Fantasmas que dormem leve
O relógio marcava pouco depois do meio-dia, e eu já tinha revisado três contratos, dado retorno a dois clientes e encaminhado uma petição que vinha me atormentando há semanas. A rotina no escritório seguia como sempre — metódica, exigente, minha. Mas, pela primeira vez em muito tempo, eu estava ali apenas com o corpo.
Minha cabeça, não.
Ela insistia em revisitar algo que eu nem sabia que ainda morava em mim. Ou talvez soubesse… e só estivesse fingindo que não.
Desde que Clara disse aquele nome — Carlos Eduardo — algo ficou aceso em algum canto do meu peito. Como uma brasa esquecida que, de repente, voltou a respirar. Não foi só o nome. Foi a entonação casual, a despreocupação com que ela o disse, como se fosse qualquer um. Como se ele tivesse sido só um professor qualquer. Ou, no máximo, uma lembrança engraçada de uma juventude inconsequente.
Mas ele não foi.
E é isso que me incomoda tanto.
Já estive com outros antes de Matheus. Alguns duraram mais do que com Cadu. Outros foram até mais intensos. Mas só ele ficou assim, marcado no lugar onde nem eu costumo olhar.
Por que ele?
Na época, não houve promessas. Não houve planos. Ele era meu professor — mas ainda assim... Era errado. Ou deveria ter sido. Mas havia algo nele... uma calma perigosa, uma certeza no olhar. Era como se ele me conhecesse antes mesmo de perguntar meu nome. E quando falou pela primeira vez comigo — já fora da faculdade, num bar onde encontramos por acaso — foi como se tudo o que me segurava ao chão deixasse de importar.
Não houve paixão.
Houve magnetismo.
Ele tinha uma presença que invadia. Falava com uma voz grave e lenta, como quem não tinha pressa nenhuma de chegar a lugar algum — porque sabia que, no fim, todos os caminhos levavam até ele. Quando me tocou pela primeira vez, foi simples, um toque no pulso. Mas minha pele não esqueceu. Até hoje.
E isso me assusta.
Porque eu sou feliz.
Porque Matheus me ama de um jeito inteiro, bonito, seguro.
E porque eu escolhi essa vida. Eu a construí, dia após dia, com suor, lágrimas e sorrisos.
Mas fantasmas... esses não pedem permissão pra voltar. Eles só precisam que alguém diga o nome certo.
— Amandinha! — A voz animada me arrancou do pensamento.
Clara entrou como sempre: rápida, falante e com o perfume exagerado que anunciava sua chegada antes mesmo de ela abrir a porta.
— Tá ocupada? — perguntou, mesmo já se jogando na cadeira da frente.
— Sempre, né? — sorri, tentando esconder o nó na garganta.
Ela não percebeu. Ou fingiu não perceber.
— Preciso te contar uma — começou, empolgada —. A faculdade vai fazer um evento da semana do egresso, aquela coisa toda de ex-alunos, professores, painel, networking, sabe? E adivinha quem vão chamar?
— Quem? — perguntei, mais por educação.
— Eu, claro! — riu. — E também... Carlos Eduardo. Lembra dele? Professor de Teoria? Aquele grisalho todo charmoso que dava nó na cabeça da gente?
Meus dedos pararam no teclado.
O calor voltou, rasteiro, como febre subindo aos poucos. Disfarcei. Olhei para a tela, fingi um bocejo.
— Lembro vagamente — menti.
— Menina, ele ainda tá inteiro. Achei o Instagram dele esses dias — Clara deu uma risadinha, cúmplice. — E sabe o que mais? Falei de você. Eles adoraram a ideia de te chamar também. Pra falar da tua trajetória, do teu escritório aqui na Jaqueira... uma fala curta, tipo 10 min. Vai topar, né?
Engoli em seco.
— Vou pensar — murmurei.
Clara já estava pegando o celular, anotando algo, sorrindo como se o mundo estivesse perfeitamente alinhado.
Mas dentro de mim, tudo parecia fora de lugar.
E eu sabia, naquele momento, que mesmo que dissesse “não” à palestra… já havia dito “sim” a alguma coisa dentro de mim.
Algo que eu não compreendia — e que me assustava profundamente.
O dia passou em um borrão. Eu não conseguia me concentrar em nada. Cada ligação que atendia, cada e-mail que enviava parecia uma tarefa automática, sem propósito. E, à medida que as horas avançavam, a ideia do convite de Clara se instalava dentro de mim como um espinho. Eu não sabia como lidar com aquilo.
E o pior: não sabia o que era exatamente que me incomodava.
Era o fato de que ele iria estar lá? Ou o fato de que ele nunca deixou de existir em minha mente?
Aquela sensação estranha… algo que eu não queria admitir nem para mim mesma.
Era só um professor. Só uma ficada. Era só o que eu dizia a mim mesma, mas, no fundo, não era só isso. Eu sabia disso.
Fechei os olhos por um instante, tentando me afastar daquelas imagens, mas o efeito foi inverso. As memórias começaram a invadir de uma vez, sem controle. Eu podia sentir o cheiro dele. Não era perfume — era algo mais, algo quente e envolvente. Um cheiro que misturava café, livros, e algo mais... instintivo. Ele tinha essa capacidade de ocupar o espaço com o corpo, com a voz, com a presença.
Lembrei da primeira vez que ele me tocou. Não foi nada exagerado. Mas o simples toque no meu braço, naquele fim de tarde, foi como se ele tivesse marcado minha pele. A sensação de algo aflorando dentro de mim, algo que eu nunca tinha sentido com outros. Era como se ele estivesse descobrindo uma parte de mim que nem eu mesma conhecia.
Eu me lembro de como ele me olhou. Era um olhar profundo, que parecia entender tudo sem que eu precisasse dizer uma palavra. Não houve pressa em seus movimentos, nada forçado. Cada gesto, cada palavra, parecia acontecer no tempo exato, como se ele soubesse, de alguma forma, que eu estava exatamente onde deveria estar. Ao lado dele.
Aquela memória não era só desejo, era algo mais profundo. Algo que eu não podia explicar e que eu não queria. Era como se ele tivesse deixado uma marca em minha alma, não apenas no meu corpo.
Fui interrompida pelo som do meu celular. Era Clara novamente. Tentei ignorar, mas a chamada insistia. Respirei fundo e atendi, querendo dar a ela uma resposta definitiva.
— Amanda, você já decidiu? A palestra é amanhã, lembra?
Eu fechei os olhos, o peso no peito já aumentando. Era como se eu tivesse sido forçada a olhar para algo que já tinha ficado guardado. Algo que talvez eu nunca tivesse superado de verdade.
— Eu vou pensar mais um pouco, Clara — disse, tentando parecer calma, mas minha voz traía a confusão que me consumia.
Desliguei o celular e olhei pela janela. O céu estava nublado, mas eu sentia como se uma tempestade estivesse prestes a estourar dentro de mim.
Por que ele ainda me afetava tanto?
E, mais importante, o que isso significava para mim e para o que eu tinha com Matheus?
Eu nunca escondi nada de Matheus. Sempre fomos transparentes, éramos amigos e amantes, cúmplices de cada momento. Como eu poderia contar a ele sobre Cadu? O que ele pensaria?
Será que ele entenderia que não se tratava de um erro, mas de algo que eu não conseguia controlar?
Isso não era só sobre Cadu. Era sobre mim.
E o mais assustador de tudo era perceber que, embora eu tentasse me convencer de que ele era apenas uma lembrança do passado, a verdade era que ele ainda estava muito vivo dentro de mim.
A lembrança de seu toque, de sua voz, da maneira como ele me fazia sentir, era algo que eu não sabia se poderia superar. Ou se, no fundo, não queria superar.
Mas eu estava prestes a descobrir, e isso me deixava mais ansiosa do que qualquer coisa.
Quando cheguei em casa, a luz da sala estava suave, como sempre. O som da TV ligada era o único barulho, e Matheus estava ali, em seu lugar habitual no sofá. O olhar atento dele não era o de sempre, mas eu tentei disfarçar. Ele sabia que eu estava diferente, ele sempre sabia. Mas eu não sabia o que dizer, e não sabia nem como justificar a distração que se apoderava de mim.
Matheus levantou-se assim que me viu e veio até mim, com aquele sorriso que sempre me confortava, mas que agora parecia distante. Seus braços envolvem meu corpo, mas eu estava ali, sem conseguir realmente me entregar.
— Como foi o seu dia? — ele perguntou, ainda segurando meu rosto com carinho. Havia um toque de preocupação em seus olhos, mas também uma pitada de exaustão, como se ele já soubesse que algo não estava certo.
Eu respirei fundo, tentando parecer normal.
— Tudo bem — respondi, tentando esboçar um sorriso, mas algo no meu tom traía a mentira.
Eu sabia que ele sentia. E, pior, ele não estava perguntando apenas por educação, ele estava sentindo que havia algo a mais.
Matheus me puxou um pouco mais para perto, como se quisesse me manter ali, como se soubesse que algo estava se quebrando entre nós.
Eu deveria responder, dizer que meu dia foi bom, que eu estava apenas cansada. Mas as palavras se perderam na minha garganta. O peso do convite de Clara, a lembrança de Cadu… tudo isso me apertava. Eu não sabia se estava mais assustada com o que poderia acontecer com meu relacionamento, ou com o que eu mesma poderia descobrir sobre mim mesma, se fosse até o fim dessa lembrança.
— Você está bem? — Ele tocou minha testa, afastando os fios de cabelo que estavam desordenados.
Aquela pergunta simples fez um nó apertar na minha garganta. Não era simples. Nada era mais simples.
— Sim... Só cansada, acho. — Fui evasiva, mais uma vez.
Ele me olhou por um momento mais longo, como se fosse ler minhas emoções em cada pequena expressão. Não consegui disfarçar o quanto estava fora de mim, nem o quanto aquela situação me machucava.
Matheus sabia que eu não era de esconder minhas angústias. Sempre fomos transparentes, sempre tivemos o hábito de contar tudo. O problema agora é que eu não sabia nem o que dizer, nem como colocar em palavras o que estava acontecendo dentro de mim.
Ele olhou para o sofá, e então para mim, antes de se afastar. Não era uma reação agressiva, mas havia algo nele que havia mudado. Algo dentro dele também estava se movendo.
— Eu vou tomar um banho — disse ele, tentando dar um toque normal à situação. Mas não era normal. Eu sabia disso.
Fiquei sozinha por um momento. A casa estava silenciosa, mas dentro de mim o barulho era ensurdecedor. A lembrança de Cadu me invadia sem pedir licença, e eu não sabia se me sentia culpada por isso ou se era algo que eu não podia controlar.
O reflexo no espelho do corredor me fez parar. A luz suave da casa me fez ver uma Amanda que eu não reconhecia. Estava distante, de corpo e alma. Como se o que me definia já não estivesse mais aqui. Uma estranha sensação de desconforto me tomou. Eu não estava mais sozinha com meu marido. Eu estava sozinha comigo mesma.
Fui até o banheiro e entrei no chuveiro, sentindo a água quente escorrer pela minha pele. Mas o que eu sentia dentro de mim não estava sendo lavado. As imagens de Cadu, a sensação de sua presença, a lembrança do desejo que ele despertou em mim... tudo isso estava mais vivo agora do que nunca.
Fechei os olhos e me deixei cair contra a parede do box, tentando respirar. A água não era suficiente para apagar a chama que se reacendia dentro de mim. O que aconteceu entre nós foi algo que eu nunca soube como explicar, e agora, anos depois, ainda parecia ter poder sobre mim.
Quando saí do banho, Matheus já não estava mais na sala. Ele provavelmente tinha ido se deitar. O clima estava carregado, e algo me dizia que ele sabia que havia algo mais por trás do meu comportamento, mas ele não sabia o quê. Eu não sabia o quê.
Me vesti lentamente, a mente em turbilhão, e olhei mais uma vez para o espelho, como se esperasse encontrar ali uma resposta. Mas, em vez disso, só vi uma mulher perdida.
Uma mulher que estava dividida entre o que amava e o que não conseguia esquecer.