Parte 2 - O desejo que cresce em silêncio

Da série Quase sem querer
Um conto erótico de Davi
Categoria: Heterossexual
Contém 2115 palavras
Data: 26/04/2025 14:51:00

Capítulo 4: Quase

Depois de um dia intenso na feira, com apresentações, networking e uma enxurrada de informação técnica, voltamos à pousada com o corpo cansado — mas a cabeça ainda ligada. Era como se a cidade tivesse um efeito estranho na gente, uma mistura de calmaria e provocação. Estávamos ali a trabalho, mas tudo conspirava pra fazer a gente esquecer disso.

Daniela saiu do banho antes de mim, já pronta, sentada na beira da cama passando um batom discreto. Jeans justo, uma bota cano curto, blusa preta de manga longa colada ao corpo e aquele perfume dela que parecia ter sido feito pra mim.

— Tá pronta assim por quê? Vai sair? — perguntei, meio de brincadeira, já sabendo da resposta.

— Você que me prometeu um boteco com música boa, ué. — respondeu, sorrindo de canto.

— Achei que fosse brincadeira...

— Sorte a sua que eu adoro levar as brincadeiras a sério.

Saímos sem rumo definido. Dirigindo pelas ruas da cidade, os letreiros pequenos, o frio do lado de fora e a música tocando baixinho no rádio criavam o clima. Entramos numa ruazinha lateral onde uma fachada simples, de madeira escura, indicava um boteco que parecia promissor. Luz baixa, cheiro de cachaça e carne assada, e um cantor regional no palco com um violão no colo — voz rouca, afinada, cantando como se fosse história vivida.

A gente sentou num canto, de frente pro palco, numa mesa alta. Pedimos as bebidas — ela foi de drink, eu de cerveja. O garçom trouxe um balde de cerveja logo depois, por conta da casa. “Primeira vez aqui?”, ele perguntou. Daniela assentiu, sorrindo. “Então hoje é por minha conta. Amanhã vocês voltam”, ele disse, já virando as costas.

A música era um convite constante. No meio de "Propaganda", ela se aproximou da mesa, me encarando.

— Vamos dançar?

— Não sou bom com isso...

— Eu também não. Mas quero assim mesmo.

Ela me puxou pela mão. As luzes amarelas do salão davam à cena um ar quase cinematográfico. Estávamos ali, dançando no meio de alguns casais e grupos de amigos, meio tímidos no começo. Mas a música ia guiando o corpo, e nossos corpos, mesmo sem pressa, foram se ajustando, se encaixando devagar. Meus braços envolveram a cintura dela. Os olhos se cruzaram e não desviaram mais. Uma sequência de músicas nos manteve ali por um bom tempo.

Ela me olhou, o rosto próximo. O som ao redor parecia ter diminuído. O mundo se resumia ali, no calor do corpo dela, no perfume invadindo meus sentidos, na respiração leve dela batendo de leve no meu rosto. A mão dela subiu pelo meu ombro até a nuca, os olhos brilhando mais do que qualquer luz daquele lugar. A boca... tão perto da minha. Quase.

— Davi... — ela sussurrou, com a voz entrecortada, os lábios ainda a milímetros dos meus.

Eu não disse nada. Só olhei. Era agora.

Ela respirou fundo, fechou os olhos por um instante, e recuou o rosto.

— A gente não pode. — disse, num tom de dor contida, como se estivesse pedindo desculpas por fazer a coisa certa.

O vazio entre nós, depois daquilo, foi ensurdecedor. Ficamos parados, ainda de mãos dadas, os olhos fixos um no outro. A música continuava, mas pra mim tudo havia silenciado.

— Você tá certa, me desculpa. — consegui responder, mesmo que uma parte de mim gritasse o contrário.

Voltamos pra mesa sem dizer nada. Terminamos a bebida como quem termina uma história que ainda nem começou. Depois, dirigimos em silêncio até a pousada, cada um preso na própria cabeça, revivendo aquela dança, aquele momento que esteve a segundos de acontecer... e não aconteceu.

E talvez tenha sido isso que tornou tudo ainda mais intenso.

Capítulo 5: Cargas Elétricas Invisíveis

A manhã seguinte começou com um café silencioso no saguão do hotel. Eu havia dormido pouco, o corpo ainda acusando o cansaço da viagem e da noite anterior no boteco. O clima entre mim e Daniela estava estranho — não no sentido ruim, mas carregado. Como se algo não resolvido pairasse no ar.

Ela parecia tranquila, falando sobre a programação da feira, sobre os expositores que queria visitar. E eu, como um idiota, me pegava observando o jeito como ela mexia no café, como os olhos dela se acendiam quando falava de algum tema técnico. Cada vez mais, eu me via dividido entre a razão e aquele desejo bruto e perigoso que crescia dentro de mim.

Já na feira, o ambiente era outro. Grande, movimentado, cheio de estandes chamativos, telas com vídeos institucionais, engenheiros de todos os cantos do país. A engenharia em sua essência — inovação, precisão, tecnologia. Nós dois circulamos juntos a maior parte do tempo, nos revezando entre uma conversa técnica aqui e uma troca de olhares disfarçada ali.

Foi perto do meio-dia que tudo mudou de tom.

Estávamos diante de um estande de automação industrial, quando ouvi alguém chamar:

— Dani? Daniela Almeida?

Ela se virou de imediato. O rosto dela se iluminou com um sorriso de surpresa.

— Rodrigo? Meu Deus, quanto tempo!

O homem se aproximou com passos firmes. Alto, bem vestido, a postura de quem comanda — e sabe disso. Ele a cumprimentou com um abraço breve, polido, mas que me pareceu íntimo demais. Ou talvez fosse só coisa da minha cabeça.

— Você aqui? — ela disse, animada. — Nem sabia que sua empresa participava dessa feira.

— A gente começou este ano. Estou liderando o projeto de integração com inteligência artificial. Tô até com um painel agora à tarde, se quiser assistir...

— Com certeza! Que incrível, Rodrigo. Nossa, quanto tempo mesmo. Você tá com a mesma cara de quando era meu chefe, acredita?

Chefe.

A palavra bateu estranho. Aquilo automaticamente me tirou do eixo. Ele não só a conhecia de antes — ele foi superior direto dela. E agora estava ali, todo à vontade, sendo claramente bem-vindo.

— E você tá com o mesmo sorriso de quando deixava meus argumentos fracos nas reuniões — ele respondeu, num tom brincalhão, confiante, sem nunca tirar os olhos dela.

Não sei o que me incomodava mais: o jeito como ele falava com ela, ou o fato de que eu não tinha absolutamente nenhum direito de me incomodar.

Daniela, para o meu alívio, desconversou com elegância, mudando o foco da conversa.

— Ah, deixa eu apresentar: esse é o Davi, colega lá da empresa. Viemos representar juntos a equipe aqui na feira.

Rodrigo me olhou e estendeu a mão. Um aperto firme, calculado.

— Prazer. Você tem sorte de ter a Daniela como parceira nesse projeto.

Assenti, tentando manter um sorriso educado, mas me sentia completamente deslocado. Ele era tudo o que eu, naquele momento, não me sentia: confiante, estável, imponente. E pior: parecia saber que mexia com ela, mesmo que ela não retribuísse no mesmo tom.

Depois que ele se despediu, dizendo que a aguardava no painel, seguimos andando, mas algo dentro de mim estava inquieto.

— Rodrigo era seu chefe mesmo?

Ela me olhou de lado, com uma sobrancelha levantada.

— Era. Trabalhamos juntos por uns dois anos, numa consultoria. Um gênio, mas meio difícil de lidar. Sempre respeitoso, mas dava pra perceber que... enfim.

Ela deixou no ar. E eu entendi.

— E vocês mantêm contato?

— Não. Saí de lá e nunca mais falei com ele. Foi surpresa encontrá-lo hoje.

Assenti, como se aquilo fosse suficiente pra me acalmar. Não era.

Ficamos o resto da tarde imersos na feira, mas minha cabeça estava uma bagunça. O incômodo de vê-los juntos, a sensação de que ele poderia oferecer a ela algo que eu jamais conseguiria — especialmente sendo eu quem estava escondendo a existência de uma noiva em outro estado.

À noite, de volta ao hotel, fiquei sozinho por um tempo no quarto. Abri o celular, olhei mensagens não respondidas da minha noiva. Eu não falava com ela desde o dia em que embarquei. Não porque havia brigado ou algo assim. Simplesmente... não sabia o que dizer. Nada do que eu falasse pareceria real, nem justo. Porque meu pensamento já não estava mais lá.

No final do dia, Daniela bateu na minha porta para me chamar. Iríamos jantar novamente — dessa vez, ela tinha encontrado um restaurante típico. Um lugar simples, com mesas de madeira, cheiro de comida feita na hora e um palco pequeno onde um cantor solitário dedilhava um modão com alma.

O clima era acolhedor. A gente bebia devagar, conversava mais ainda. Ria de bobagens. Aos poucos, o desconforto da tarde foi ficando pra trás. Ou pelo menos, sendo empurrado pra debaixo do tapete com os goles de cerveja gelada e a música falando exatamente o que não podíamos dizer.

Em algum momento, puxei minha cadeira para o lado de Daniela, de modo que ficamos de frente pro palco, cantando juntos — bem fora de ritmo rsrs. Daniela me puxou pela mão:

No meio daquele salão, já tomados pela tensão e talvez um pouco por efeito da bebida, coloquei o braço no encosto da cadeira dela, meio que como um abraço. A letra da música falava de amor escondido, de vontades sufocadas. E ali, no embalo da melodia, cantando com os rostos bem próximos, eu quase esqueci de tudo.

Quando nossos rostos se aproximaram, quando o beijo parecia inevitável, ela parou.

Os olhos nos meus.

— A gente não pode fazer isso.

Respirei fundo, o corpo inteiro em combustão.

— Eu sei...

Ficamos ali, colados e congelados. As vontades gritando. A moralidade batendo à porta. E uma certeza cravada no ar: aquilo ainda estava longe de terminar.

Capítulo 6: O Peso do Silêncio

Voltei do restaurante com um nó no peito. O carro de aplicativo nos deixou em frente ao hotel, e o caminho até o quarto foi feito num silêncio que dizia muito mais do que qualquer conversa que tivéssemos tido naquela noite. Nem Daniela, nem eu, parecíamos saber como agir depois do quase acontecimento.

Ela tirou os sapatos assim que entramos e foi direto pro banheiro, dizendo apenas que ia tomar um banho rápido. Fiquei ali, no quarto, meio sem saber o que fazer com meus próprios pensamentos. O som da água caindo era a única coisa que quebrava o silêncio.

Foi quando senti que não dava mais pra empurrar aquilo. Eu precisava encarar o que estava tentando ignorar desde o início da viagem. Peguei o celular e sentei na beira da cama. Liguei.

Chamou várias vezes antes de ser atendido.

— Oi, ela disse, seca.

— Oi... tudo bem?

— Uhum. Você só ligou agora?

— É. Os dias aqui foram puxados. Acabei me enrolando. Silêncio. Do outro lado, ela não parecia se importar. — A gente tá bem? — perguntei, sem rodeios.

Ela suspirou.

— Davi... agora? Sério?

— É que eu... sei lá. Queria conversar. Entender se ainda faz sentido. Se você ainda me ama. Se a gente ainda quer a mesma coisa.

Mais um silêncio. Longo. Incômodo.

— Eu não sei, Davi. Eu tô cansada. De tudo. Da gente. Faz tempo que não é mais leve, sabe?

As palavras dela me atravessaram. Eu tentei manter a compostura.

— Você acha que vale a pena continuar tentando?

— Acho que a gente já tentou. Talvez demais. Talvez mais do que devia...

Fechei os olhos. Aquilo era quase uma despedida. Quase.

— Tá. Eu... eu precisava ouvir isso.

— Boa noite, Davi.

— Boa noite.

A ligação terminou, e com ela, parte do que eu ainda tentava manter de pé.

Levantei num impulso. Peguei a chave do carro alugado e desci.

A cidade estava quieta, iluminada pelas luzes amarelas dos postes e o vaivém intermitente dos faróis. Dirigi sem destino, as mãos apertadas no volante e a cabeça um caos. Abri os vidros. Precisava de ar. Precisava pensar. Ou não pensar em nada.

Estacionei num lugar qualquer depois de uns vinte minutos dirigindo. Fiquei ali, dentro do carro, olhando pro nada. Tentando entender como cheguei àquele ponto da vida. Com um relacionamento morrendo em silêncio, preso num compromisso que só existia por inércia... e ao mesmo tempo, completamente tomado por uma mulher que eu mal conhecia, mas que estava me desafiando a sentir de novo.

Voltei pro hotel quase uma hora depois. O quarto estava com as luzes baixas. Daniela já dormia. Deitada de lado, os cabelos soltos, a expressão serena. O quarto inteiro parecia respirar em silêncio.

Tirei os sapatos e caminhei devagar até o armário. Peguei um cobertor mais grosso, dobrei e forrei o chão ao lado da cama. Peguei um travesseiro e me deitei ali, sem fazer barulho.

Fiquei um tempo olhando pro teto.

A respiração dela, leve, regular, era a única coisa que me conectava ao mundo real.

Fechei os olhos.

Ali, no chão gelado do hotel, encontrei um tipo estranho de paz. Aquela noite, mesmo sem toque, sem palavras, sem beijo, foi a mais íntima que tivemos até então.

E eu adormeci ao lado de alguém que, sem saber, já mexia com tudo o que eu acreditava ser imutável.

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