Capítulo XX Pt. II - O dia que a dor falou mais alto!
Caio narrando...
Quando a porta bateu atrás do Rafael, o som pareceu atravessar meu peito como um trovão. O silêncio que ficou depois foi quase sufocante, um vazio que me deixou sem ar. Eu fiquei parado no meio da sala, sem conseguir me mover, sentindo meu coração bater rápido demais, como se tentasse me arrancar para fora. Cada segundo sem ele parecia uma eternidade, um espaço frio que ia crescendo dentro de mim.
Peguei o celular com as mãos tremendo e comecei a ligar. Uma, duas, três vezes. A chamada seguia, mas ele não atendia. Aquele toque distante, repetitivo, era como um soco a cada tentativa. Então comecei a mandar mensagens, digitando sem pensar, como se as palavras pudessem puxá-lo de volta para mim:
“Rafa, por favor, me responde.”
“Eu exagerei, volta pra casa.”
“Eu te amo. Não faz isso comigo.”
Mas a tela continuava fria, sem resposta, sem um único sinal de que ele sequer tinha lido.
Eu andava de um lado para o outro, de um canto da casa para o outro, sentindo a presença dele em cada detalhe — o cheiro das nossas coisas, o caderno azul na mesa, a camisa jogada no sofá — e, ao mesmo tempo, a ausência que gritava. Era como se a casa tivesse sido esvaziada, mesmo ainda cheia de tudo que era nosso. Foi quando vi o caderno azul, quase me chamando. Fiquei alguns segundos olhando para ele, com medo de tocar, como se mexer ali fosse atravessar uma linha que só pertencia ao Rafael. Mas a saudade era maior que qualquer receio.
Peguei o caderno devagar. Abri nas primeiras páginas, sentindo o coração disparar. Havia rabiscos, frases soltas, ideias que ele costumava anotar — algumas nossas, outras só dele. Até que encontrei uma folha solta, diferente, recente. A caneta parecia quase fresca. Respirei fundo antes de ler, mas as palavras me acertaram como um raio.
“Caio, eu não sei escrever sem sentir.
E o que eu sinto por você é maior que qualquer palavra.
Eu quero a vida toda ao seu lado.
Quero acordar com o som da sua risada, quero brigar e fazer as pazes, quero envelhecer vendo as linhas do tempo nos seus olhos.
Não tenho medo do futuro desde que ele tenha você. Se um dia eu falhar, se eu tropeçar, saiba que ainda assim é você. Sempre foi você.”
A letra dele tremia um pouco, mas cada frase vinha carregada de uma certeza que eu nunca deveria ter duvidado. As lágrimas começaram a cair sem que eu pudesse controlar. Pesadas, quentes, molhando o papel antes mesmo de eu terminar de ler. Apertei a folha contra o peito, como se pudesse abraçar o Rafael através daquelas palavras.
— Por que eu fui tão idiota? — sussurrei, a voz falhando.
A culpa caiu sobre mim como uma maré violenta. Eu lembrei do olhar dele, da dor que vi quando briguei, da forma como ele sempre tentou me amar mesmo quando eu me fechava. E eu… eu tinha duvidado dele. Eu tinha machucado ele.
Com as mãos ainda trêmulas, abri o guarda-roupas. O cheiro dele saiu de lá como uma onda, e cada peça de roupa parecia contar uma história nossa. Mas uma em especial fez minhas pernas quase cederem: a camisa azul que ele usou no dia em que nos conhecemos. Aquela tarde na praia, o vento bagunçando o cabelo dele, as tatuagens aparecendo pela primeira vez… tudo voltou em um segundo. Peguei a camisa e levei ao rosto. O perfume suave, a memória daquele início, tudo me atingiu com uma força quase insuportável. Abracei a peça de roupa como se fosse ele, e chorei ainda mais, sem conseguir segurar.
Eu precisava fazer alguma coisa para não enlouquecer. Fui para a cozinha, tentando me agarrar a um gesto simples. Coloquei água para ferver, peguei o pó de café que ele sempre escolhia. Fazer café sempre foi um dos nossos pequenos rituais, mas, naquela noite, cada movimento parecia um pedido desesperado para que ele voltasse. O cheiro começou a se espalhar pelo apartamento, intenso, quase dolorido. Enchi uma xícara, mas não consegui beber. Fiquei encostado na pia, olhando para a porta como se, a qualquer momento, ele pudesse aparecer.
As horas foram passando devagar, como se o tempo tivesse se transformado em castigo. Eu tentava ligar de novo, mandava mais mensagens, mas tudo continuava igual: nenhuma resposta, nenhum sinal. A cada toque não atendido, o desespero crescia dentro de mim, junto com uma saudade que queimava por inteiro. Eu pensava no Rafael que entrou na frente de uma bala por mim, no homem que nunca hesitou em me proteger, no jeito que ele me amava com tudo o que tinha. E eu… eu tinha sido duro, eu tinha feito ele ir embora.
Já era madrugada quando sentei no sofá, a xícara de café fria entre as mãos. O caderno azul estava aberto sobre a mesa, a folha da declaração ainda exposta. Olhei para aquelas palavras que diziam que ele queria a vida toda ao meu lado e senti uma dor quase física.
— Me perdoa, Rafa… — sussurrei, a voz embargada. — Por favor… volta pra mim!
Mas só o silêncio respondeu. Um silêncio que pesava mais do que qualquer palavra poderia pesar. Um silêncio que me fez entender que, se eu não mudasse, poderia perder para sempre a pessoa que mais amei em toda a minha vida.
Algumas horas depois...
A claridade da manhã filtrava-se pelas cortinas brancas do quarto de hóspedes, desenhando faixas pálidas no rosto de Rafael. Ele despertou devagar, sentindo o corpo pesado, como se cada músculo ainda carregasse o peso das últimas noites mal dormidas. O silêncio da casa era quase um convite para continuar deitado, mas a mente não lhe dava descanso. Caio ainda estava ali, dentro dele, em cada lembrança, em cada ferida aberta pelas palavras ditas na última discussão.
Respirou fundo, tentando afastar a imagem dos olhos de Caio naquele momento: feridos, confusos, mas também duros. Levantou-se, arrastando os pés pelo corredor até a cozinha. O cheiro de café recém-passado envolvia o ar como um abraço que ele não sabia se merecia.
Dona Eloísa já estava sentada à mesa. As mãos delicadas seguravam a xícara, mas o olhar, atento, pousou imediatamente sobre o filho.
— Bom dia, meu amor! — disse, a voz suave, mas cheia de um cuidado que parecia cortar a alma.
— Bom dia, mãe! — respondeu baixo, a voz rouca de quem tinha chorado mais do que devia.
Ele se sentou diante dela. O café fumegava na xícara, mas Rafael apenas o encarava, perdido. O silêncio se alongou, até que a mãe, com a paciência de quem conhece cada sombra do filho, decidiu quebrá-lo.
— Ainda pensando em tudo o que aconteceu?
Rafael apertou os dedos em volta da xícara, mas não bebeu.
— Eu não consigo parar, mãe. Tudo aquilo… a briga, as palavras… parece que ficaram ecoando dentro da minha cabeça.
Dona Eloísa inclinou-se um pouco para frente.
— Caio é importante pra você, não é?
Ele fechou os olhos, respirando fundo antes de responder.
— Mais do que eu queria admitir, mãe. Eu… eu amo ele. Mas eu tô machucado. — a voz falhou. — Eu dei tudo de mim, confiei, me expus. E ele… ele duvidou de mim. Achou que eu… que eu poderia traí-lo.
Ela estendeu a mão, pousando-a sobre a dele. O toque era quente, firme, como se tentasse colar os pedaços de um coração quebrado.
— Meu filho… quando a gente ama, às vezes a dor vem junto. Mas eu vi nos olhos dele, aquele dia no hospital, o quanto ele te ama também.
Rafael mordeu o lábio, sentindo a garganta arder.
— Eu sei. Mas eu ainda tô sangrando por dentro, mãe. Parece que nada que ele diga agora vai apagar o que aconteceu.
— Então o que você vai fazer? — ela perguntou com cautela.
— Não sei. — a resposta saiu como um sopro. — Uma hora eu preciso voltar, eu sei. Mas agora… agora eu só preciso respirar. Pensar.
Dona Eloísa apertou a mão dele, os olhos marejados.
— Respira, filho. Mas não deixa a dor decidir por você. O amor… o amor é maior que isso.
Rafael conseguiu esboçar um meio sorriso, pequeno e cansado.
— Obrigado, mãe. Por sempre estar aqui.
— Sempre estarei — ela disse, firme. — Não importa o que aconteça.
Eles tomaram café juntos, em silêncio, cada gole uma tentativa de acalmar o coração. Quando terminaram, Rafael levantou-se, pegou a jaqueta e a chave do carro.
— Vou dar uma volta, mãe. Preciso clarear a cabeça.
— Quer que eu vá junto?
— Não. — ele balançou a cabeça. — Eu volto logo.
Dona Eloísa ficou parada à porta, assistindo o filho se afastar. Uma pontada estranha percorreu seu peito, uma sensação que ela não soube nomear, mas que fez seu coração bater mais rápido.
Rafael caminhava pela rua tranquila do bairro, levou consigo as chaves do carro, mas decidiu andar a pé. O ar da manhã tinha o cheiro de mar distante, mas dentro dele tudo era tempestade. Pensava em Caio, na briga, nas palavras que ainda latejavam. Precisava de paz, mas só encontrava mais perguntas.
Ele atravessava uma esquina quando um carro escuro se aproximou devagar demais para ser apenas coincidência. Um furgão preto, vidros escuros, motor quase silencioso. Rafael percebeu tarde demais. A porta lateral se abriu com um baque seco.
— Ei! — ele tentou gritar, mas mãos fortes o agarraram pela cintura.
— Fica quieto! — uma voz áspera ordenou.
Ele lutou, chutou, tentou se soltar, mas um pano úmido foi pressionado contra seu rosto. O cheiro adocicado e sufocante invadiu seus pulmões — clorofórmio. O corpo de Rafael começou a ficar pesado, os movimentos lentos, a visão embaçada.
— Rápido! Segura ele! — outra voz gritou dentro da van.
A última coisa que viu foi a rua ficando distante, girando, antes que a porta se fechasse com violência e a escuridão o engolisse.
Caio narrando...
O dia avançava devagar, mas dentro de mim tudo era urgência, a noite já se anunciava lá fora. Já fazia horas que eu olhava para o celular esperando qualquer sinal de Rafael. Quando a tela acendeu com o nome de Dona Eloísa, meu coração disparou.
— Caio… — a voz dela tremia. — O Rafael saiu de manhã pra dar uma volta e não voltou até agora. Ele tá aí com você?
Meu sangue gelou.
— Não… eu achei que ele tivesse com a senhora.
— Eu liguei várias vezes, mas só cai na caixa postal. Isso não é normal, Caio.
Senti as pernas fraquejarem.
— Dona Eloísa, calma… eu vou atrás dele agora. Se ele aparecer, me avisa. Por favor!
— Eu aviso, mas… — a voz dela falhou. — Eu tô com um pressentimento ruim.
Desliguei antes que meu próprio medo transbordasse. Corri para o carro, as mãos tremendo tanto que mal conseguia segurar a chave. Liguei para Rafael de novo. Caixa postal. Mais uma vez. Caixa postal.
— Atende, amor… por favor, atende… — sussurrei para o vazio, a garganta queimando.
A cada minuto que passava, o pânico aumentava. Eu revivia cada palavra da nossa briga, cada olhar ferido, e tudo o que queria era vê-lo, abraçá-lo, dizer que nada daquilo importava. Mas só havia silêncio.
Em outro lugar distante...
Dentro da van, o corpo de Rafael estava mole, inconsciente. Os sequestradores trocavam olhares rápidos, cada um ciente do plano que carregava nas mãos. O motorista acelerou, deixando as ruas da cidade para trás, enquanto o som do motor se misturava ao respirar fraco do rapaz.
Um deles puxou um cobertor e cobriu Rafael, não por compaixão, mas para evitar olhares curiosos nas estradas desertas. O furgão seguiu por caminhos cada vez mais escuros, até que a cidade ficou apenas como uma lembrança distante.
Rafael, ainda adormecido pelo efeito do anestésico, não ouviu o ranger do portão de ferro que se abriu, nem percebeu quando foi retirado do veículo. Seu corpo foi levado para um quarto frio, paredes de concreto, janela inexistente. O som da chave girando na fechadura foi o último ruído antes que o silêncio absoluto tomasse conta do lugar.
Ele continuava inconsciente, a respiração lenta, sem saber que cada segundo ali o afastava mais de quem mais amava.
