O apito final foi um rasgo na realidade. Um som agudo que cortou o ar denso e pesado do estádio, libertando um rugido ensurdecedor das arquibancadas. Por um segundo, o mundo de Júlio se resumiu a isso: o grito da torcida, o ardor nos pulmões e a visão de Caio, com os braços erguidos para o céu, o peito estufado como um deus pagão recebendo sua oferenda. O gol da vitória, aos quarenta e sete do segundo tempo. O gol deles.
Ninguém no estádio, talvez nem mesmo Caio, entenderia a arquitetura daquela jogada. Foi um diálogo sem palavras, uma conversa travada na linguagem secreta que eles haviam construído ao longo de uma década de amizade e futebol. Júlio, com a bola dominada no meio-campo, viu o movimento. Não foi um pique, não foi um gesto óbvio. Foi uma contração mínima no ombro de Caio, uma mudança de peso quase imperceptível em seu pé de apoio. Um sinal. Significava: “Aqui. No buraco que só você vê.”
E Júlio viu. A bola viajou, um arco perfeito e venenoso que cortou dois zagueiros e morreu no espaço vazio. O domínio de Caio foi bruto, um tapa de peito que amorteceu o couro como se fosse uma pluma. O chute foi a consequência inevitável, um trovão que estufou a rede e fez o estádio explodir.
O primeiro a chegar em Caio foi Júlio. Não por velocidade, mas por instinto. Caio se virou, os olhos negros brilhando com uma fúria triunfante, e o agarrou.
O abraço foi um impacto. Um choque de corpos suados, quentes, exaustos. Para o time, para a torcida, era a imagem da parceria perfeita. Para Júlio, era o paraíso e o inferno colidindo em seu peito. A textura áspera do uniforme molhado, o cheiro animal de Caio — uma mistura de suor, grama e uma eletricidade que era só dele —, o peso de seus braços esmagando suas costelas. Júlio fechou os olhos, inalando aquele odor como se fosse a última molécula de oxigênio na Terra. Sentiu o coração de Caio martelando contra o seu, um ritmo tribal, selvagem. Seus dedos se cravaram nas costas largas do amigo, sentindo a chapa de músculos duros sob o tecido. Queria mais. Queria rasgar aquele uniforme, morder aquela pele, lamber o suor daquele pescoço. Queria se fundir a ele, desaparecer dentro daquele calor, daquela força.
Foi um êxtase de três segundos. Uma tortura divina. Então, os outros jogadores chegaram, uma avalanche de corpos e gritos, e eles foram engolidos pela celebração coletiva. Mas o fantasma do abraço, o calor e o cheiro, já estava gravado a fogo na pele de Júlio.
O vestiário era um santuário de vapor e testosterona. O ar era espesso com o cheiro de linimento, shampoo barato e suor secando. O som das duchas batendo no azulejo era uma chuva constante, pontuada por risadas altas e conversas sobre a partida. Júlio gostava daquele caos. Era fácil se esconder nele.
Ele se sentou em seu banco, o corpo dolorido protestando enquanto ele desamarrava as chuteiras. Observava Caio de longe. O centroavante era o sol em torno do qual o pequeno universo do time orbitava. Cercado por outros, gesticulando, rindo, refazendo o gol com as mãos. Ele era pura energia cinética, um espetáculo de carisma e poder. Nu, com a toalha pendurada nos ombros, o corpo de Caio era uma escultura de músculos longos e definidos, a pele bronzeada brilhando sob a luz fluorescente, salpicada de gotas d’água da ducha recém-tomada.
Júlio sentiu a pontada familiar na virilha, um calor denso e pesado que ele aprendeu a ignorar, a empurrar para o fundo de sua mente. Desviou o olhar, focando em suas próprias mãos, nos nós dos cadarços. Era uma disciplina. Olhar, mas não cobiçar. Estar perto, mas não tocar. Amar, mas fingir que era apenas amizade.
“Porra, Juba! Que passe foi aquele, seu filho da puta?” A voz de Caio cortou a distância, e de repente ele estava ali, parado na sua frente, a toalha agora amarrada na cintura, o sorriso ainda rasgando o rosto. “Eu nem sabia que ia correr pra lá. Você viu antes de mim.”
Júlio ergueu o rosto, forçando um sorriso cansado. “Você fez o sinal, idiota. Eu só obedeci.”
“Que sinal, porra? Eu tava era cagado de medo daqueles zagueiros.” Caio riu, uma risada que fez o peito de Júlio vibrar. Ele se sentou ao lado de Júlio no banco, perto demais. O calor de sua coxa quase tocava a de Júlio. O cheiro dele, agora limpo mas ainda inconfundivelmente dele, era avassalador. “Falando em cagado, a pressão da minha coroa vai baixar. Mas hoje eu tô perdoado. Hoje eu posso até levar a Amanda pra jantar.”
Amanda. O nome caiu como uma pedra no estômago de Júlio. A garota da semana. Loira, sorridente, com um corpo que Caio descrevia em detalhes gráficos quando achava que Júlio estava apenas sendo um bom “irmão” ouvinte. Cada detalhe era uma facada.
“É uma boa”, Júlio conseguiu dizer, a voz neutra. “Ela vai gostar.”
“Gostar? Ela vai me dar aquele cu hoje, certeza.” Caio disse, baixando a voz para um tom conspiratório, dando um soquinho no ombro de Júlio. “Graças a você, meu parceiro. Esse gol vale uma foda de campeonato.”
Júlio sentiu o sangue gelar e ferver ao mesmo tempo. A imagem mental que as palavras de Caio criaram era obscena, violenta, e o deixou com um gosto de bile na boca e um tesão doentio latejando baixo em seu ventre. Ele queria socar Caio. Queria beijá-lo. Queria gritar que aquele gol não era para uma garota qualquer, era para eles. Mas ele apenas sorriu. A máscara do melhor amigo, do cúmplice, do “irmão”.
“Vê se não cansa muito. Amanhã tem treino regenerativo”, ele disse, e a banalidade de suas próprias palavras o enojou.
O trajeto para casa era um ritual. O carro de Júlio, um modelo discreto que contrastava com a BMW de Caio, era um casulo de silêncio e intimidade. Com o rádio baixo tocando qualquer coisa, a cidade passava como um borrão de luzes pela janela. Caio, agora mais calmo, largado no banco do carona, suspirava.
“Às vezes eu acho que vou explodir, sabia?” ele disse, a voz rouca. A fanfarronice do vestiário tinha desaparecido, substituída por uma vulnerabilidade que ele só mostrava a Júlio. “É a pressão do técnico, da torcida, do meu velho... todo mundo quer um pedaço. Todo mundo acha que sabe o que é melhor pra mim.”
“Você dá conta”, Júlio respondeu, os olhos fixos na estrada. “Sempre deu.”
“Só porque você tá aqui pra arrumar a bagunça.” Caio virou o rosto, e no escuro do carro, Júlio sentiu o peso daquele olhar. “Você é o único que não quer nada de mim, Juba. É o único que tá do meu lado de verdade.”
Ah, se você soubesse, pensou Júlio, o coração apertando dolorosamente. Eu quero tudo. Quero o que você nem sabe que pode me dar.
“Somos uma dupla, esqueceu?”, foi o que ele disse.
Chegaram ao prédio de Caio. Ele não se moveu para sair. Apenas ficou ali, olhando para frente, a mão pousada no espaço do console entre os bancos, os dedos a milímetros da coxa de Júlio. Cada segundo em silêncio era uma eternidade carregada de tensão. Júlio podia sentir o calor daquela mão, podia sentir o campo de força invisível entre a pele deles. Se ele se movesse um centímetro...
“Valeu pela carona. De novo”, Caio finalmente disse, quebrando o feitiço. Ele abriu a porta. “Te devo uma. Sempre.”
Júlio apenas assentiu, observando o amigo sair e caminhar até a portaria, o andar confiante de sempre. Ele esperou o vulto de Caio desaparecer no elevador antes de apoiar a testa no volante, a respiração saindo em um gemido trêmulo. A promessa silenciosa de Caio — “Te devo uma” — ecoava em sua mente, se misturando com a promessa que Júlio fazia a si mesmo todas as noites: aguentar mais um dia.
O dia seguinte no clube era cinza e úmido. O cheiro de grama molhada entrava pelas janelas abertas do departamento de fisioterapia. O treino regenerativo tinha sido leve, mas a batalha do dia anterior deixara suas marcas. Pequenas dores, músculos cansados.
Caio estava deitado de bruços em uma das macas, recebendo uma massagem na panturrilha. Júlio esperava sua vez, rolando uma bola de tênis sob o pé, tentando soltar a fáscia plantar. O ambiente era quase clínico, silencioso, quebrado apenas pelo zumbido baixo de algum aparelho de ultrassom e pelas instruções monótonas dos fisioterapeutas.
“Júlio, chega aqui um instante”, chamou Ricardo, o fisio que atendia Caio. “Preciso de uma ajuda pra alongar o posterior dele. Tá travado.”
O coração de Júlio deu um salto. Um baque surdo contra as costelas. Ele se levantou devagar, tentando parecer casual, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
“Claro. O que eu faço?”
Caio virou a cabeça no buraco da maca, um olho o espiando. “E aí, doutor Júlio. Vê se não me quebra, hein?”
Ricardo sorriu. “Só segura o joelho dele aqui, fazendo uma leve pressão pra baixo, enquanto eu levanto a perna. Quero isolar o músculo.”
Júlio se posicionou ao lado da maca. O corpo de Caio estava coberto por uma toalha da cintura para baixo, mas as pernas estavam expostas. Eram pilares. A coxa, mesmo relaxada, era uma massa densa de músculo, a pele coberta por uma fina camada de pelos escuros e suor do treino. O cheiro dele era mais suave ali, mas ainda presente. Cheiro de pele quente.
Com a respiração presa na garganta, Júlio estendeu a mão. Por um instante, hesitou. Sua mão pairou sobre a parte de trás do joelho de Caio, um território proibido e sagrado. Ele podia sentir o calor irradiando da pele antes mesmo de tocar.
Então, ele tocou.
Foi como encostar em um fio de alta tensão.
Um choque elétrico percorreu seu braço, explodiu em seu peito e desceu direto para sua virilha, onde se alojou como uma brasa incandescente. A pele de Caio era quente, firme, a textura levemente áspera. Sob seus dedos, ele sentiu o contorno do tendão, a massa poderosa do músculo da coxa contraindo involuntariamente com o início do alongamento.
O mundo encolheu e se resumiu àqueles poucos centímetros quadrados de sua palma contra a carne de Caio. O zumbido do aparelho sumiu. A voz de Ricardo se tornou um murmúrio distante. A respiração de Júlio ficou suspensa. Ele estava segurando seu desejo, seu segredo, sua perdição, tudo em sua mão. Sua mente se encheu de imagens profanas: sua boca naquele mesmo lugar, sua língua traçando o contorno do músculo, suas mãos subindo por aquelas coxas, agarrando aquelas nádegas, possuindo.
O pênis de Júlio, dentro do short de treino, começou a pulsar, a despertar de forma dolorosa e inoportuna. Um pânico gelado se misturou ao fogo do desejo. E se alguém percebesse? E se Caio sentisse sua mão tremer?
Ele apertou os dentes, concentrando toda a sua força de vontade em manter a mão firme, a pressão constante, a respiração controlada. Tornou-se um ator no palco de sua própria tortura, desempenhando o papel do amigo prestativo.
“Isso, segura firme aí”, Ricardo instruiu, forçando a perna de Caio para cima.
Um gemido baixo escapou de Caio, um som de dor e alívio. O músculo sob a mão de Júlio ficou duro como pedra. E aquele som, gutural e desprotegido, foi a coisa mais erótica que Júlio já ouvira. Foi o som da força se rendendo.
“Valeu, irmão. Segura firme aí que tá puxando tudo”, a voz de Caio soou abafada pelo buraco da maca.
Irmão. A palavra foi um soco no estômago. Um balde de água fria na sua ereção febril. Ela o trouxe de volta à realidade crua e humilhante de sua posição. Ele era o irmão, o porto seguro, a ferramenta útil. A mão que segurava o joelho era a mão de um amigo, nada mais. O incêndio que consumia suas veias era um segredo que morreria com ele.
“Pronto”, disse Ricardo alguns segundos depois, que pareceram uma vida inteira. “Pode soltar.”
Júlio retirou a mão como se a pele de Caio queimasse. O ar pareceu frio em sua palma agora vazia. Ele deu um passo para trás, o corpo inteiro tremendo com a adrenalina contida.
“Valeu, Juba”, disse Caio, a voz ainda preguiçosa, virando-se para deitar de costas na maca, completamente alheio ao cataclismo que acabara de ocorrer dentro de seu melhor amigo.
Júlio apenas murmurou um “de nada” e voltou para seu canto, o coração batendo descontrolado. Ele se sentou e olhou para sua própria mão. Ela parecia diferente. Estava formigando, marcada pelo calor, pela textura, pelo peso do toque. Era a mão que havia guardado uma promessa silenciosa, a promessa de um amor impossível. E agora, ela carregava também o peso de um contato que era, ao mesmo tempo, tudo o que ele sempre quis e um lembrete cruel de tudo o que ele nunca poderia ter.
O apartamento de Caio era um reflexo honesto dele: espaçoso, um pouco bagunçado e focado no essencial. Um sofá gigantesco e confortável dominava a sala, apontado para uma televisão do tamanho de um portal dimensional. Troféus e camisas emolduradas disputavam espaço nas prateleiras com garrafas de bebida pela metade e caixas de pizza vazias. Cheirava a ele. Uma mistura de amaciante, do perfume caro que ele usava e de algo mais básico, mais animal, que impregnava o couro do sofá. Para Júlio, era o cheiro de casa. Um lar perigoso e volátil onde ele nunca poderia realmente morar.
A noite se arrastava preguiçosamente. O jogo na TV era um zumbido de fundo, uma desculpa para estarem ali, jogados no sofá, cada um com uma garrafa de cerveja suando em sua mão. Já era a terceira. O álcool tinha lixado as arestas da ansiedade de Júlio, substituindo-a por uma coragem morna e imprudente que se espalhava por suas veias.
Caio se mexeu no sofá, um gemido baixo escapando por entre seus dentes. Ele arqueou as costas, tentando estalar algo que se recusava a ceder.
“Puta que pariu”, ele resmungou, a testa franzida de dor. “Aquele desgraçado daquele atacante. A joelhada que ele me deu nas costas na hora da queda tá me matando agora.”
Ele tentou girar o tronco, mas o movimento só pareceu piorar a situação. Ele se largou de volta no sofá, a respiração sibilando.
E foi aí que a coragem líquida falou mais alto. As palavras saíram da boca de Júlio antes que ele pudesse contê-las, impulsionadas por anos de desejo reprimido e pela imagem insuportável de Caio sentindo dor.
“Deita aí de bruços. No chão.”
Caio abriu um olho, o ceticismo claro em seu rosto. “Pra quê? Pra você rir da minha cara?”
“Não, idiota”, Júlio disse, a voz surpreendentemente firme. Ele se levantou, colocando a garrafa na mesa de centro. O movimento o fez se sentir mais no controle. “Eu aprendi umas coisas na fisio, umas manobras de liberação. Posso tentar soltar isso pra você.”
A oferta ficou pairando no ar, carregada de uma eletricidade que só Júlio sentia. Para Caio, era apenas mais um gesto de cuidado do seu melhor amigo, o “irmão” que sempre consertava suas bagunças. Ele ponderou por um segundo, então deu de ombros, um gesto de rendição.
“Beleza, Doutor Juba. Se você me aleijar, meu próximo contrato vai ser pra pagar sua fiança.”
Com um grunhido, ele deslizou do sofá para o tapete felpudo, ajeitando-se de bruços, os braços dobrados sob a cabeça. Ele estava vestindo apenas uma bermuda de moletom cinza, o tecido macio e gasto desenhando a forma de suas pernas poderosas e o início da curva de sua bunda. A camiseta tinha sido descartada horas antes, no calor do jogo na TV. Suas costas largas eram uma paisagem de pele bronzeada, músculos e sombras. Um convite. Uma armadilha.
Júlio ajoelhou-se ao lado dele. O coração martelava em seu peito, um tambor de guerra. O cheiro de Caio era mais forte ali, no nível do chão. Cheiro de pele, de suor leve, de cerveja. Ele respirou fundo, as mãos tremendo levemente. É só uma massagem, ele disse a si mesmo. É só ajudar um amigo. Uma mentira deliciosa e transparente.
Ele pousou as mãos nos ombros de Caio. A pele estava quente, viva. O choque foi tão intenso quanto o da sala de fisioterapia, mas agora não havia testemunhas. Não havia desculpas. Havia apenas a escuridão da sala, a luz azulada da TV e o corpo do homem que ele amava se oferecendo sob suas mãos.
Ele começou a trabalhar os músculos trapézios, usando o peso do próprio corpo, os polegares afundando na carne tensa. Caio suspirou, um som de puro alívio.
“Porra... isso é bom”, ele murmurou, a voz abafada pelo tapete.
O som foi como gasolina no fogo da coragem de Júlio. Ele ganhou confiança. Suas mãos se tornaram mais ousadas, deslizando pelas omoplatas, mapeando a coluna vertebral, sentindo cada vértebra, cada nó de tensão. Ele não era mais o amigo prestativo. Era um adorador explorando um terreno sagrado.
Seus dedos desceram, seguindo o fluxo dos músculos que se afinavam na cintura. A lombar. O epicentro da dor de Caio. E o portão de entrada para o território proibido. Ele trabalhou a área com a base das mãos, em movimentos circulares e firmes. Caio gemeu de novo, mais alto desta vez. Um som gutural, quebrado. Ele empurrou a pélvis contra o chão, um movimento instintivo para encontrar a pressão.
Aquele movimento desfez Júlio.
As mãos dele, agora com uma mente própria, deslizaram para mais baixo. A ponta de seus dedos roçou o cós elástico da bermuda de moletom. Ele sentiu o início da curva das nádegas de Caio, firmes e redondas sob o tecido. O ar ficou preso em seus pulmões. Ele estava na fronteira. Um milímetro a mais e a amizade se estilhaçaria para sempre.
Ele parou. A sala ficou em silêncio, exceto pela respiração pesada de Caio e o som distante da TV.
“Juba...”, a voz de Caio era um sussurro sonolento, pesado de relaxamento. Ele começou a se virar, lentamente, para agradecer, para dizer algo.
O movimento foi o gatilho final. Quando Caio virou o rosto, seus lábios estavam a centímetros dos de Júlio. Os olhos semicerrados, a guarda completamente baixa. Era agora ou nunca. O abismo se abriu, e Júlio pulou.
Ele se inclinou e o beijou.
Não foi um beijo gentil. Foi um ato de apropriação. Um beijo faminto, desesperado, carregado com o peso de uma década de silêncio. Seus lábios tomaram os de Caio, que eram macios e tinham um leve gosto de cerveja.
O corpo de Caio enrijeceu instantaneamente. Um choque percorreu seus músculos. Júlio sentiu. Ele sentiu a surpresa, a confusão. Esperou o empurrão, o soco, o grito de “Que porra é essa?”. Mas não veio.
Caio estava paralisado. Seus olhos se arregalaram no escuro, fixos nos de Júlio. Sua mente era um turbilhão de negação, um alarme ensurdecedor gritando NÃO, ERRADO, PARA. Mas seus lábios não se afastaram. Seu corpo, traidor, registrou a sensação: o calor, a umidade, a pressão. E era... bom. Era assustadoramente bom.
Encorajado por aquela passividade chocada, o desespero de Júlio se transformou em uma necessidade selvagem. Se ele ia cair, levaria Caio junto. Ele aprofundou o beijo, a língua buscando a de Caio, que não recuou. E então, quebrando o contato dos lábios, ele desceu.
Seus beijos traçaram uma linha de fogo pelo queixo de Caio, pelo seu pescoço, sentindo o pulso martelando descontroladamente sob sua boca. Caio arfou, um som que era meio protesto, meio rendição. A cabeça dele tombou para trás, expondo a garganta. Júlio lambeu a pele ali, o pomo de adão, e sentiu um tremor percorrer o corpo do amigo.
Ele continuou descendo, beijando o peito largo, mordiscando levemente um dos mamilos, que endureceu instantaneamente ao seu toque. A mão de Caio veio até sua cabeça, os dedos se embrenhando em seu cabelo. Júlio não sabia se era para afastá-lo ou para segurá-lo. Não importava.
Ele chegou ao cós da bermuda. Sua respiração estava ofegante, seus movimentos febris. Sem hesitar, sua mão encontrou o zíper. O som do metal deslizando na quietude da sala foi obscenamente alto. Definitivo.
Ele afastou o tecido. O pênis de Caio estava semi-ereto, pulsando em resposta ao ataque sensorial, uma prova viva da traição de seu corpo. Júlio olhou para cima. Os olhos de Caio estavam fechados agora, a mandíbula cerrada, o rosto uma máscara de conflito e prazer agonizante.
Ajoelhado entre as pernas do homem que era seu mundo, Júlio se curvou. E o tomou em sua boca.
Foi um ato de adoração. De submissão. De desespero. Sua boca era quente e ávida, sua língua habilidosa por anos de fantasia solitária. Ele envolveu Caio completamente, sentindo-o pulsar, provando seu sabor, o sabor salgado da pele e do pré-gozo.
O corpo de Caio foi atravessado por um espasmo violento. Um gemido rouco e estrangulado rasgou sua garganta. Sua mente gritava, xingava, entrava em pânico. Isso é o Júlio. Meu irmão. Que porra é essa? Mas seu corpo... ah, seu corpo era um traidor glorioso. Ondas de prazer puro, um prazer que ele nunca havia sentido, cru e avassalador, irradiavam de sua virilha, anulando todo pensamento racional.
Sua mão, que estava no cabelo de Júlio, apertou. Os nós de seus dedos ficaram brancos. Ele não estava empurrando. Estava puxando. Puxando Júlio para mais perto, mais fundo. Seus quadris se ergueram do chão, um movimento involuntário, buscando mais daquela boca pecaminosa, daquele prazer proibido.
Ele explodiu. A razão de Caio se desintegrou, pulverizada pelo prazer. Restou apenas o instinto. O corpo se entregando completamente, arqueando-se nas mãos e na boca de seu melhor amigo, caindo de cabeça, sem volta, no abismo da tentação.
O orgasmo de Caio foi uma fratura. Uma quebra sísmica que partiu seu corpo e sua mente. Por um instante eterno, houve apenas o branco. Um apagão de puro e avassalador prazer, onde nada mais existia além da boca de Júlio e das ondas de espasmos que o sacudiam.
Então, o branco se dissipou. E o que restou foi o horror.
A lucidez bateu como um soco no estômago, fria e nauseante. O ar voltou aos seus pulmões com um gosto rançoso de vergonha. Seus olhos se abriram. A primeira coisa que ele viu foi o teto de seu próprio apartamento. A segunda foi o topo da cabeça de Júlio, ainda entre suas pernas abertas.
A imagem foi um curto-circuito em seu cérebro.
Júlio. Seu melhor amigo. Seu porto seguro. Seu irmão. Ali. De joelhos. O cheiro de seu próprio gozo misturado ao da cerveja no ar. A sensação úmida e pegajosa em sua pele. A realidade do que ele tinha permitido — do que ele tinha desejado — o atingiu com a força de um trem desgovernado.
A confusão se transformou em pânico. O pânico, em autonoção. E a autonoção, para sobreviver, precisava de um alvo. Precisava se transformar em fúria.
Tudo aconteceu em um segundo. Um movimento animalesco, impulsionado por puro terror.
“Sai daqui!”
A voz não parecia a sua. Era um rosnado, distorcido pela repulsa. Com um impulso violento, ele chutou. Não foi um empurrão. Foi um chute, com a perna dura, o pé batendo no ombro de Júlio e o jogando para o lado.
Júlio caiu no tapete, o som de seu corpo batendo no chão abafado, mas definitivo. Ele ergueu o rosto, a expressão era de choque absoluto, os lábios entreabertos, os olhos arregalados e perdidos. Naquele rosto, Caio não viu um predador. Viu a imagem espelhada de seu próprio êxtase momentos antes, e isso o enojou ainda mais.
Caio se arrastou para trás, desesperado para colocar distância entre eles. Suas mãos trêmulas buscaram o zíper da bermuda, fechando-o com uma urgência desajeitada, como se selar o tecido pudesse de alguma forma apagar o que havia acontecido.
“SEU VIADO NOJENTO!” A acusação explodiu de seus pulmões, o grito ecoando na sala silenciosa. As palavras eram veneno, cuspidas para ferir, para degradar, para criar uma distância intransponível. “O QUE VOCÊ FEZ COMIGO?”
A pergunta era a mais pura e aterrorizante das mentiras. Ele sabia o que Júlio tinha feito. Ele tinha sentido. E, Deus o ajude, ele tinha puxado a cabeça dele para mais perto. A lembrança era uma brasa em sua mente.
Júlio não respondeu. Ele apenas ficou ali, no chão, apoiado em um cotovelo. O paraíso que ele vislumbrara por alguns minutos tinha se transformado em cacos de vidro sob seus pés. A humilhação lavou seu rosto, apagando o brilho do desejo e deixando para trás uma máscara pálida de dor. Ele se levantou devagar, o corpo inteiro parecendo pesado, derrotado. Cada movimento era o de um homem cujo coração tinha acabado de ser arrancado do peito e pisoteado no chão.
Ele olhou para Caio uma última vez, e naquele olhar havia um universo de dor, de amor traído e de uma tristeza tão profunda que fez Caio desviar o rosto, incapaz de encarar. Sem uma única palavra, Júlio se virou, pegou a chave do seu carro na mesinha e caminhou até a porta. O clique da fechadura se abrindo e depois se fechando foi o som da amizade deles se partindo.
Caio ficou sozinho no meio da sala, tremendo, o peito subindo e descendo com respirações rasgadas. O silêncio que se instalou era mais pesado do que qualquer grito.
Os dias seguintes foram um inferno congelado. A comunicação entre o cérebro e a artilharia do time foi cortada. Em campo, eles eram dois estranhos. Júlio não olhava mais para Caio em busca do sinal secreto. Seus passes eram agora mecânicos, previsíveis, direcionados a qualquer um, menos a ele. Caio, por sua vez, corria sem a antiga convicção, seus movimentos desprovidos da sintonia que o fazia letal.
No vestiário, um campo de força invisível os separava. Seus armários, antes vizinhos e palco de confidências, agora eram polos opostos de um planeta morto. O resto do time sentiu. A energia mudou. A resenha morreu. Havia um buraco negro no centro do time, e todos andavam nas pontas dos pés ao redor dele.
O foco da narrativa se fecha em Caio. Sozinho em seu apartamento, que agora parecia uma cela, uma cena de crime. Ele tentava se agarrar à raiva. Relembrava a imagem de Júlio no chão, tentava sentir nojo, repulsa. Forçava-se a pensar nas palavras que gritou: viado nojento. Era um mantra para se autoconvencer, para reafirmar a identidade que sentia escorrendo por entre os dedos. Eu sou hétero. Ele me usou. Ele me forçou.
Mas a memória física era uma traidora teimosa.
Enquanto tentava dormir, seu corpo o traía. Ele sentia o fantasma da boca de Júlio em sua pele, o calor, a pressão. Ele se lembrava do gemido que escapou de sua própria garganta. Lembrava-se do momento exato em que sua mão apertou o cabelo de Júlio, não para empurrar, mas para puxar. Ele tinha cedido. Ele tinha se entregado.
Uma noite, a tortura se tornou insuportável. A lembrança era tão vívida que seu corpo reagiu por conta própria. Ele estava duro, a ereção pulsando dolorosamente, uma prova física de seu desejo renegado. Com o coração batendo descontrolado, movido por uma compulsão que o enojava, ele se tocou.
Ele fechou os olhos, tentando pensar em Amanda, em qualquer outra garota. Mas a mente, essa bastarda, só projetava uma imagem: o rosto de Júlio olhando para ele antes de se curvar, a devoção desesperada em seus olhos. A sensação de sua boca.
O prazer veio rápido e violento, quase indistinguível da dor. E no momento do clímax, o nome que quase escapou de seus lábios não foi de mulher alguma.
Ele gozou na própria mão com um soluço de ódio. O alívio foi instantaneamente substituído por uma onda de autoaversão tão potente que ele sentiu vontade de vomitar. Olhou para si mesmo, para a bagunça em sua mão, e se odiou. Odiou seu corpo fraco, odiou sua mente pervertida, e odiou Júlio com todas as suas forças por ter lhe mostrado uma porta que ele nunca quis saber que existia.
Sua masculinidade, sua identidade, tudo aquilo que ele pensava ser sólido como rocha, estava em frangalhos. Ele não era Caio, o centroavante, o astro hétero. Ele era um homem revirado, assombrado pelo prazer que sentiu na boca de seu melhor amigo. E ele não fazia a menor ideia de como juntar os pedaços de volta.
As semanas que se seguiram à explosão foram um borrão de insônia e álcool barato para Caio. O ódio que ele tentara cultivar apodreceu, transformando-se em uma ansiedade corrosiva que roía seu estômago. A raiva era um escudo fraco, e por trás dele, o desejo latejava, mais forte e mais teimoso do que nunca. Ele era um caco. Um fantasma assombrando o próprio corpo, incapaz de comer direito, de dormir, de foder com qualquer uma das garotas que se ofereciam. Seu corpo agora tinha uma memória, e essa memória tinha um nome: Júlio.
A guerra acabou em uma terça-feira chuvosa. Não houve um momento de clareza, apenas o peso esmagador da exaustão. Ele não conseguia mais lutar. Estava cansado de se odiar, cansado de sentir falta do único amigo que já tivera, cansado de desejar o que sua mente lhe dizia ser proibido. Ele se olhou no espelho — olheiras fundas, o rosto mais magro, os olhos vazios — e não se reconheceu. O astro do time tinha morrido. Só restava um homem que precisava se render para sobreviver.
Ele dirigiu até o apartamento de Júlio sem pensar. O trajeto foi um ato de sonambulismo. Parado em frente à porta, a chuva fina molhando seus ombros, ele sentiu o pânico subir. E se Júlio batesse a porta na sua cara? Ele merecia. Mas a necessidade era maior que o medo. Ele bateu. Uma, duas, três vezes.
A porta se abriu. Júlio estava ali. E se Caio era um caco, Júlio era a imagem espelhada de sua dor. Estava mais magro, a barba por fazer, vestindo uma camiseta velha que parecia grande demais para ele. Nos olhos dele, Caio viu a mesma exaustão, a mesma dor. Eles eram as duas metades de um desastre.
Ficaram se olhando por uma eternidade. O som da chuva era o único ruído.
“Eu não consigo mais, Júlio”, a voz de Caio saiu quebrada, um sussurro rasgado. As palavras eram pesadas, arrancadas de suas entranhas. “Eu não consigo parar de pensar naquilo.” Ele engoliu em seco, a confissão final saindo como uma rendição. “Em você.”
Foi o suficiente. A hesitação no rosto de Júlio se desfez, substituída por algo feroz, primordial. Ele não disse uma palavra. Apenas agarrou o colarinho da jaqueta de Caio e o puxou para dentro com uma força que Caio não sabia que ele possuía. A porta bateu atrás deles, selando o mundo lá fora.
A comporta se rompeu.
O beijo foi uma colisão. Não havia nada de gentil nele. Era selvagem, uma batalha de línguas e dentes, um afogamento mútuo em saudade, raiva, perdão e uma luxúria tão desesperada que beirava a violência. As mãos de Júlio estavam no cabelo de Caio, puxando, enquanto as de Caio agarravam a camisa de Júlio, amassando o tecido, tentando trazê-lo para ainda mais perto, para dentro de sua pele.
As roupas se tornaram uma ofensa, uma barreira intolerável. Foram arrancadas, rasgadas, botões voando, zíperes descendo com brutalidade. Em segundos, estavam nus no corredor mal iluminado, a pele arrepiada pelo frio e pelo desejo. Júlio empurrou Caio contra a parede, os corpos quentes e suados se chocando.
No chão, entre as roupas descartadas, estava a cueca boxer de Caio. Júlio a viu. Inclinou-se, pegou o pedaço de algodão e o levou ao rosto. Ele fechou os olhos e inspirou profundamente, inalando o cheiro de Caio.
A visão daquele ato, daquela adoração crua e fetichista, quebrou a última represa dentro de Caio. Uma onda de prazer tão intenso e chocante subiu por sua espinha que suas pernas fraquejaram. Ele gemeu, um som estrangulado, e sentiu o pré-gozo vazar, quente e grosso. Ele quase gozou ali mesmo, de pé, apenas observando seu desejo ser consumido daquela forma.
Júlio jogou a cueca de lado e se ajoelhou...
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