionato em grande escala, todos os pedidos foram negados. Jonas e André permaneceram presos preventivamente, forçados a encarar a nova realidade: uma rotina sem privilégios, marcada por silêncio, desconfiança e a ausência total do luxo, que antes ostentavam.
Enquanto os dois assimilavam a queda, do lado de fora, Paul seguia focado em salvar o projeto que, por pouco, não foi destruído pela dupla. Os executivos da empresa europeia de produtos alimentícios estavam apreensivos quanto ao futuro da expansão para o Brasil. O risco reputacional os fazia cogitar o encerramento definitivo da operação.
Foi então que Paul decidiu agir pessoalmente. Em poucos dias, ele embarcou para a Itália, levando consigo Giba. Foram recebidos com desconfiança inicial, mas aos poucos, com transparência e firmeza, Paul apresentou todas as garantias exigidas. Demonstrou solidez patrimonial, colocou seus bens como caução e apresentou um plano de negócio reformulado, detalhado e auditado por uma consultoria independente. Giba tinha feito um trabalho minucioso para garantir a continuidade da parceria.
A virada aconteceu durante uma longa reunião em Milão, quando Paul, com franqueza, compartilhou toda a história. Inclusive, sua admissão de que havia confiado demais em Jonas e André, e como pretendia transformar aquele erro em um recomeço honesto. Os italianos se impressionaram com a postura dele. E ao perceberem que a empresa já havia despertado interesse real no mercado brasileiro, decidiram manter o plano original: expandir.
Dias depois, o novo contrato foi assinado. Paul assumiu como sócio majoritário da operação no Brasil. Giba, desde o início oficialmente na sociedade, ficou com uma participação menor, mas igualmente estratégica, sendo reconhecido como peça-chave no resgate do projeto. E o sonho, que quase tinha sido enterrado, foi salvo por quem sempre acreditou de verdade nele.
Paul e Giba eram, definitivamente, sócios de um empreendimento que, finalmente, começava limpo. Amigos desde sempre, unha e carne profissionalmente, agora estavam juntos à frente de uma marca europeia sólida, respeitada e prestes a conquistar seu espaço em território nacional.
E no fundo, sabiam que nada daquilo seria possível se tivessem deixado o rancor vencer. O caminho adiante seria duro, mas agora era deles. E verdadeiro, honesto, sem corrupção ou falsidade.
Alguns dias após o fechamento do acordo, Paul e Giba estavam de volta ao Brasil. A viagem à Itália fora cansativa, cheia de reuniões técnicas e exigências burocráticas, mas também coroada com um resultado vitorioso. O negócio estava salvo. Como forma de agradecer e dividir aquele alívio com quem realmente importava, Paul pediu à Anna que organizasse um jantar simples, reservado apenas aos amigos mais íntimos. Uma noite para celebrar não apenas os contratos, mas a amizade, a lealdade e as segundas chances.
A casa de deles estava decorada com flores brancas e luzes discretas no jardim. O aroma de ervas frescas e pratos recém-preparados preenchia o ar. A mesa posta no quintal, na área da piscina, era iluminada por pequenas lanternas suspensas.
— Vocês não imaginam como eu esperei por essa noite. — Disse Paul, erguendo a taça de vinho tinto, após o jantar servido. — Não só pelo negócio. Mas por estarmos todos aqui, depois de tudo.
Giba, sentado ao lado de Cora, assentiu, emocionado. Chris e Fabi trocavam olhares cúmplices, e Celo tinha o braço envolto nos ombros de Mari, que sorria discretamente, ainda absorvendo as emoções dos últimos dias.
Paul então olhou diretamente para Celo.
— E eu preciso te agradecer, de verdade — Disse com firmeza, mesmo emocionado, olhando para Celo. — Se não fosse por você, amigo ... por sua intuição, por sua coragem em se expor e proteger a Mari, e a nós, por tabela, mesmo sem saber o que ia encontrar, eu provavelmente estaria em uma enrascada sem saída.
O silêncio respeitoso que se formou deu peso às palavras. Celo se remexeu na cadeira, desconcertado com o elogio, mas Paul continuou:
— Você me salvou de um golpe, de uma traição que poderia ter custado tudo que eu construí. E não só a mim. Salvou o projeto, a confiança da empresa europeia, os empregos que dependem disso. E, acima de tudo, salvou a todos nós. Obrigado, de coração.
Giba ergueu a taça em direção ao Celo.
— Ao Celo, por nunca deixar de ser o cara que enxerga além da superfície. — Brindou, sorrindo.
Celo, visivelmente tocado, fez um gesto modesto com a cabeça.
— Eu só fiz o que qualquer um faria no meu lugar.
— Nem todos fariam, irmão. — Comentou Chris, sério.
Mari apertou a mão de Celo sobre a mesa, orgulhosa. Anna, sentada ao lado de Paul, sorriu ao ver a cena e disse:
— Às vezes, as coisas mais importantes acontecem nos bastidores. E essa vitória foi construída assim ... com cuidado, com verdade e com amor.
As taças se ergueram, brindando não apenas o sucesso empresarial, mas a força dos laços entre eles. Era uma noite serena, leve, que tentava encerrar um capítulo turbulento com dignidade, abrindo espaço para novos começos, agora sem sombras entre os amigos.
O que Celo ainda não sabia, é que as surpresas ainda não tinham acabado. Sua vida estava prestes a ser revirada uma última vez.
Continua …
*Trecho da música, “Brasil”, da Gal Costa.
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