O prédio da antiga faculdade parecia menor do que Amanda lembrava, mas o frio em seu estômago era exatamente o mesmo de anos atrás. Estava elegante um vestido sóbrio, salto baixo, cabelos presos com certa delicadeza que sugeria segurança, mas nada nela estava de fato tranquila. Clara, sempre vibrante, falava o tempo todo, tentando distrair a amiga.
— Você ainda não me contou se Matheus implicou com isso… — disse Clara, ajeitando a bolsa no ombro.
Amanda sorriu, respirando fundo.
— Não. Na verdade, ele... entendeu. Disse que confia em mim. E que se esse “fantasma” me ronda, talvez seja melhor encará-lo de frente.
— Ele é um homem raro — respondeu Clara, sincera. — Mas se eu fosse ele, não te deixava vir nem com GPS bloqueado.
Ambas riram, o riso nervoso de quem sabe que algo ali está fora do controle.
Quando entraram no auditório, o ambiente já fervilhava. Luzes baixas, vozes abafadas, cheiro de café morno e papel impresso. Amanda tentou focar nos nomes projetados no telão. Seu nome estava lá também, como debatedora de uma das mesas. Uma participação curta, protocolar.
E então, ele entrou.
Carlos Eduardo.
O professor. Cadu.
O homem que mexera com algo que Amanda nunca soube nomear por completo.
Nada nele era forçado. Nenhuma afetação. Os cabelos grisalhos estavam mais longos do que ela lembrava, barba alinhada, corpo firme sob a camisa de linho azul-marinho. Ele se sentou à mesa dos palestrantes como quem domina um campo de batalha sem precisar de armas.
Amanda sentiu. O calor. O sangue correndo mais rápido. Uma lembrança viva e pulsante, instalada bem no centro do peito.
Ele começou a falar. E quando, em meio a reflexões sobre ética, responsabilidade e paixão pelo ensino, comentou que "algumas das melhores mentes que encontrei foram de mulheres jovens, afiadas, com uma coragem que muitas vezes os homens não têm", Clara cutucou Amanda com o cotovelo, sorrindo.
— É você, ele tá falando de você — cochichou, como se ainda fossem adolescentes.
Amanda sorriu com o canto da boca, mas algo dentro dela estava muito desperto.
Quando os olhos de Cadu encontraram os dela, foi só por um segundo. Mas aquele segundo não passou. Ficou suspenso entre os dois, no tempo. Ele não esboçou surpresa. Apenas assentiu levemente com a cabeça, como quem reconhece uma lembrança que nunca se apagou.
E foi assim, ainda sentada, sem tocar, sem dizer nada, que Amanda soube: o que quer que tivesse restado entre eles… ainda estava ali.
O auditório estava se esvaziando lentamente, o murmúrio das conversas misturado ao som de passos ecoando pelo chão encerado. Amanda desceu do palco após sua breve participação, o sorriso profissional ainda no rosto, mas por dentro — uma brasa discreta queimava, incômoda e quente, sem saber se era ansiedade ou antecipação.
Ela não o viu logo de início, mas o sentiu. Um olhar, uma presença. Virou o rosto, e ali estava ele.
Carlos Eduardo — Cadu. Em pé, mãos nos bolsos, sem o blazer da palestra, agora apenas com a camisa branca de botões e os cabelos grisalhos desalinhados como se o tempo tivesse esquecido de domá-lo. Havia um ar casual, quase perigoso, naquela tranquilidade dele.
— “Você ainda lembra os caminhos?” — perguntou com a voz firme, mas sem dureza, os olhos fixos nos dela.
Amanda demorou um segundo para responder. Talvez menos.
— Claro… — disse. — Foram cinco anos da minha vida. O corpo guarda.
Ele sorriu, breve.
— Então vem. Me acompanha.
Ela hesitou. Mas seus pés já haviam dado o primeiro passo. Caminharam pelo corredor que levava aos blocos antigos, agora um pouco mais modernizados. As paredes tinham cores diferentes, mas o cheiro — uma mistura de papel velho, tinta e café frio — ainda era o mesmo. Familiar. Quase íntimo.
— Essa sala aqui… — disse ele, parando diante de uma porta entreaberta — …você passava tardes inteiras organizando as pastas dos estágios. Lembro de você de óculos, cabelo preso, sempre com café na mão.
Amanda riu, nervosa.
— Eu parecia uma estagiária doida.
— Você parecia concentrada. Brilhante, até. Uma das melhores alunas que já tive. Mas eu não disse isso na palestra. Ia parecer... pessoal demais.
O jeito como ele disse “pessoal” fez sua espinha arrepiar.
Continuaram andando. Pararam diante da antiga sala de reuniões, trancada agora.
— Foi aqui que você me chamou pra corrigir o artigo junto. — disse Amanda, tentando manter a voz leve.
— Foi aqui que eu te beijei pela primeira vez. — Ele corrigiu, olhando para a maçaneta. — Quando todos já tinham ido embora. Você perguntou se tinha mais alguma coisa, e eu só... fui.
Amanda ficou imóvel. Aquilo veio como um soco doce. Ela lembrava. Claro que lembrava. O frio nas pernas, o medo de alguém abrir a porta, a boca dele se aproximando devagar — como se perguntasse com o olhar se podia — e a resposta vindo em forma de suspiro.
— Nunca foi pra acontecer. — disse ela, quase num sussurro.
— Exato. — Ele virou o rosto pra ela, agora sério. — Mas o que não era pra acontecer… às vezes é o que a gente mais lembra. Porque a gente fez apesar disso.
Silêncio.
Eles chegaram ao último corredor, aquele que dava para o pátio de trás, escondido, onde os professores fumavam escondidos durante o intervalo.
— É estranho, Cadu. — disse Amanda, os olhos vagando pelo chão. — Eu sou feliz hoje. Eu tenho uma vida incrível. Um marido que me ama. Eu amo ele. Mas… estar aqui com você… tem algo que me tira o ar. E eu não sei se é você, ou o que você representa.
Cadu não respondeu de imediato. Apenas parou e a olhou, como se a visse em duas versões: a mulher que ela se tornou, e a garota que ela foi.
— Eu também não sei. — ele respondeu, calmo. — Mas... se quiser entender, a gente pode tomar um café qualquer dia desses. Conversar. Relembrar sem peso. Eu vou ficar por pouco tempo. Me mudo de estado mês que vem.
Amanda assentiu, sem se comprometer. Estava confusa. A boca seca, o coração acelerado, mas os pés ainda firmes no chão.
Antes de se despedirem, ele olhou para ela uma última vez.
— Você continua intensa, Amanda. E não, não é um elogio. É um fato. Era isso que me enlouquecia em você. Você sente tudo com o corpo inteiro.
Ela sentiu o estômago virar. Engoliu a resposta que não sabia dar. E virou as costas.
Ao sair do campus, Amanda percebeu que não era o homem em si que lhe tirava o sono. Era o reflexo do que ela foi quando estava com ele. A aluna que quebrou as regras. A mulher que descobriu o prazer do limite. O calor do risco.
E agora? Com Matheus, ela era tudo que queria ser. Mas Cadu era tudo que não podia mais ser.
E talvez, no fundo, fosse isso que ainda doía.
A porta se fechou atrás de Amanda com um clique baixo, abafado pelo silêncio reconfortante do apartamento. As luzes estavam apagadas, exceto por uma luminária acesa na sala. O cheiro familiar de alecrim queimando no difusor misturava-se com o calor residual da rua. Ela tirou os sapatos devagar, como se qualquer gesto brusco pudesse desmoronar o equilíbrio que restava em seu peito.
Matheus apareceu no corredor, sem camisa, com os cabelos um pouco bagunçados e uma expressão que misturava apreensão e ternura.
— Como foi? — ele perguntou, com a voz baixa, sem rodeios.
Amanda hesitou. Passou a língua nos lábios, como se precisasse preparar o terreno.
— Foi... intenso. — Ela pousou a bolsa no sofá e se sentou, encarando o vazio à frente. — Ele estava lá. Me chamou pra dar uma volta no campus... quis lembrar as coisas. As aulas, os corredores vazios... as salas em que a gente se escondia.
Matheus não disse nada de imediato. Sentou-se ao lado dela, o corpo levemente inclinado, os olhos fixos em seu rosto. Amanda virou-se para ele.
— Não houve toque. Nem beijo. Nada físico. Mas, Matheus... ele ainda me quer. — Ela disse isso num sussurro. — E o pior... é que eu senti o desejo de novo. Não por ele... mas pelo que aquilo representava. A adrenalina, o proibido, o que nunca pôde ser.
Ele desviou os olhos por um momento. Respirou fundo. Ela viu o maxilar dele travar.
— Você ainda quer isso? — perguntou. A voz saiu mais rouca, ferida, mas não agressiva.
Amanda negou com a cabeça, mas demorou a falar.
— Eu quero entender. Fechar a história. Não por ele, por mim. Porque eu tô aqui, e quando você me olha... eu me sinto inteira. É isso que me confunde. Como posso me sentir tão sua e ainda assim ser mexida por um fantasma?
Matheus se levantou. Foi até a cozinha sem dizer nada. Amanda permaneceu imóvel, sentindo o coração apertar no peito. Minutos depois, ele voltou com duas taças e uma garrafa de vinho aberta. Colocou uma música suave no fundo, jazz instrumental, e a chamou com um gesto. Ela levantou-se devagar, achando que ele iria dizer algo duro, talvez pedir um tempo.
Mas ele apenas serviu o vinho, olhou nos olhos dela e falou:
— Eu não vou te impedir de fechar o que começou. Não sou dono de você. Mas também não vou fingir que isso não me mata por dentro. — Ele deu um gole. — O que eu posso fazer... é te lembrar o que somos.
Amanda sentiu um arrepio. Não de culpa, mas de entrega.
Ele estendeu a mão. Ela a segurou. A conduziu até o quarto, mas não houve pressa. Apenas o tempo exato entre um toque e outro.
Matheus a despiu com delicadeza, como quem desembrulha um segredo. Beijou suas clavículas, seu ventre, suas coxas com reverência. Amanda retribuiu, deixando que as mãos percorressem cada centímetro da pele dele, como se precisasse memorizar novamente o amor que habitavam juntos.
— Você é minha escolha. — sussurrou ela, deitada sob ele. — Mesmo quando o passado me tenta, é com você que eu quero ficar.
Matheus a penetrou devagar, sem urgência. O ritmo deles era outro — não de quem precisa, mas de quem sabe. Os corpos conversavam, se reconheciam, se curavam. Ela gemia com os olhos fechados, os dedos fincados nas costas dele, enquanto ele sussurrava seu nome como quem repete um mantra.
O orgasmo veio como uma onda quente, profunda, tirando-lhe o ar e fazendo-a chorar. Não de tristeza, mas de libertação. Matheus a abraçou forte, beijando seu cabelo, até o coração dos dois desacelerar no mesmo compasso.
Na penumbra do quarto, entre os lençóis amarrotados, Amanda entendeu: o que quer que acontecesse dali em diante, o amor deles já era mais forte do que qualquer sombra.