Do Paraíso ao Abismo 4.

Um conto erótico de Lukinha
Categoria: Heterossexual
Contém 5159 palavras
Data: 11/11/2025 15:19:51

O riso debochado dele ecoou pelo saguão como se tivesse sido ensaiado. Ficou ali, parado, a mala ao lado, olhando para Ana com aquele ar de quem espera ver um escândalo, uma reação qualquer, um vacilo que confirmasse o veneno das palavras que tinha acabado de soltar.

Sem pensar, dei um passo à frente. Me coloquei entre os dois. Sempre fui ensinado a respeitar as pessoas, a manter o controle, mas também aprendi que não se deixa uma mulher ser ofendida, ainda mais a minha.

— Ei. — Falei, tentando manter a voz firme, sentindo o sangue ferver. — Cuidado com o que você diz.

Ele não recuou. Continuou sorrindo, mas o sorriso mudou, deixou de ser só deboche e ficou sombrio, venenoso. Se aproximou até quase encostar o rosto no meu, seu hálito cheirava a uísque e provocação.

— É sempre assim, né? — Sussurrou. — Dizem que o cor... ops, o mané... é sempre o último a saber.

Meu instinto foi fechar o punho. Por um segundo, a ideia de quebrar aquele sorriso falso passou pela minha cabeça como um raio. Mas Ana estava atrás de mim. E isso bastou pra eu respirar fundo e segurar o impulso.

— Vai embora, antes que eu perca o pouco respeito que ainda tenho por você. — Falei, furioso, entre os dentes.

Ele deu um risinho, satisfeito, pegou as malas e virou as costas, andando como se desfilasse numa passarela. O ar inteiro do saguão ficou pesado.

Antes de entrar no carro, ele ainda olhou pra trás e gritou:

— O pior cego... você conhece o ditado, né?

E saiu rindo, alto, com aquele som irritante que ficou ecoando até o barulho do motor engolir tudo.

Fiquei parado, sentindo o coração batendo forte, o gosto amargo da raiva na boca. Olhei para Ana. Ela não disse nada. Estava pálida, o olhar distante, como se quisesse estar em qualquer lugar, menos ali.

Eu queria perguntar o que diabos aquilo significava, mas não consegui. Tinha algo no silêncio dela... algo que me travou. O clima entre nós ficou tão pesado que parecia preencher o ar. Era o tipo de silêncio que não dá pra disfarçar com um abraço, nem com um beijo. Era um silêncio que gritava.

Subimos pro quarto em silêncio. A trilha programada para o fim da tarde ficou esquecida. Não havia mais clima para nada. Era impossível pensar em cachoeiras, pássaros ou horizonte depois da cena no restaurante.

Deitei na cama, calado, os olhos fixos no teto, tentando colocar os pensamentos em ordem. O que aconteceu lá embaixo não saía da minha cabeça. A forma como ele chegou, sorridente, a surpresa dela... e, de repente, o ódio. Tinha algo errado naquela história, algo que não batia.

Ana se aproximou devagar, sentou-se à beira da cama, o olhar inseguro.

— Jorge... — Chamou, quase num sussurro.

Levantei uma das mãos, pedindo apenas um pouco de tempo.

— Me dê um minuto... por favor.

Ela assentiu, silenciosa. O quarto estava tomado por um silêncio desconfortável, daqueles que parecem mais pesados do que qualquer briga.

Depois de alguns minutos, me virei para ela. Seus olhos estavam marejados, o rosto cansado, a postura caída. E mesmo assim, havia algo ali que eu não conseguia decifrar. Algo entre o medo e o cálculo.

— O que foi aquilo, Ana? — Perguntei, por fim. — Por que o seu primo tem tanto ódio de você?

Ela abriu a boca, mas nada saiu de imediato. Antes que conseguisse formular qualquer desculpa, eu continuei, tentando manter o tom calmo:

— Eu entendo as coisas que você me contou sobre sua família. Mas, sinceramente... aquilo foi estranho. Ele veio sorridente, parecia feliz por te ver. E você... simplesmente o arrastou pra fora, como se ele tivesse uma doença contagiosa. Como se fosse perigoso.

— Jorge, eu... — Ela balbuciou, os olhos fugindo dos meus. — Minha relação com minha família é... complicada...

Percebi que ela estava se perdendo nas próprias palavras, tentando me conduzir pra longe do que realmente importava. Interrompi antes que ela criasse mais uma cortina de fumaça.

— Eu sinto muito pelo que você passou, de verdade. Sei que deve ter sido difícil crescer num ambiente em que te faziam se sentir menor. Mas hoje... — Respirei fundo — …hoje foi você quem atacou primeiro, Ana. Foi você que...

Ela virou o rosto pra mim, e o olhar mudou. Passou da tristeza para uma raiva contida, felina.

— Você só ouviu uma parte da história, Jorge. E ainda assim acha que pode me julgar? — Sua voz saiu embargada, mas firme. — Você não tem ideia do que eu vivi, do que eu aturei...

Ela abaixou o tom.

— Eu te amo, mas se acha que já sabe de tudo só porque eu fui grosseira com uma pessoa que pisou em mim a vida inteira...

Fiquei sem reação por um instante. Vi as lágrimas começarem a escorrer, o tremor em seus lábios, e o arrependimento me atingiu como um soco. Me aproximei e a abracei forte.

— Me desculpa. — Sussurrei, apertando-a contra mim. — Eu me expressei mal. Não tô te julgando, nem dizendo que você é culpada. É só que... foi tudo muito rápido. Muito estranho.

Ela encostou o rosto no meu peito, respirando fundo. O corpo dela tremia um pouco, como se guardasse algo que não conseguia dizer.

Por um instante, o silêncio voltou a se espalhar entre nós. Mas o que pesava não era mais o que foi dito, e sim o que ficou sem resposta.

Preferi não continuar a conversa. Aquela tensão, aquele clima pesado, nada daquilo ia nos levar a lugar algum. Eu não queria vê-la chorando, nem me sentir o vilão da situação. Então respirei fundo, me levantei da cama e comecei a calçar o tênis.

— Perdemos a trilha, mas ainda dá pra aproveitar o resto do dia. — Falei, tentando soar leve. — Podemos fazer qualquer outra coisa. Ainda tem o mercado de artesanato aberto, lembra?

Ana me olhou surpresa, os olhos vermelhos de quem ainda segurava o choro.

— Achei que não estávamos bem... que você...

Não deixei que terminasse. Me aproximei e a abracei novamente, mais forte.

— Não vamos deixar aquele idiota estragar a nossa viagem, tá? — Sussurrei no ouvido dela. — Vamos sair, nos divertir, comer um doce... O que acha?

Ela demorou um segundo para reagir, mas logo o corpo relaxou nos meus braços.

— Tá bom. — Ela respondeu baixinho, forçando um sorriso. — Vamos, então.

Passamos o resto da tarde andando pelas lojinhas, tirando fotos, comendo doces típicos, fingindo que nada havia acontecido. E, por um tempo, realmente pareceu que estávamos bem de novo. Mas, por mais que eu tentasse, a imagem do primo dela não saía da minha cabeça. A forma como ele olhou pra mim, como falou dela… A raiva nos olhos, a ironia no sorriso...

Ana ria do meu lado, apontando uma lembrancinha qualquer numa vitrine. Eu retribuí o sorriso, mas por dentro, algo já tinha mudado. A dúvida, pequena, silenciosa, começava a se enraizar de vez.

O resto da viagem foi tranquilo e logo estávamos de volta à rotina. Ou, pelo menos, ao que parecia ser o normal.

Por um tempo, talvez um mês, Ana continuou naquela fase de atenção total: lanches prontos, mensagens carinhosas, voz suave no telefone, juras de amor… Mas, aos poucos, tudo foi voltando ao que era antes. Os dias de trabalho começaram a se estender, as chegadas foram ficando mais tardias... e logo, ela estava voltando para casa às duas, três da manhã.

Dizia que eram eventos, clientes importantes, imprevistos. Eu queria acreditar, me forçava acreditava. Ou tentava.

Até o dia, que por acaso, ou destino, ouvi a conversa que começaria a destruir o paraíso que eu fingia viver com Ana. O abismo se aproximava.

Era intervalo entre aulas na faculdade. Eu tinha acabado de entrar no banheiro, uma das cabines estava livre e eu fui direto para lá. Estava com a cabeça cheia, precisava de um minuto de silêncio. Só que o silêncio não durou muito.

Dois caras entraram, rindo alto, batendo as portas como se o banheiro fosse deles. A voz de um deles me chamou atenção.

— Mano, cê não tem noção da festa de ontem... Eu juro, nunca vi nada igual.

O outro riu.

— Lá no clube do fulano? Dizem que o bagulho é meio... liberal, né?

— Liberal é pouco! — O primeiro respondeu, entre risadas. — Os caras fazem o que quiserem, na frente de todo mundo. É tipo... swing, real!

— Caraca, e tu foi mesmo?

— Fui. E o melhor de tudo: acabei pegando uma mina da faculdade, acredita?

Fiquei em silêncio, imóvel.

— Sério? Quem? — O outro perguntou, animado.

— Não posso falar o nome, prometi manter o segredo — respondeu o primeiro, num tom divertido. — Mas mano... se eu te contar a coincidência... no começo ela fingiu que nem me conhecia, toda certinha, mas quando percebeu que eu sabia que ela tinha namorado, o jogo virou. Ele estuda no período da tarde.

— Jura? — O outro riu. — Cê pegou uma mina comprometida?

— Peguei. E mais: ela deixou eu entrar numa brincadeira com outras duas garotas. Tipo... revezamento. Nunca vi nada igual.

Os dois caíram na gargalhada.

— Tu tem certeza de que ela estuda aqui?

— Absoluta. Aquele cabelo preto liso, corpo fino, meio baixinha, olhar de santa, mas… — ele deu uma risada abafada — ...de santa não tem nada. E aquele sotaque? Que delícia gemendo no ouvido…

A risada ecoou pelo banheiro e os dois saíram, ainda trocando piadas. Eu continuei lá, parado. As palavras se repetindo na minha cabeça como um eco maldito.

“Cabelo preto liso, baixinha, olhar de santa… sotaque”.

Era coincidência demais aquela descrição… Ana vinha falando que o trabalho estava cansativo, os clientes como exigentes… e eu, como um idiota, acreditando em cada palavra.

Saí da cabine devagar, lavei o rosto, e olhei pro espelho. A imagem que me encarava parecia de outro homem… um homem tentando desesperadamente não pensar no que acabara de ouvir. Na associação inevitável entre pessoa e descrição.

Mas a dúvida… Aquela maldita dúvida ...Já não era mais uma semente. Era uma árvore inteira crescendo dentro de mim.

Dias depois, eu caminhava pelo corredor, cabeça baixa, mergulhado em pensamentos, tentando ignorar o burburinho da faculdade. As vozes sempre se misturavam: risadas, conversas, passos apressados… mas naquele dia, uma delas atravessou o som ambiente como uma navalha.

— Olha lá, o playboy. — Disse alguém, num tom de deboche. — O que tem de dinheiro, tem de otário.

Fingi não ouvir. Segui andando, coração apertado, cabeça a mil. Mas a voz continuou, ainda mais alta, ainda mais certeira:

— Com esse sobrenome, ele podia estar pegando geral, passando o rodo… Mas não. Foi se apaixonar logo por aquela sonsa do curso de Administração.

Meu estômago revirou. O riso de um pequeno grupo se espalhou no corredor. Antes que eu reagisse, ouvi outra voz, a de um dos colegas de turma, tentando acalmar o clima:

— Deixa de ser babaca, cara. Ele tá ouvindo tudo.

Mas o provocador não parou. Pelo contrário. Deu um passo à frente e soltou, com a voz arrastada, carregada de sarcasmo:

— É pra ouvir mesmo. Quem sabe acorda, né? — Ele fez uma pausa, me encarando com deboche. — Cego do caralho... Aquela lá não presta.

O silêncio que se seguiu foi pesado, sufocante. Senti todos os olhares do corredor em mim, curiosos, alguns até com pena.

Não disse nada. Só continuei andando. O som dos meus próprios passos parecia mais alto que o normal, como se ecoasse o que eu tentava reprimir: raiva, vergonha, dúvida.

Por dentro, eu fervia. Mas não podia dar o gosto a ninguém. Se tem algo que aprendi com meu pai, é que homem da minha família não se rebaixa a discutir com quem quer apenas te ver cair.

Mesmo assim, as palavras ficaram ali, batendo, batendo, martelando… “Cego do caralho… aquela lá não presta.”

Eu comecei a me perguntar se, talvez, eles não estivessem vendo algo que eu ainda me recusava a enxergar.

Quando saí do prédio, o ar da noite pareceu mais pesado que o normal. Cruzei o estacionamento com o estômago revirando, aquela sensação de que algo dentro de mim se partia em silêncio.

Foi quando vi o Murilo, encostado no meu carro, cigarro aceso entre os dedos.

— Tô a pé hoje. — Disse ele, dando um trago e soltando a fumaça devagar. — Rola uma carona?

— Claro, entra aí.

Mas nem cheguei a abrir a porta. Ele me olhou de cima a baixo, franzindo a testa.

— Que foi, Jorge? Tá branco, cara. Aconteceu alguma coisa? Quer que eu dirija?

Apoiei as mãos no capô e balancei a cabeça.

— Sei lá, Murilo... acho que eu devo ser o maior otário do mundo.

— Ih... lá vem. — Ele apagou o cigarro, curioso. — O que rolou?

— Todo canto que eu vou tem alguém cochichando, rindo, apontando... falando da Ana.

Murilo bufou.

— Ah, pronto. Deixa eu adivinhar: inveja.

— Inveja? — Ri, nervoso. — Cara, não é só isso. O povo falando, sem nem ao menos disfarçar… Ana vive chegando tarde, inventando desculpas. Eu nem sei mais o que pensar.

Ele cruzou os braços.

— Jorge, na boa... o povo é cruel. Adora destruir quem brilha. A Ana é linda, inteligente, chama atenção. É natural que inventem coisas. E você, então? Herdeiro, filho de empresário bem sucedido, vida feita... junta a inveja dos dois, e pronto: é a fórmula da fofoca perfeita.

— Eu queria acreditar nisso, Murilo. De verdade. Mas tá difícil. Ela chega em casa de madrugada quase todo dia, vive cansada, desligada. E, pra piorar, até a Sara se afastou da gente. Disse que não aguenta ficar perto da Ana.

Murilo manteve o tom calmo.

— A Sara sempre teve uma língua afiada. Vai ver é ciúmes, vai saber.

— Não, cara... não é só isso. — Passei a mão pelos cabelos, exausto. — Eu tentei conversar com a Ana. Ela desconversa, diz que é o trabalho, que o chefe pressiona… Mas não sei... tem coisa ali que não fecha. E quando eu falo, ela vira o jogo. Me faz sentir culpado, como se eu fosse um paranoico.

Murilo se aproximou um pouco, apoiando no carro.

— Jorge, olha pra mim. — Ele falava sério agora. — Eu conheço você, agora a Ana. Ela pode ser intensa, meio misteriosa, mas não é o tipo que trai. E se ela tá te escondendo alguma coisa, talvez seja outra coisa... algo que ela não quer te preocupar.

— Você acha mesmo isso?

— Acho. — Ele suspirou. — Às vezes, quem ama também erra tentando proteger.

Fiquei em silêncio por um tempo. O barulho distante dos carros parecia o som de uma cidade zombando da minha ingenuidade.

— Murilo, se eu estiver errado sobre ela... se eu estiver julgando mal... — Olhei pra ele — então eu mereço mesmo ser o otário da vez.

Ele deu um meio sorriso e me deu um tapa leve no ombro.

— Ninguém é otário por sentir demais, irmão. Só não deixa o veneno dos outros te cegar. Confia no que você vive com ela, não no que te contam.

Por um instante, aquelas palavras fizeram sentido. Mas no fundo... o vazio, e a dúvida, continuavam ali, latejando.

Murilo estava jogado no banco do passageiro, com uma perna apoiada no painel, mastigando um chiclete e tentando quebrar o silêncio que dominava o carro.

— Cara, sério… você tá deixando isso te consumir. — Ele disse. — O povo fala demais. É inveja, pura inveja.

— Inveja? — Retruquei, sem tirar os olhos da estrada. — Murilo, toda semana inventam uma nova história. Agora, parece que até na faculdade já virou piada.

— E você vai dar ouvidos a esses babacas? — Ele rebateu. — As mulheres invejam a Ana porque ela tem o que elas nunca vão ter: um cara como você. E os homens só queriam estar no seu lugar.

Balancei a cabeça, tentando conter a irritação.

— Não sei, velho. Ela muda de humor o tempo todo. Some, chega tarde, e quando tento conversar, diz que é o trabalho.

— Trabalho, pô! — Ele disse, rindo. — Aquele trampo que ela arrumou vive inventando eventos. O chefe dela é um velho babão, a culpa não é dela. E você acha mesmo que a Ana ia jogar tudo fora por causa de uns figurões de terno e barriga de chope?

Soltei um suspiro pesado. Murilo parecia saber demais sobre a vida da Ana. Ele continuou.

— Ana é uma garota tranquila, que te ama, e jamais o machucaria. Vai por mim, irmão. Sei do que eu tô falando.

Continuei dirigindo calado, sentindo a cabeça girar. Era estranho ver o Murilo daquele jeito. Sempre foi o primeiro a desconfiar de tudo e de todos, a fazer piada com mulher bonita demais.

— Engraçado… — Murmurei. — Você sempre dizia para eu tomar cuidado, que mulher é encrenca. Agora tá aí, defendendo a Ana com unhas e dentes.

Ele deu uma risada curta.

— É que dessa vez, eu vi que você tá apaixonado de verdade. Não quero que estraguem isso por causa de boato.

— Sei… — Falei, desconfiado. — Você, o cara que nunca passou de um mês com ninguém, falando em amor.

— Vai ver eu tô ficando velho… — Ele respondeu, rindo de si mesmo.

Parei o carro na frente da casa dele. Murilo abriu a porta, mas antes de sair, se inclinou e disse:

— Valeu pela carona, irmão. E, sério, relaxa. Confia na tua mulher. Ela é quente, intensa… mas é tua.

Ficou ali parado, rindo. “Quente? Intensa?” Que porra ele estava falando?

Ele deu dois tapinhas no capô antes de seguir para o portão. Fiquei observando ele entrar, sem entender direito o que me incomodava mais: as fofocas que eu tinha ouvido ou o jeito com que ele falava da Ana.

Mais tarde, já em casa, o relógio marcava duas e sete da manhã quando ouvi a chave girar. Ana entrou tropeçando, o salto batendo no piso frio, o cabelo despenteado, a maquiagem borrada.

— É sério, Ana? Olha a hora, olha o seu estado. — Esbravejei, tentando manter a calma.

Ela riu, com a fala arrastada.

— O chefe pediu pra eu entreter uns investidores. Chato pra caramba. Mas eu me comportei, viu?

Ela se aproximou rindo, com o hálito de álcool e os olhos meio vidrados. Passou a mão entre minhas pernas e sussurrou:

— Fica tranquilo, amor… eu só dancei um pouquinho, ri das piadas deles… nada demais.

Segurei os pulsos dela, firme.

— Você tá bêbada.

— Tô feliz… de te ver — Ela respondeu, rindo.

Levei-a até o banheiro, tirei sua roupa, liguei o chuveiro e a coloquei sob a água fria. Ela protestou, riu, depois xingou, e por fim, desabou. Seu corpo estava marcado, mas antes que eu pudesse ver melhor, assim que tentei virá-la, ela desabou.

Esqueci seu corpo e a coloquei na cama, de bruços. Só então, pude ver com mais clareza: vermelhidões no quadril, pequenas manchas roxas nas nádegas. Fiquei paralisado, o coração disparado.

Sentei na beira da cama, olhando para ela, sentindo o peito apertar. A mulher que dormia ali não era a mesma pela qual eu me apaixonei.

Finalmente, comecei a admitir para mim mesmo o que até então eu tentava negar.

Fiquei sentado na beira da cama por longos minutos, observando Ana dormir. O rosto relaxado, o cabelo molhado espalhado no travesseiro, a respiração pesada. Ela parecia em paz. E isso me corroía.

Peguei o celular, sem saber exatamente o que fazer. As mensagens antigas entre mim e a Sara ainda estavam ali, paradas no topo da conversa, como uma lembrança de uma época em que tudo parecia mais simples.

Digitei: “Oi, há quanto tempo... Podemos conversar?”

Fiquei encarando a tela, esperando que o visto azul aparecesse. Nada. O relógio avançava, o silêncio da casa me sufocava, e a cada vez que eu olhava para Ana, a imagem voltava com mais força: o riso arrastado, a maquiagem borrada, o cheiro de álcool, as marcas em seu corpo…

Deitei por um instante, mas o sono não veio. Era como se cada respiração dela fosse uma provocação. Eu queria acreditar que era exagero, que aquelas manchas tinham outra explicação. Mas algo dentro de mim gritava que não. Não consegui dormir.

Quando o dia começou a clarear, o celular vibrou com a resposta da Sara: “Há quanto tempo mesmo... Podemos sim. Por aqui mesmo?”

Um sorriso involuntário me escapou. Eu não achava que a Sara fosse responder, muito menos tão casual, de forma leve.

Respondi: “Melhor pessoalmente. Quer tomar café da manhã comigo?”

Ela respondeu em segundos: “Tô em casa. Vem aqui.”

Olhei as horas e mal passava das seis. Ana continuava apagada. Me levantei devagar, tentando não fazer barulho. Vesti a primeira roupa que encontrei, peguei a carteira e o celular, e saí.

O ar da manhã estava frio, mas não o suficiente para aliviar o peso no meu peito. Eu não sabia se ia atrás de respostas ou apenas de alguém que me ouvisse sem me julgar.

Enquanto dirigia, percebi que a raiva tinha tomado o lugar da dúvida. Eu não queria mais entender. Queria apenas parar de me sentir idiota.

Quando parei o carro em frente ao prédio da Sara, fiquei alguns segundos segurando o volante, respirando fundo, tentando organizar o que eu queria dizer. Mas as palavras simplesmente não vinham. Toquei o interfone e a voz dela, leve como sempre, soou do outro lado:

— Sobe, a porta está destrancada.

O elevador parecia mais lento do que nunca. Quando finalmente cheguei, a porta do apartamento estava entreaberta, e o cheiro de café recém-passado tomou conta do corredor.

Ela apareceu na sala, de moletom largo e cabelo preso num coque desajeitado. Sorriu assim que me viu, e antes que eu dissesse qualquer coisa, me puxou para um abraço. Aquele abraço conhecido, sincero, que me desmontou completamente.

— Achei que não ia me responder... que ainda estivesse com raiva. — Falei, sem jeito, sem saber onde enfiar as mãos.

Sara se afastou só o suficiente para me encarar. O olhar dela era direto, mas havia um brilho de carinho ali.

— Eu disse que ia estar aqui quando você caísse na real, não disse? — Ela provocou, com um meio sorriso. — E então, abriu os olhos? Enxergou o que eu já tinha visto a quilômetros? Que aquela mulher é falsa, manipuladora...

Ela respirou fundo, como quem tenta conter a própria língua, e completou num tom mais baixo:

— Enfim... eu tava com saudade, seu idiota.

Não aguentei e ri, nervoso. Porque era mais fácil do que admitir o nó que eu sentia no peito.

— Eu também senti, Sara. Mais do que imaginei.

Ela fez um gesto para que eu me sentasse. Serviu o café, colocou a caneca diante de mim e se sentou do outro lado da mesa. Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que ela perguntou, sem rodeios:

— Ela aprontou, não é?

Olhei para a xícara, girando o café sem coragem de olhar para ela.

— Eu não sei... — Respondi. — Quer dizer, acho que sei, mas ainda tô tentando entender o que aconteceu.

Sara me observava como quem já sabia a resposta, mas me deixava chegar lá sozinho.

— Ontem ela chegou tarde, de novo. Bêbada. Com cheiro de bebida, de cigarro... — Pausei, sentindo a garganta secar. — E... havia marcas.

— Marcas? — Ela repetiu, mais séria.

— No corpo dela. Marcas de... de sexo. — Confirmei, sentindo as lágrimas começando a se formar nos meus olhos.

Sara se recostou na cadeira, cruzando os braços. Ficou alguns segundos sem dizer nada. Depois, num tom mais calmo do que eu esperava, disse:

— Eu queria estar surpresa, Jorge. De verdade. Mas não tô.

— Eu não quero acreditar nisso... — Falei, a voz embargada. — Não quero pensar que a mulher com quem eu dividi tudo, que eu defendi de todo mundo, pudesse estar me enganando assim.

Sara esticou a mão e segurou a minha.

— Às vezes, a gente ama tanto a pessoa que idealizamos, que esquecemos de olhar para a pessoa real.

Fiquei em silêncio. As palavras dela me atravessaram como uma lâmina.

— E agora? — Perguntei. — O que eu faço, Sara?

Ela me encarou com firmeza.

— Primeiro, você respira. Depois, você para de se culpar. E quando estiver pronto... você enfrenta. Não por vingança. Por respeito a si mesmo. — Ficamos ali, em silêncio, apenas olhando um para o outro.

Sara se levantou, foi até o fogão e começou a preparar pão na chapa. O cheiro da manteiga derretendo na frigideira se espalhou pelo apartamento. Em poucos minutos, ela voltou com dois pratos, um pequeno cesto de biscoitos e uma tábua com queijo fatiado.

— Come… — Ela disse, com aquele tom firme que não admitia discussão. — Você tá pálido.

Sentei-me novamente e peguei um pedaço do pão. Ainda quente, crocante. O gole do café quase me devolveu a sensação de estar vivo.

Enquanto eu comia em silêncio, ela me observava. O olhar não era de pena, nunca foi, era de quem estava decidindo se podia ou não dizer algo. E, de repente, ela quebrou o silêncio:

— Jorge... você confia em mim?

Levantei os olhos. A pergunta me pegou de surpresa.

— Hoje, mais do que nunca. — Respondi. — Você foi a primeira a... bom, a me avisar.

Ela manteve o olhar fixo, séria, como se me estudasse.

— Então me dê mais alguns dias. Não muitos — Disse, baixando o tom. — Eu prometo que tudo vai ficar bem.

Franzi a testa, confuso.

— Do que você tá falando, Sara? É alguma surpresa? Por que esse mistério?

Ela deu um meio sorriso, mas os olhos continuavam sérios.

— Podemos dizer que sim. Uma surpresa. É que... eu quero fazer as coisas direito, perfeitas.

Peguei outro pedaço de pão, mastiguei devagar, tentando decifrar o que ela queria dizer.

— Sara, você tá me deixando mais nervoso. — Tentei brincar. — Fala logo, o que você descobriu?

Ela balançou a cabeça, quase rindo.

— Ainda não. Promete que vai confiar em mim até lá?

Suspirei, olhei para ela por um momento e me rendi.

— ok! Prometo.

Ela sorriu, mas havia um peso naquele sorriso.

— Então, não brigue com ela. Não a confronte. Espere por mim. Só mais alguns dias, por favor.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Eu não sabia se sentia alívio por ter alguém cuidando de mim ou medo do que ela pudesse revelar.

Quando me despedi, ela me abraçou forte. Um abraço diferente, cheio de propósito.

No caminho para o carro, senti o estômago embrulhar. O café, o pão... tudo pesava. E a cabeça, principalmente.

Os dias se arrastaram. Eu acordava cedo, ia para a empresa, tentava trabalhar, faculdade à noite, mas não conseguia parar de pensar no que Sara tinha dito. “Espere por mim.” A frase se repetia na minha cabeça como uma música.

Ana parecia fingir que nada tinha acontecido. Me esperava com sorrisos, café, e perguntas doces, mas havia algo no olhar dela que me deixava em alerta. Era como viver numa casa bonita com o teto prestes a desabar. E eu sabia, no fundo, que a rachadura já estava lá, escondida, crescendo.

Na manhã de quinta-feira, sentado à mesa da diretoria, fingindo prestar atenção em uma reunião, o celular vibrou. Uma mensagem anônima. Sem remetente. Sem nada. Apenas uma frase:

“Prédio do curso de economia, galeria dos fundos. Terceira porta à esquerda. Se quiser saber a verdade sobre a Aninha, dê uma passada por lá na segunda aula.”

Senti o sangue gelar. Levantei o olhar, mas tudo ao meu redor parecia distante. As vozes ao meu redor soavam como um zumbido. A promessa à Sara ecoava em mim: “Espere por mim.”

Mas como esperar depois daquela mensagem? Eu precisava saber, ter a certeza.

Disse ao meu pai que teria um assunto da faculdade para resolver após o almoço e ele me liberou pelo resto do dia.

Eu não aguentava mais viver em agonia, ouvindo as indiretas e as piadinhas da galera. Era hora de dar um ponto final a tudo aquilo. Peguei o celular e reli a mensagem maldita de um número desconhecido, a que destruiu tudo o que eu acreditava ser real:

“Prédio do curso de economia, galeria dos fundos. Terceira porta à esquerda. Se quiser saber a verdade sobre a Aninha, dê uma passada por lá na segunda aula.”

Agora eu estava ali, diante do portão de acesso à galeria. A coragem me faltava, mas a dúvida me corroía. Eu precisava saber. Caminhei com as pernas trêmulas, pesadas, como se o chão me puxasse para trás.

Quando me aproximei da porta, ouvi. A voz era dela. Inconfundível.

— Você sabe que eu não resisto... Por que continua fazendo isso comigo? — A voz de Aninha soou quase num sussurro.

— Eu só te chamei. Se tu não resiste, se não consegue ficar longe, que culpa eu tenho? — Respondeu uma voz masculina. Uma voz que eu conhecia, mas não conseguia associar a um nome.

— Quem manda tu ser tão gostoso? Quem mandou ter um pau desse tamanho? — Disse ela, entre risos e desejo. — Quando não estamos juntos, eu até sonho contigo. Sonho com você me rasgando inteira, me preenchendo toda.

— E por que tu ainda continua com o Jorge? — Ele rebateu. — Não é certo o que a gente faz com ele. Às vezes, até me arrependo.

— Esquece o Jorge. — Ela cortou, ríspida. — Tira essa calça logo. Não posso perder mais de uma aula.

E então veio a frase que me tirou o chão:

— Uma diversão inocente de vez em quando não mata ninguém. Mas, Aninha... tu já fez o cara de corno com metade da galera. E isso apenas neste ano. O Jorge já é praticamente recordista mundial.

— E o que você sabe? Isso é intriga das invejosas. Todas querem o Jorge, mas ele me pertence. É meu.

{…}

Sara:

Eu ainda tentava entender como cheguei até eles. Sentei na poltrona, olhei para os dois e soltei, meio rindo, meio incrédula:

— Gente, isso é surreal... parece série de streaming. Um drama psicótico bem ruim.

A mulher ao meu lado, calma, mas com o olhar firme, suspira e balança a cabeça. Se eu já não soubesse de tudo, diria que são a mesma pessoa. Ela diz:

— Essa garota perdeu o juízo de vez. Já não basta tudo o que ela fez no passado, agora isso.

Eu olhei para ela por alguns segundos. O tom da voz carregava uma mistura de raiva e cansaço, de quem já lutou demais contra o mesmo fantasma.

O rapaz encostado na bancada, o primo dela, entra na conversa.

— Vocês precisavam ver como ela me tratou lá no Espírito Santo. Assim que eu me aproximei, que brinquei com o tal do Jorge, ela enlouqueceu. Me arrastou para fora do restaurante, me xingou... só faltou implorar pra eu não “estragar o esquema” dela.

Ele riu. Um riso amargo, carregado de lembrança ruim.

— Tenho certeza de que ela está em desespero agora. Ainda mais porque não agimos imediatamente. — Ele cruzou os braços, pensativo. — Ela já está há mais de dois meses em alerta, esperando o castelo de cartas desmoronar. Fiquei sabendo que perdeu a linha de vez, está se auto sabotando.

Fiquei quieta por um instante, observando o rosto dos dois. O ar da sala era pesado, mas ao mesmo tempo havia uma estranha sensação de alívio. Nós três estávamos prestes a colocar um ponto final naquela história absurda.

Respirei fundo, tomei um gole do café e disse:

— Então está decidido. Chegou a hora.

Os dois me encararam em silêncio, como se aquela simples frase carregasse todo o peso do que estava por vir.

Continua…

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Comentários

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O próximo capítulo vai ser tiro, porrada e bomba. Que sábado chegue logo hahahahah

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Agora a Onça vai beber água , o pai vai torar. Cara não demora a continuação não por favor!

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Agora vai desandar a maionese !!!

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