como sempre maravilhoso
Ensaio de cores - Esotérico
E aí que eu, tão racional e meticuloso sobre cada passo da minha vida, estava, naquele momento, envolto nos braços daquele garoto que até ontem era inocente, mas que pelas coisas que ele estava fazendo comigo, indicavam que ele não era garoto e menos ainda inocente. Suas mãos circulavam com avidez pelo meu corpo, mas ele sabia o que estava fazendo, seu toque, seus lábios sobre os meus, sua respiração ofegante, tudo me atingia com uma violência que eu não entendia de onde vinha. Então eu sempre o achei interessante?
- Então eu sempre tive esse tesão nele? Então ele sempre quis me pegar?
Os pensamentos viam num raio e se afastaram na mesma velocidade à medida em que ele tomava conta do meu corpo. A partir de determinado momento não era mais ele, era eu. Minha camisa foi tirada com toda a rapidez, e o mesmo foi feito com a dele. Seu corpo era lindo, e não era exagero dizer que cada detalhe ali me atraía.
- Desde quando eu estava atraído por ele? Desde o esbarrão na faculdade? Desde a primeira taça de vinho? Será que desde o último natal na casa da Vó Cleusa?
Pensamentos demais, que vinham e desvanceciam na mesma intensidade com que ele apertava a minha cintura, arrancando de mim vez ou outra um gemidinho. Ele era intensamente, sabia o que estava fazendo e fazia propositalmente. Da mesma forma que eu o devorava e sentia seu sabor com meus lábios, o mesmo ele fazia comigo. Eu estava em seu colo, mas as coisas se desenrolaram tão intensamente, que eu somente me dei conta disso quando me percebi rebolando sobre o volume de seu pau. Suas mãos apertavam minha cintura com mais força à medida em que eu me movimentava, deslizando com relativa facilidade sobre o tecido de seu jeans. O ar-condicionado estava ligado no máximo, mas não era suficiente para conter as gotas de suor que brotavam sobre a minha testa.
Num ato impulsivo meticulosamente calculado, deslizei um pouco o meu quadril para trás, me apoiando mais em suas coxas, o caminho aberto era suficiente para observar sua ereção. Enfim nos afastamos, seu rosto estava suado e seus lábios vermelhos, fosse pelo vinho ou pelo tempo que estávamos agarrados. Antes que eu pensasse, ele arqueou sua coluna e veio de encontro aos meus lábios, nesse momento, deslizei uma de minhas mãos até sua ereção e a apertei firmemente, Antes que seus lábios tocassem os meus novamente, a mágica ocorreu diante de meus olhos: ele soltou um gemido rouco e firme que ecoou pela casa, mordeu seus lábios e relaxou o suficiente para soltar a minha cintura. Apoiado sobre seus joelhos com o corpo levemente jogado para trás, minha sustentação vinha quase que exclusivamente de suas mãos, sem elas, aquela que foi uma das primeiras vezes que o fiz gemer, também ficou marcada pela minha queda.
O desequilíbrio veio a galope e caí. Caí no chão e em mim. Eu estava me atracando com um menino mais novo que eu, que vi crescer, e que ainda vivia de auxílio universitário do início da graduação. Eu estava totalmente fora de mim. O tombo foi físico e metafísico: aquilo não poderia continuar.
- Gabriel, tá tudo bem? - ele estendeu o corpo até mim, estendendo a mão para me puxar.
- Tá… tá tudo bem. - eu estava visivelmente nervoso. Cogitei me afastar, mas terminei por segurar sua mão, que rapidamente me puxou para cima.
- Você tá bem mesmo? - ele me olhava atentamente, um scanner tão profundo que poderia, que parecia querer checar também como estava a minha alma.
- Eu tô bem, juro.
- Tem certeza?
O tom dele mudou. Não era mais preocupação, ele queria me conduzir novamente para aquela atmosfera. A realidade era que ele não precisava de muito para me levar de volta aos seus lábios. Apesar da queda e de estar sentindo uma leve dor no braço que amorteceu a queda, eu não havia deixado, por um só segundo, de desejá-lo. É como se um véu tivesse caído sobre meus olhos e tudo sobre o Danilo, de sua beleza à inteligência, tivesse se convertido na mais profunda vontade de beijá-lo. Mas até que se provasse o contrário, eu era forte e sabia resistir aos encantos de jovens calouros.
- Eu tô bem mesmo, Dan. Eu… - ele me encarou, e todas as minhas linhas de raciocínio foram pra o caralho. - eu… eu lembrei que eu tenho um compromisso, compromisso inadiável, e eu já tô em cima da hora. Então eu preciso me arrumar e você precisa…
- Preciso ir. Eu sei. - ele esboçou um sorrisinho, como se estivesse satisfeito de me ver tão desconcertado.
- Isso. Você também tem aula, não é? - estávamos de pé no meio da sala, em uma distância que eu considerava segura o suficiente para não beijá-lo novamente. Eu não estava fugindo dele. Estava fugindo de mim.
- Novamente correto, eu tenho aula daqui a pouco e preciso ir.
- Perfeito, então eu te levo até a porta.
Eu saí da zona de segurança. Minha ideia era seguir até a porta e abri-la, para que isso ocorresse, eu precisava passar próximo ao seu corpo, ao lado, para ser mais preciso. Meus olhos estavam fixos na maçaneta da porta, que eu já tratava como a minha tábua de salvação, e subitamente, meus olhos já não estavam fixos em mais nada. Assim que passei ao seu lado, em um movimento rápido, ele colocou uma de suas mãos na minha cintura, enquanto a outra tocou a minha nuca. Nossos corpos se chocaram, e antes que eu pudesse esboçar uma reação, estávamos enroscados em outro beijo. Mais urgente, mais fugaz e mais efusivo, e não por isso menos explosivo. Ele experimentava me beijava como se quisesse pela última vez a textura dos meus lábios e a mistura doce dos sabores que havia em nossas bocas. A mão da nuca deslizou para a cintura, e de lá para a minha bunda, que ele prontamente apertou. Da mesma forma que começou, ele parou e me encarou, sorrindo ao me ver sem ar, sem palavras e, de certa forma, entregue.
- Eu sei onde fica a saída. - me deu um selinho e se afastou. Seu rosto e lábios estavam vermelhos, e sua roupa, outrora passada e engomada, agora era apenas um retrato roto e amarrotado do que um dia já foi.
Ele pegou sua mochila e saiu em direção à porta, antes de sair, já com a porta aberta, ele se virou, e com aquele mesmo jeitinho de moleque travesso, tornou a falar:
- Até semana que vem!
- Como assim até semana que vem, Danilo? - ele estava cogitando voltar à minha casa?
- Até semana que vem na faculdade, ué! A optativa que eu peguei foi com um tal de Miguel Aragão. Seu orientador, não é?
- Sim. - eu estava incrédulo.
- Então até o final do período, uma vez na semana, algumas horas por dia, a gente vai tá junto. Beijo.
Ele me jogou o beijo e bateu a porta. Fiz, então, depois de muitas informações, a única coisa que me cabia: caí estatelado no sofá. A vida sabia ser uma vagabunda safada comigo, e num intervalo de horas, eu, que me orgulhava de ter uma impecável gestão de tempo, que me permitia ter controle sobre grande parte da minha vida, perdi o controle sobre absolutamente tudo.
Caído, ali, naquele sofá, com vários pensamentos passando pela minha cabeça, e ainda me convencendo que o que havia ocorrido naquela sala foi apenas uma pontualidade, sem maiores consequências, um pensamento avulso e incontrolável tirou de mim um sorriso:
Até que foi gostoso.
*
A aceleração do tempo é uma das áreas de estudo da História, e naquele caso, eu não precisava estudá-la, pela agitação da minha vida eu apenas precisava senti-lá. Conciliar vida profissional, com vida acadêmica e pessoal era um desafio e tanto, e mesmo com uma agenda controlada, as coisas estavam complicadas e eu começava a dar os primeiros sinais de desgaste físico e mental. O relógio do capitalismo era implacável e impiedoso, eu precisava trabalhar. Quando decidi me mudar para a Urca, estava ciente que precisaria me esforçar mais para arcar com tudo. Eu tinha a comodidade de trabalhar de casa, em um ambiente confortável, um privilégio que grande parte da população não possuía acesso; mas isso não anulava ou diminuía a carga de trabalho e responsabilidades com as quais eu tinha que lidar diariamente.
Apesar de tudo, o tempo fez aquela que é a sua principal especialidade: correu. Quando menos me dei conta, já havia se passado uma semana, e mais uma vez eu deveria estar na UNIRIO pela manhã. Havia uma semana da minha briga com o Miguel, e também uma semana que Danilo e eu havíamos nos beijado na minha casa, e de lá pra cá, nada mais aconteceu. O meu plano de ação envolveu não fazer absolutamente nada a respeito.
Em relação ao Danilo, era uma resolução muito simples, nós ficamos somente uma vez. Não havia sentimentos e nem envolvimento, logo, tudo o que eu precisava fazer era não ceder e não ficar mais com ele. Não havia nada de difícil nisso. Agora em se tratando do Miguel, a pauta ficava muito mais confusa e complexa. Ele estava permeado em diversos aspectos da minha vida, fosse ela acadêmica, pessoal ou profissional.
Eu estava na rota de conclusão do meu processo de doutorado, e precisava lidar ainda mais diretamente com ele. Como eu era seu primeiro processo de orientação de doutorado, era preciso que as coisas se desenrolassem da maneira mais perfeita possível.
O Miguel por quem me apaixonei na graduação e com quem aprofundei laços durante o mestrado, em nada se parecia com aquele cara com quem eu estava lidando durante o processo de doutorado. Durante muito tempo eu acreditei que ele apenas estava sendo mais rígido porque se importava comigo e queria que as coisas dessem certo para mim, como se eu fosse um case. Mas a realidade é que não era sobre mim, Miguel estava preocupado única e exclusivamente com o seu sucesso, eu só estava correto com a parte de ser um case. Apesar da propriedade intelectual do projeto ser minha, era ele quem estava recebendo parte significativa dos créditos, mesmo sendo “apenas” meu orientador.
Entre aspas, porque estou ciente de todo o trabalho teórico que ele me entregava, me indicando autores, pesquisas na área e direcionamentos para as minhas linhas de raciocínio. Contudo, não era sobre a orientação que ele estava recebendo os créditos, e sim pela minha escrita. Ele era meu mentor, mas o autor, o responsável por ordenar as ideias e roteirizar o caminho, era eu. Tudo aquilo, somado ao cansaço e frustração de estar sempre à margem de sua vida, sem qualquer perspectiva de melhora, estava me conduzindo a uma situação de ruptura. O rompimento era inevitável, mas eu estava negando o seu assombro em minha vida. Ele não iria mudar, não iria deixar a esposa e os filhos, e no fundo, eu também não queria ser o responsável por quebrar a imagem daquela família perfeita. Eu acreditava que aquelas crianças mereciam ter um pai presente, e eu sabia que ele jamais seria presente se estivesse comigo. Concluir que a paternidade dele só seria exemplar se ele estivesse presente em casa, também servia como indicativo para eu entender que deveria me afastar…
Naquela manhã pré-aula, eu me permiti fazer algo que há muito tempo não fazia: observar o mar. Na minha singela e humilde opinião, o Rio é um dos lugares mais lindos do mundo, e ainda que tenhamos opiniões distintas, me permita dizer que o Rio é o meu lugar favorito no mundo. Dois fatores me fizeram decidir por alugar aquele apartamento na Urca, o primeiro deles é a tranquilidade do bairro. Às 15:00, você pode encontrar ruas pouco movimentadas, seguras e ainda ouvir o barulho das ondas e o canto dos pássaros. Para mim, que vivia uma rotina tão agitada, isso era imprescindível; o segundo ponto é relativo ao apartamento: a vista.
Da varanda era possível ter uma vista privilegiada da Enseada de Botafogo, Aterro, Catete, Glória, parte do Centro e da Ponte Rio-Niterói. Em um dia de boa visibilidade, era até possível observar a Pedra da Gávea. O conjunto da obra era indispensável, ali eu me sentava e me rendia ao nada. Ali não era espaço de trabalho, mas sim de contemplação e reflexão, exatamente o que eu fazia naquela manhã.
Enquanto tomava uma xícara de café, meus pensamentos me conduziam a um mar de possibilidades e soluções para os problemas que eu estava enfrentando. Eu sabia que a solução não iria surgir ao final daquela xícara, mas entendia que a única certeza é que eu precisava mudar.
08:00. O alarme disparou, indicando que eu precisava sair para a faculdade. Era dia de reunião com o Miguel e, depois, com os demais orientandos dele. O dia seria longo. Também seria dia de aula com o Danilo. Com sorte, o dia seria interessante.
*
A reunião com Miguel seguiu o mesmo protocolo das últimas vezes, ele avaliou a minha escrita, fez pontuações, alguns elogios e críticas muito mais ponderadas do que em relação à última semana. Sempre após um surto o Miguel pegava leve comigo, era a maneira que ele encontrava de me reconquistar, mas depois de tantos anos, eu estava tão cansado, que aquilo simplesmente já não surtia efeito. Ao final da reunião, pegamos juntos o elevador em direção à recepção do prédio.
Assim que as portas se fecharam, suas mãos tocaram minha cintura e ele me puxou para perto. Naquele dia ele estava particularmente mais lindo e atraente, com a barba por fazer e uma camisa social que valorizava seus músculos. Desde os eventos da última semana, nós não havíamos ficado mais juntos, e as poucas conversas que tivemos foram estritamente sobre trabalho. Talvez eu já estivesse tentando me esquivar dele, mas foi somente ali, espremido naquele cubículo, sentindo seu toque, seu cheiro e prestes a beijá-lo, que eu me senti seguro para fazer o que eu já deveria ter feito há muito tempo:
- Não. - pus uma de minhas mãos em seu peito, impedindo que ele se aproximasse mais.
- Não?! - ele demonstrou surpresa, como se nunca tivesse ouvido uma negativa na vida, ou como se não esperasse que eu fosse negá-lo.
- Não, Miguel. Eu não quero. Eu realmente não tô disposto. - olhei para o painel superior, acima da porta, e vi que já estávamos no primeiro andar.
- Por que? - ele estava surpreso, mas havia um tom, ainda não maturado, de insatisfação em sua fala.
- Porque não, Miguel. E apesar de não ser algo que você escuta com frequência das pessoas ao seu redor “não”, é um advérbio de negação, e nesse caso aqui, qualifica uma sentença completa. - - Espero que você consiga entender.
A porta do elevador abriu no térreo e eu saí. Não olhei para trás, mas todos os que vinham em minha direção conseguiam observar de longe o sorriso que brotava em meu rosto. Eu havia colocado um limite naquela relação sem qualquer tipo de limite. Ainda não era o fim, mas era um limite. Um pequeno passo para o homem, um grande passo para mim.
Subimos os andares do prédio seguinte acompanhados por funcionários e alguns alunos que iriam para a reunião de grupo e, depois para a aula. A reunião mais importante era a primeira de cada vez. Era nela que ocorriam as grandes discussões de grupo, as outras eram mera formalidade, parte do desejo do Miguel de integrar seus alunos e melhorar a participação dos alunos durante as suas aulas. Apenas alunos seguros conseguem participar de debates, e o que ele proporcionava naqueles encontros era um ambiente seguro - desde que você não fosse seu amante rs - para discutir livremente ideias.
Quando chegamos ao auditório em que a reunião e a aula ocorreriam - as turmas do Miguel enchiam o suficiente para ocuparem um auditório -, Danilo já estava na porta nos aguardando. Se Miguel estava lindo o suficiente para ter somente beleza, Danilo, assim que me viu e sorriu, demonstrou ter beleza e graça. Não era só o belo, era tudo o que vinha incluso com ele. Danilo tinha um charme, um sorriso maroto e jovial que eu deveria ter, mas que as pancadas da vida me fizeram perder.
Miguel passou por ele como um furacão, e ao perceber que a porta do auditório estava trancada, teve um de seus mini ataques, que eu já conhecia. Uma negativa e uma porta trancada podem realmente afetar um homem de ego inflado. Enquanto ele surtava, tentando encontrar alguém para abrir a porta, Danilo tentava quebrar a tensão que havia somente da minha parte.
- Como você tá? - ele estava sentado no chão, e me olhava de baixo para cima. Eu evitava encará-lo, mas estava nervoso como há muito tempo não ficava.
- Bem, e você? - observava ao longe Miguel ser passivo-agressivo com algum funcionário que estava tendo a pior experiência de seu dia, com um professor visivelmente desequilibrado.
- Tranquilo, muita coisa pra resolver, mas animado pra aula de hoje. - enquanto ele falava, percebi que meu cadarço estava desamarrado, e sem pensar muito, me agachei para amarrá-lo novamente, foi só quando eu estava agachado, na mesma altura que ele, com os rostos extremamente próximos, que me dei conta da cilada. - Agora eu tô melhor. - ele sorriu.
- Foi você, né? - ele conteve uma risada.
- Não sei do que você tá falando, esquentadinho. - agora eu quem estava me segurando para não rir. Ele era maluco, e a minha missão era não bater palma pra ele.
- Olha, pra quem diz que não é mais um bebê, até que você ainda sabe se portar como um. - ele mordeu os lábios, visivelmente incomodado. Eu já havia terminado de amarrar o cadarço, mas permaneci ali.
- E pra quem me vê como um bebê, até que você tá com muita gracinha pra cima de mim. - ele arqueou uma sobrancelha, me fazendo rir pela primeira vez.
- É?! - não tô ciente de nada.
- Ué, perdeu o juízo de vez depois que me beijou?
Ele me pegou desprevenido, foi só ali que me dei conta que eu estava dentro de um joguinho, de um flerte. Tinha tempo que eu não fazia aquilo, e que bom saber que eu ainda era bom, mas aquele não era o ambiente, ele não era a pessoa, e a chegada do Miguel só serviu para me brecar ainda mais.
- Vamos, Gabriel, consegui a chave. Vá ligando o projetor, que eu vou abrindo a apresentação.
Respirei fundo e me levantei. Ser negado deixou o Miguel ainda mais chato comigo, mas eu não estava disposto a me estressar. Fiz o que ele pediu sem questionar, quanto antes eu fizesse, mais cedo aquela tortura iria terminar. Eu adorava a reunião e a aula, mas naquele dia, estava especialmente cansado e querendo que o dia terminasse logo.
Os eventos seguiram como sempre, Miguel agiu como um pavão, sendo assediado intelectualmente e, em alguma medida, assediando seus alunos. Era tudo discreto, superficial, mas eu, que já era literalmente mestre naquela área, sabia o que ele estava fazendo. A aula foi de fato interessante, um bom debate foi construído e boas pautas foram colocadas. Nesta segunda parte, eu agia como professor substituto, e apesar de tudo, Miguel não tentou passar por cima de mim, porém pouco contribuiu, tentando me jogar aos lobos, o que foi algo um pouco burro, vindo dele, já que minha oratória e desenvoltura em sala sempre foram pontos positivos ao longo da minha vida acadêmica.
Danilo se envolveu diretamente nos debates propostos, e ainda que eu não quisesse, senti orgulho de vê-lo ali, tão envolvido, ao mesmo tempo, algo dentro de mim foi mordido quando o vi cercado de tantos alunos e alunas, demonstrando intimidade demais com pessoas que ele havia conhecido horas antes. Ele era extrovertido e sociável, era uma maldição e uma bênção. Não deveria me despertar nada, mas despertou.
*
A aula acabou e eu saí daquele auditório como um foguete. Eu ainda precisava trabalhar. O prazo de entrega de dois grandes projetos nas agências estava batendo à porta. Faltava pouco para finalizá-los e ter uma maior flexibilidade na agenda.
A correria era tanta, que eu optei por pegar uma bike Itaú em frente a faculdade. Havia uma estação perto de casa, o que me impediria de pagar multa por atraso de devolução. Coloquei minha mochila na cesta e encaixei os fones no ouvido. Comecei a pedalar com o celular em mãos, pensando em qual som ouvir no curto trajeto, mas antes que eu pudesse dar play, ouvi ao fundo uma voz abafada e cansada.
- Ô. Ô. Ô GABRIEL! - olhei para trás e era o Dan, já sem fôlego, alcançando a bicicleta.
- Cara, que que foi? - parei a bicicleta na calçada.
- Eu tô tentando falar contigo desde o auditório, mas você parece que tem um motor na perna. Tive que correr, e nem assim adiantou. Tava cheio de gente no caminho.
- Certo. - ele se apoiou no assento. - Respira fundo e me diz o porquê desse desespero.
- Eu preciso de um carregador, pô. - ele disse com a cara mais deslavada.
- E o que eu tenho a ver com isso?
- Você é família, porra. - ele parecia genuinamente indignado.
- Danilo, tem um mercado aqui perto. Lá vende carregador.
- Tu acha que a vó ia aprovar esse teu comportamento? Teu primo te pedindo um carregador extra emprestado e você mandando ele gastar 30 contos na zona sul? Tu acha que no subúrbio é assim que a gente faz? - ele sabia ser extremamente insuportável, exatamente como faz um mais novo.
- Não milita, não, porra. A gente cresceu em apartamento no Maracanã, é zona norte, é subúrbio, mas era classe média. Sobe ai no assento traseiro, eu te levo até lá em casa. - ele sorriu. - Mas tu fica na portaria e eu pego o carregador.
- Sem problema pra mim.
Ele subiu na bicicleta e aquilo foi um erro de múltiplas formas. Suas mãos buscaram apoio na minha cintura, e eu pude sentir ele elevar um pouco a minha camisa para que suas mãos tocassem diretamente a minha pele, sua respiração estava próxima à minha nuca, e como quem não quer nada, ele começou a cantarolar uma música, que há dias não saia da minha cabeça:
“Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu pra você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões
Todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar
Nem ficar tão apaixonada, que nada
Que não sabe nadar
Que morre afogada por mim”
O trajeto durou o tempo dos versos. Se eu pedalei devagar para ouvi-lo ou ele acelerou a letra para que eu ouvisse até aquele ponto, era difícil dizer. Paramos em silêncio em frente ao prédio. Ele desceu e eu guiei a bicicleta até a estação. Seguimos até a portaria, que naquele horário estava vazia, no horário de troca entre os porteiros. Ele tentou dar uma de doido, vindo atrás de mim, mas eu o barrei na porta do elevador.
- Você fica. - ele levantou as mãos e dando alguns passos para trás, aceitando o veredito.
Subi e peguei o carregador reserva no meu escritório. Enquanto eu me movimentava, não deixava de pensar o quanto aquilo era interessante. O quanto ele era interessante e mexia comigo, e o quanto eu estava me privando de algo que poderia ser bacana por medo. Quer dizer, nós somente nos beijamos, eu não estava planejando casar e ter uma família com ele, mas eu estava me privando. Estava me privando pelo Miguel, e por medo. Eu estava com medo? Isso! Eu estava com medo, mas medo do quê? De quem? De mim?
E assim pensando, divagando e surtando, a porta do elevador se abriu no térreo. Ele estava ali, parado, me encarando, esperando por algo, e tudo que eu consegui fazer foi estender-lhe a mão e passar o carregador.
- Me devolve semana que vem.
A porta do elevador se fechou. Eu estava sozinho novamente. Merda. Eu deveria ter falado algo, ter feito algo, ter chamado ele pra subir, tê-lo beijado novamente. Era um ato de coragem que poderia ter mudado tudo, e eu o desperdicei. Antes que eu me recostasse na parede e lamentasse mais, a porta do elevador se abriu. Ele ainda estava parado lá. O elevador não havia sequer saído do térreo, porque ele havia acionado o botão. Nós nos olhamos e finalmente eu consegui dizer a única coisa que deveria ter dito 15 segundos antes.
- Sobe comigo.
Ele sorriu. Sorriu da mesma forma que fez pela manhã em frente ao auditório. Assim que ele entrou no elevador, o carregador caiu no chão. Suas mãos largaram tudo para segurar a minha cintura, nossos lábios se encontraram na mesma intensidade que na última semana. A única coisa que se ouviu foi o som da porta se fechando, conosco ali dentro. Presos em nós. Presos naquilo. Vivendo aquilo. Vivendo o agora.
Ele estava certo quando cantou no meu ouvido: mistério sempre há de pintar por aí.