Capítulo 1 – Amanda
A luz que vazava pelas frestas da cortina era suave, dourada, quase preguiçosa. O silêncio da manhã só era quebrado pela respiração profunda de Matheus, que dormia de lado, virado para mim, com o rosto parcialmente afundado no travesseiro. Seu braço repousava onde antes, horas atrás, estivera meu corpo inteiro. Sorri com ternura.
Cinco anos.
Na noite anterior, comemoramos o aniversário do nosso casamento com vinho, risadas e nossos corpos entrelaçados como no começo, como se o tempo não tivesse diminuído o fogo — só o deixado mais profundo. O amor estava ali, mas o que me preenchia agora era a calma. O tipo de calma que só vem depois do prazer compartilhado, da intimidade cultivada no detalhe.
Desvencilhei-me devagar dos lençóis e me levantei nua, sentindo a brisa morna do quarto acariciar minha pele. O espelho no canto revelou meu corpo como ele é: pele clara, marcada sutilmente pelas mãos dele da noite anterior, seios pequenos e firmes, quadris delicados, e a curva empinada da minha bunda — que ele sempre faz questão de elogiar com a boca e as mãos. Passei os dedos pelo cabelo, solto e desalinhado, e me estiquei com prazer, como se ainda sentisse Matheus em mim.
Na cozinha, acendi a cafeteira e fui separando as coisas do café da manhã. O cheiro começou a se espalhar quando ouvi seus passos lentos pelo corredor.
— Já acordada? — ele disse, com a voz ainda rouca de sono, encostando na porta com aquele sorriso que me fez me apaixonar.
— Não consegui dormir de novo — falei, olhando por cima do ombro. — A cama ficou muito vazia sem você.
Ele se aproximou, me abraçando por trás, o corpo quente e o peito nu colando nas minhas costas. Ficamos ali alguns segundos, em silêncio, só respirando juntos. Ele beijou meu ombro.
— Ainda é cedo. Dá tempo de a gente voltar pra cama, se quiser...
— Safado. — Ri, virando o rosto para ele. — Mas você não disse que tinha reunião?
— Tenho. Mas você sabe que eu tenho prioridades.
Dei um tapinha leve nele e voltamos ao ritmo da manhã. Café, roupa, beijo na porta. Eu peguei minha bolsa e fui para o escritório.
Meu dia no trabalho começou como tantos outros: revisão de contratos, atendimento a clientes, audiências marcadas e canceladas. O escritório na Jaqueira ficava numa sala bem iluminada, com vista para as copas das árvores, e por vezes me distraía olhando os galhos se movendo, tentando adivinhar a direção do vento.
Depois do almoço, num momento raro de pausa, Clara apareceu sem bater, como sempre.
— Tá ocupada?
— Sempre. Mas entra.
Ela se sentou como se fosse dona da cadeira e abriu um sorriso que eu já conhecia bem.
— Lembra da nossa faculdade? Vão fazer uma semana de palestras comemorando os 60 anos do curso. E adivinha só… te chamaram pra dar uma palavrinha. Coisa breve. Só pra contar tua trajetória, inspirar os calouros.
— Eu? Achei que tinham esquecido que eu existia.
— Amanda… tu tem um escritório com 24 anos. É claro que te lembram.
Ela abriu o celular e começou a listar os nomes dos outros convidados.
— Vai ter o juiz Alcides, a promotora Thaís Barreto, o defensor público Davi Cavalcanti… Ah! E o professor Carlos Eduardo.
Foi como se o tempo parasse por um instante.
Carlos Eduardo.
Meu corpo respondeu antes da minha mente processar. Um calor súbito subiu pela barriga, como um arrepio ao contrário. Senti os dedos esfriarem enquanto o rosto esquentava. Clara não notou — ou fingiu não notar.
— Lembra dele? Aquele grisalho bonitão das aulas de Penal?
Assenti com um sorriso breve. Claro que lembrava. De tudo. Da voz grave, dos olhos que pareciam saber mais do que deviam, da tensão absurda de uma sala vazia onde só deviam haver palavras, mas havia também um desejo silencioso. Daquele beijo rápido, proibido, que nunca contei a ninguém.
— Então? Vai aceitar? — Clara perguntou, ainda mexendo no celular.
Engoli em seco.
— Vou pensar, tá? Depois te confirmo.
Ela saiu logo depois, deixando a porta aberta e o cheiro do perfume misturado à lembrança do nome que fazia meu corpo reagir contra a minha vontade.
Carlos Eduardo.
Depois de cinco anos de paz, ele voltava a aparecer. Não com o corpo — ainda — mas com o nome. Com o som que ativava memórias que eu achei que o tempo já tinha dissolvido.
Fechei a porta da sala com calma, respirei fundo, mas por dentro estava acelerada. Sentei na poltrona, de costas para a janela, e encarei o reflexo no vidro escuro da tela do computador.
Por que isso ainda mexe comigo?
Não foi nada, eu dizia a mim mesma. Um beijo, um instante fora de lugar, numa época em que tudo era mais leve — ou mais inconsequente. Eu era uma garota de vinte anos, impressionável, cheia de vontades que não sabia nomear. Hoje eu sou uma mulher casada, segura, feliz. Ou... sou?
Mordi o lábio sem perceber. A sensação era como se algo tivesse sido despertado, algo que ficou ali, adormecido, como uma semente debaixo da terra seca. E agora bastou um nome para começar a germinar.
Por que ele ainda tem esse efeito em mim?
Fiquei ali parada, observando a sombra da minha própria dúvida crescer no fundo da tela apagada. E percebi uma coisa: não era só surpresa. Tinha curiosidade. Tinha... calor. Como se meu corpo tivesse me lembrado antes de mim o que era estar perto dele.
Me levantei devagar, ajeitei a blusa e passei a mão no cabelo, tentando afastar o pensamento. Mas não adiantava. Ele já estava ali. Presente. Real. Quase como se pudesse entrar pela porta a qualquer momento.
E naquele instante, sozinha no meu escritório, senti algo que não sabia nomear. Um incômodo doce, uma inquietação no centro do peito. Como se eu mesma tivesse se tornado um lugar estranho para mim.
E eu soube.
Por mais que dissesse a Clara que ainda ia pensar…
Eu já sabia que iria.