Capítulo 2 – Matheus
Sempre achei um pouco clichê esse papo de "uma noite mudar tudo". Mas é exatamente o que aconteceu comigo.
Era uma festa de faculdade — dessas em que a música é alta demais, a bebida é ruim e as conversas, rasas. Eu já estava no oitavo período de TI e só fui porque um amigo insistiu. Estava cansado, cheio de trabalho, com a cabeça em outro lugar. Sentei num canto qualquer, com uma cerveja na mão, planejando sair na primeira desculpa plausível.
E foi então que vi ela.
Não tinha nada de espalhafatoso. Não era a mais produzida, nem a que mais falava. Mas tinha uma luz. Amanda estava rindo com um grupo perto da mesa de drinks, e por um instante eu não ouvi mais a música. Só fiquei ali, observando o jeito como ela inclinava a cabeça quando ria, como seus olhos se apertavam, como se o mundo todo valesse a pena por aquele sorriso.
Não sei como arrumei coragem, mas fui até ela. E mesmo gaguejando, mesmo sentindo o coração acelerar como se tivesse quinze anos, puxei assunto. Falamos sobre qualquer coisa — curso, música, séries idiotas da Netflix. Mas eu me lembro até hoje da sensação: era como se eu estivesse me reconectando com alguém que já conhecia. Como se a gente tivesse se encontrado de novo, depois de um intervalo de vida.
Depois daquele dia, a gente não se largou mais.
Tivemos fases boas e ruins. Discutimos por bobagens, nos afastamos em momentos difíceis, mas sempre voltamos. Amanda é meu amor, mas é também minha melhor amiga. A única pessoa com quem consigo ser inteiro, sem filtro. A única que eu sei que vai me ouvir até quando eu não sei explicar o que estou sentindo. A gente construiu uma relação com base nisso: verdade. Mesmo que doa. Mesmo que machuque, às vezes.
Ela sempre foi intensa. Amorosa. Precisa do toque, do carinho. É daquelas que te olha como se pudesse ver dentro. E eu nunca quis outra coisa senão ser esse "dentro" para ela. Ser o lugar seguro onde ela pudesse descansar o mundo.
Quando ela abriu o escritório dela, eu fui o primeiro a comemorar. A primeira cadeira, a primeira impressora, tudo o que ela tem lá, teve meu toque, meu apoio, minha torcida. Não porque eu queria aplausos. Mas porque eu via nela um brilho que precisava ser cultivado. Amanda nasceu pra fazer o que faz. E eu nasci pra estar ao lado dela.
Hoje, quando acordei, vi a cama vazia por um instante. E o quarto tinha o cheiro dela — o perfume na pele, o suor da noite anterior, o calor da nossa comemoração de cinco anos de casamento. Levantei devagar, com aquele sorriso de quem ainda sente o corpo leve depois do prazer. Quando fui até a cozinha e a vi de costas, só de camiseta, mexendo no café, senti tudo de novo.
O amor. A sorte. A certeza.
Ela virou, com aquela cara de quem já viveu o mundo só naquela manhã, e sorriu. A gente riu de uma bobagem, se beijou, falou do dia. Tudo natural. Tudo nosso.
Mas o resto do dia… foi o completo oposto.
Mal cheguei no escritório e o Renato já estava me esperando com aquele sorrisinho irônico. Ele é desses chefes que acham que sabem de tudo e adoram jogar indireta na frente dos outros. Jogou um relatório na minha mesa, atrasado por culpa dele mesmo, e já veio dizendo que “esperava que eu fosse capaz de compensar o tempo perdido”.
Respirei fundo, engoli a resposta que me queimava na língua.
O problema é que, depois dele, ainda teve o Léo, meu colega de equipe, que adora terceirizar responsabilidade. Me deixou com um bug crítico de um sistema que ele nem devia estar mexendo. Passei a tarde toda tentando resolver o que ele fez cagado e ouvindo o barulho irritante do ar-condicionado pingando atrás de mim. Sério, parecia tortura chinesa.
Sai mais tarde do que devia, exausto, com a cabeça quente e o estômago vazio. No carro, o trânsito da Rui Barbosa me fez pensar que talvez a humanidade já tenha alcançado o inferno — e ele tem buzinas e faróis vermelhos.
Mas aí veio o alívio: eu ia ver Amanda. Ia encostar minha testa na dela, ouvir sua voz, talvez jantar qualquer coisa no sofá, de pernas entrelaçadas.
Quando cheguei em casa, a luz estava acesa. Ela estava na cozinha, de novo — mas não como de manhã.
Estava parada, olhando o celular com a testa franzida. Quando me viu, sorriu... mas demorou um segundo. Um segundo a mais do que o normal.
— Oi, amor. — Ela disse, e veio me dar um beijo. Rápido. Curto demais.
Talvez fosse o cansaço. Talvez fosse paranoia minha. Mas algo ali… estava fora do lugar.
A mesma mulher, o mesmo cheiro, o mesmo abraço.
Mas tinha alguma coisa diferente nos olhos dela.
E eu senti — mesmo sem saber o quê — que alguma coisa no nosso eixo tinha começado a sair do prumo.