UM FANTASMA DO PASSADO XIII - Final - O fantasma do que fomos

Categoria: Heterossexual
Contém 2800 palavras
Data: 21/05/2025 00:48:03

O elevador descia lento, como se o tempo tivesse se estendido de propósito. Amanda encarava o visor com os números mudando em vermelho — 14°... 13°... 12°... — e o som abafado do coração dela parecia o único ruído real naquele cubículo. Vestida, maquiada, pronta... mas sem saber para quê. O 10° andar chegou. O som seco do ding a fez prender a respiração.

Ela saiu. O corredor era amplo, silencioso. Tapete elegante, paredes neutras, portas numeradas com placas discretas. A 1431 era a última da direita. A porta que Cadu dissera, com voz calma, com aquele tom de quem a esperava há tempo demais.

Amanda parou diante dela. Olhou o número. Uma última pausa.

E então bateu.

Segundos depois, a porta se abriu, revelando Cadu. Camisa escura, mangas dobradas, sem perfume forte — só aquele cheiro dele, limpo, sóbrio, inconfundível. O olhar dele percorreu o corpo dela com cuidado, como se estivesse vendo uma memória encarnada. Mas não disse nada. Apenas se afastou para dar passagem.

Amanda entrou.

A primeira sensação foi a surpresa do ambiente: mais quente do que imaginava, mais escuro, com iluminação indireta, poucas cores. Um quadro grande, preto e branco, ocupava a parede principal da sala. Um sofá de couro claro. Uma estante de livros ao fundo. Minimalista. Masculino. Silencioso.

— Fica à vontade — disse Cadu, fechando a porta atrás de si. — Vinho?

Ela assentiu, sem tirar os olhos do lugar. Era a primeira vez que adentrava o mundo de Cadu — e mesmo que seu corpo estivesse ali, sua alma parecia ter ficado presa entre os andares do elevador.

Ele serviu duas taças. Amanda se sentou na poltrona menor, pernas cruzadas, mãos no colo. O silêncio era espesso, quase sólido. E ambos pareciam saber disso. Não havia aquela leveza de reencontro, nem a ansiedade do desejo. Era como se algo tivesse sido prometido — mas esquecido no caminho.

Cadu se aproximou. Sentou ao lado dela, no sofá, e dessa vez não pediu licença. Pousou a taça sobre a mesa de centro, inclinou o corpo, apoiou o braço no encosto atrás de Amanda. Ela sentiu o calor dele no ombro, o cheiro, a familiaridade do gesto. Era tudo o que ela esperara por anos. Mas agora... algo não encaixava.

— Você veio — ele disse, quase com surpresa. — Mesmo depois de tudo.

Ela não respondeu. Ele sorriu, aquele meio sorriso de quem sabe que ainda tem poder. Ou acha que tem.

— Eu me lembro do seu olhar na aula de Direito Penal II... aquele que atravessava a sala inteira. Você queria que eu olhasse de volta, lembra?

Amanda mordeu o lábio inferior, mas não por desejo. Por confusão. Por vergonha.

Ele se inclinou mais. Beijou o ombro dela, depois o pescoço. Beijos suaves, experientes, estrategicamente lentos. Como se estivesse esculpindo o momento que ambos haviam fantasiado. Amanda não se moveu. Não retribuiu. Mas também não afastou.

— Você ainda é linda demais — ele sussurrou. — Mas tem algo novo... um peso nos olhos.

Ela olhou pra ele. Quase como quem implora: “não me lê assim”. Mas ele insistia. Não como predador — ele não era. Mas como homem acostumado a vencer pelo charme, pela calma, pelo jogo que ela mesma começara um dia.

A mão dele deslizou até a coxa dela. Apertou devagar.

— Me diz que você não pensou nisso todas as noites — ele provocou. — Me diz que não se tocou pensando em mim..

O rosto dela corou. Mas os olhos não acenderam.

— Eu pensei — ela admitiu. — Mas não era você.

Ele franziu o cenho, confuso.

— Era a ideia de você. O que você representava. O poder que tinha sobre mim.

Cadu encostou a testa na dela, tentando quebrar o gelo com um toque doce. Amanda deixou. Mas não cedeu.

Ele ficou em silêncio. Depois se levantou, foi até a janela, olhou a cidade acesa lá embaixo. Amanda se sentia deslocada. Era como se todo aquele cenário fosse montado para outra mulher — uma que ela fingiu ser.

— Podemos só... ficar? — ela disse, finalmente. — Assim. Sem mais nada.

Ele assentiu. Levou-a até o quarto. O quarto dele. A cama grande, lençóis claros, a penumbra do abajur de cabeceira. Deitaram-se como se tivessem sido jogados ali por uma força externa. Amanda virou de lado. Cadu veio atrás, encaixando-se como se ainda houvesse alguma chance.

E naquela noite, a primeira em que Amanda poderia tocar o passado com as próprias mãos, o passado apenas a abraçou — sem exigência, sem vingança, sem desejo. Só com um silêncio longo. Um silêncio cheio de ausências.

Amanda estava em pé. Silenciosa. O casaco ainda sobre os ombros, o corpo ainda quente do lado de fora, mas o coração já mergulhado naquela madrugada que parecia não passar.

Matheus dormia. Profundamente. Talvez por cansaço, talvez por proteção. Amanda o observava da beira da cama, como se o sono dele fosse uma coisa sagrada, inalcançável — ou como se ela mesma não soubesse se merecia estar ali.

Ela não sabia que horas eram, só que a noite já tinha atravessado seu centro. A escuridão do quarto parecia mais escura do que nunca. Como se tudo tivesse parado ali, entre os dois.

Deu dois passos para trás. Andou devagar até a varanda. Abriu a porta com cuidado, como se temesse quebrar o silêncio.

A cidade estava quieta. Não uma quietude pacífica — era aquela calma melancólica que vem depois do furacão. Um carro cruzava a avenida, solitário, com os faróis recortando a escuridão como navalhas. Um grupo de jovens andava rindo, meio bêbados, meio tristes, como se tentassem esquecer que o mundo estava acabando devagar. Dois gatos se enfrentavam em silêncio num canto qualquer da rua.

Amanda se encostou na grade da varanda. Os olhos secos. Não conseguia chorar. Não mais. O choro parecia ter se esgotado em algum ponto entre o táxi da volta e a porta do apartamento.

Ela sentiu a presença antes de ouvir a voz.

— Amanda?

Matheus estava de pé, na porta da varanda. A cueca preta, os olhos inchados de sono, o cabelo bagunçado. Ele parecia menor do que era. Como se aquela madrugada tivesse envelhecido os dois.

Ela virou apenas o rosto, sem se afastar da vista.

— Não consegui dormir.

— Já são quase quatro da manhã — ele disse, olhando o relógio do micro-ondas lá dentro, de longe.

Amanda assentiu. Depois respirou fundo, como se estivesse prestes a pular de um penhasco.

— Eu fui, Matheus.

Silêncio.

— Mas não aconteceu.

Ele encostou na parede da varanda, os braços cruzados, o maxilar tenso.

— Por quê?

Ela demorou. Não por hesitação — mas porque precisava encontrar palavras que não soassem pequenas demais para a dor que sentia.

— Porque eu precisava descobrir se era ali que tudo acabava. Ou recomeçava.

— E era? — ele perguntou, num fio de voz.

Amanda olhou a cidade outra vez.

— Era só o eco de algo que já morreu.

Matheus abaixou os olhos. Como se aquilo fosse uma derrota. Mas não dela. Não dele. Da história.

Ela virou de frente para ele agora. Falava mais baixo.

— Ele tentou. Tentou me fazer lembrar. Me tocar. Me puxar de volta. Mas… eu só conseguia enxergar alguém tentando transar com uma lembrança.

— E você? — ele arriscou. — Queria?

Amanda hesitou.

— Quis. Achei que queria. Mas quando ele me olhou, eu entendi. Não era ele que eu tava buscando. Era um lugar dentro de mim que eu perdi.

Ela respirou fundo. Fechou os olhos.

— Eu não fui pra ele. Fui pra fugir de mim.

Matheus assentiu. Lentamente. Depois a encarou, firme:

— E conseguiu?

Amanda sorriu. Um sorriso trágico, breve, exausto.

— Não. Eu me segui até lá. E me achei sentada na cama de outro homem, querendo voltar pra mim.

Eles ficaram em silêncio. O tipo de silêncio que só existe entre dois que já se amaram até o fim.

— Eu achei que ele era o fim — ela disse, quase num sussurro. — Mas talvez ele tenha sido só a cicatriz.

Matheus se aproximou, tocou de leve sua mão, sem força. Era quase um gesto de despedida, ou de reconhecimento mútuo.

— Então o que somos agora? — ele perguntou.

Amanda olhou para ele. Olhos de quem voltou de um lugar muito distante.

— Somos o que sobrou depois da queda.

E a madrugada seguiu. A cidade respirava devagar. E ali, naquele apartamento, dois fantasmas ocupavam o mesmo espaço tentando entender se ainda estavam vivos.

Saíram do quarto pouco depois de Amanda recusar o vinho. Cadu tentou trazer leveza — colocou música suave, acendeu uma vela no canto da sala, até brincou com o interruptor da luminária, como se aquele jogo de luzes pudesse reacender o que estava morrendo entre eles. Mas Amanda seguia num silêncio difícil de decifrar. Não era medo. Nem insegurança. Era como se estivesse ali e ao mesmo tempo longe, num lugar onde ele não conseguia alcançá-la.

— Tá tudo bem? — ele perguntou, aproximando-se mais uma vez.

Ela hesitou, mas deixou que ele tocasse seu braço. O toque era quente. Familiar. Mas o corpo dela não respondeu. Nem o sangue acelerou. Apenas uma lembrança se acendeu: aquela noite na sala de monitoria, entre as pernas abertas, a respiração descompassada, o desejo pronto. E, ainda assim, ela o parou.

Agora, anos depois, ela estava ali de novo. E, mais uma vez, travada.

— Você sabe, né? — disse ela, quase num sussurro.

— Sei o quê?

— Que isso aqui... não vai se completar.

O silêncio de Cadu pesou como uma sentença. Ele se afastou lentamente. Foi até a cozinha, pegou a garrafa de vinho, serviu-se de um copo e tomou tudo de uma vez. Depois, se encostou no batente da porta e a encarou.

— Duas vezes, Amanda. Duas.

Ela engoliu seco.

— Não é por mal...

— Não é por mal? — ele riu, sarcástico. — Você tem ideia do que fez comigo? Da imagem que me deixou por anos? Aquela cena, você ali, entre os livros, dizendo “não” com os olhos cheios de vontade... E agora aparece aqui, entra no meu quarto, deita na minha cama, e quer o quê? Um final bonito?

Amanda se defendeu:

— Eu pensei que queria isso. Achei que era o que faltava...

— Não era o que faltava. Era o que você queria acreditar que faltava! — ele cortou, a voz baixa, firme. — Porque você só enxerga você. Você queria ser desejada por mim. O professor desejado por todo mundo desejando só você. Era isso, né?

Ela empalideceu. Aquilo doía. Mas doía porque era verdade — ou parte dela.

— Cadu...

— Você não me queria. Queria o desejo que eu sentia por você. Você se alimenta disso. Se alimentou por dez anos. Me jogou na sua terapia, no seu casamento, no seu drama. Agora me joga na sua busca por salvação?

Ele se aproximou. Havia raiva nos olhos, mas também decepção, e talvez — lá no fundo — ainda amor.

— Você me fez te desejar de novo. Me fez esperar. Me fez preparar tudo. E quando você chegou, Amanda... eu juro que achei que ia ser diferente. Mas você não quer ninguém. Nem a mim. Nem ele. Você quer um espelho que diga que ainda é especial.

Amanda chorou. E dessa vez, não havia força para rebater. Sentou-se na cama. Ele sentou ao lado, exausto.

— Não é você, Cadu... É que... o que eu procurei em você morreu no momento em que eu descobri que não era aqui que estava o meu fim.

Ele riu, mas sem humor.

— Da mesma forma que não completou no passado, vai fazer o mesmo com o presente?

Ela o olhou.

— No futuro, ele retornará — ele completou, sarcástico, quase como uma praga.

Amanda respirou fundo. Os olhos quentes, mas calmos.

— Hoje, ele morreu.

Longo silêncio. Depois, ele se deitou, de costas. Ela deitou também, de lado, olhando o teto. Nenhum toque. Nenhum avanço. Só dois corpos dividindo uma cama que não aconteceu. Como da primeira vez.

Talvez fosse mesmo o fim. Mas um fim silencioso. Sem gozo. Sem dor física. Só o luto de tudo o que poderia ter sido — e não foi.

Amanda respirou fundo. A luz fraca da luminária tremia, refletindo nas paredes como se também ela estivesse exausta. Cadu continuava deitado, de olhos fechados, sem tocar nela. E foi nesse espaço vazio, entre os dois, que Amanda encontrou coragem para falar.

— Cadu… — ela começou, a voz rouca, quase quebrada. — Eu não sei mais quem eu sou.

Ele não respondeu. Mas também não virou o rosto. Era tudo o que ela precisava.

— Durante muito tempo, eu achei que tinha perdido algo. Que o que a gente viveu naqueles corredores, naquela sala… era o começo de uma história que nunca foi escrita. E eu fiquei anos me perguntando como teria sido. Quem eu teria sido se tivesse ido até o fim com você.

Ela se sentou devagar, puxando o lençol para cobrir as pernas, como se quisesse esconder a própria nudez emocional.

— Só que, quando te vi de novo, tudo parecia vivo. O desejo, a lembrança, a fantasia… Mas agora eu percebo que talvez você nunca tenha sido um “começo”, Cadu. Talvez você tenha sido só… o que sobrou da parte de mim que ficou perdida.

Ela olhou para ele. Os olhos ainda fechados, mas o maxilar tenso denunciava que ele estava ouvindo tudo.

— Eu me masturbei pensando em você. Achei que isso fosse amor. Mas depois chorei, sozinha, sentindo o cheiro do Matheus. Não porque ele fosse melhor. Mas porque, no fundo, eu ainda estava procurando por mim… E a verdade? Nem com você, nem com ele, eu me encontrei.

Agora havia lágrimas descendo. Mas não eram desesperadas. Eram calmas. Límpidas. Como uma liberação.

— Eu queria que isso aqui curasse algo. Que me desse uma resposta. Mas tudo o que encontrei foi mais silêncio. E, por mais doloroso que seja… esse silêncio me respondeu. Não é aqui. Não é mais aqui.

Ela se levantou. Foi até a sala, pegou a bolsa. No corredor, parou. Voltou os olhos para o quarto, onde Cadu continuava deitado, imóvel.

— Me perdoa. Por ter feito você reviver isso. Por ter me usado de novo. E… obrigada. Por ter me mostrado que o que me faltava não era você. Era o fim.

Abriu a porta devagar. O corredor estava escuro. E a madrugada, lá fora, mais silenciosa do que nunca.

Amanda saiu. E não olhou para trás.

...

Matheus não soltou a mão dela. Amanda também não puxou.

A varanda, aquela caixa suspensa sobre a cidade, virou tribunal silencioso. Tudo ali tinha peso de sentença. O gesto dele. O olhar dela. A ausência de lágrimas. O cansaço. A noite.

Ela ainda segurava o casaco como uma armadura. Não sabia se queria ficar ou sair correndo. O corpo inteiro doía, mas era uma dor invisível — feita de escolhas e abismos.

Matheus a puxou levemente pela mão. Não com desejo. Com luto.

Voltaram para o quarto. Como quem volta de um velório. Lentamente. Em silêncio.

Ela tirou o casaco, dobrou com cuidado, como se o pano carregasse as últimas memórias de um tempo que não voltaria. Matheus se sentou na beira da cama. Não disse nada. Não sabia mais se era o homem da vida dela ou só o último a tentar segurá-la.

Amanda ficou de pé por um instante. Olhou o quarto como se já não fosse mais dela. As paredes, os quadros, a cama desfeita… Tudo parecia distante, como a casa de infância de alguém que a gente visitou só nos sonhos.

Sentou ao lado dele. Sentiu o calor do corpo dele e se lembrou de quantas noites foram salvas só por estarem ali, juntos.

— Você me odeia? — ela perguntou, encarando os próprios joelhos.

Matheus demorou para responder. Quando respondeu, a voz veio quebrada.

— Não. Mas eu tô me perguntando se ainda sei amar você do jeito que você precisa.

Ela mordeu o lábio. Baixou os olhos.

— Eu também me pergunto se ainda sei ser amada.

O silêncio voltou. Só que agora era um silêncio de fim de festa. O tipo que vem depois que a música acaba e as luzes acendem.

Matheus deitou, puxou o lençol até a cintura. Amanda hesitou, depois deitou também. Ficaram lado a lado, os corpos próximos, mas não colados. Ela de costas. Ele olhando o teto. A cama parecia maior do que nunca.

Ela fechou os olhos. Quis dormir. Quis desaparecer. Quis voltar no tempo.

— A gente se perdeu, né? — ela murmurou.

— A gente se escondeu — ele respondeu. — Atrás da dor, da rotina, das certezas que já não existem.

Amanda virou o rosto devagar. Não pra ele. Pro lado. Pro nada.

— Então me diz… o que a gente faz agora?

Matheus respirou fundo. A respiração pesada de quem vai dizer uma verdade que não quer dizer.

— Agora… a gente sobrevive à ausência. Um do outro.

O quarto ficou pequeno. E ao mesmo tempo, enorme.

Amanda fechou os olhos. O peito doía. A garganta queimava. Mas não havia mais o que chorar. Só restava dormir. Ou tentar.

Matheus apagou o abajur.

E a última coisa que Amanda viu foi a sombra dele se dissolvendo na escuridão.

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