Eu destruí a inocência do meu afilhado para provar que amava minha esposa.
Descobri isso num domingo de sol, desses que parecem cartão-postal de família feliz. A mesa posta, o cheiro de assado com alecrim, a toalha branca que Helena insistia em usar "só em ocasiões especiais". Davi ria alto de alguma história da faculdade, gesticulando com o garfo, a pele ainda brilhando do treino de manhã. Dezenove anos comprimidos num corpo que mal cabia na camisa.
Foi quando vi o que não devia.
Helena inclinou a jarra para encher o copo dele. O gesto era banal, doméstico, repetido mil vezes. Mas os dedos dela demoraram um segundo a mais no punho do rapaz. A mão que eu conhecia de cor, a mesma que segurou a minha na frente de um altar, agora repousava sobre a veia pulsante de alguém vinte e um anos mais novo.
Davi agradeceu sem notar nada. Eu notei tudo.
Vi o brilho nos olhos dela quando ele voltou a rir. Vi a forma como o pescoço dele se esticou ao engolir o suco, e como o olhar de Helena o seguiu, atento demais, faminto demais para ser inocente. Ali, entre o prato de arroz e a travessa de salada, percebi que o que restava de juventude no mundo dela não estava mais em mim.
O ciúme deveria ter subido quente, exigindo gritos, escândalo, porta batida. Em vez disso, veio um frio metódico, uma calma perversa. A sensação exata de quando se abre uma Bíblia já sabendo qual versículo precisa ser lido.
Amar, eu pensei, não é dar flores. É dar o que não se tem. E eu já não tinha o que ela olhava naquela mesa.
Esperei o café terminar. Vi Helena recolher os pratos, vi Davi ajudar a levar a travessa para a pia, todo solícito, todo grato por "mais um domingo em família, tio". Cada gesto comum era um prego a mais na tábua que eu estava serrando debaixo dos nossos pés.
— Davi — chamei, num tom que ele reconhecia desde menino. O tom de quem vai ensinar, nunca pedir. — Depois passa no meu escritório. Quero trocar uma ideia com você. Coisa de homem.
Ele sorriu, sem desconfiar da palavra que eu tinha escolhido. Homem. Ainda não era. E eu sabia exatamente como quebrar essa linha.
***
O escritório sempre foi o meu templo particular. A madeira escura, o cheiro de papel velho, a cruz pequena sobre a estante. Davi entrou ali com a mesma postura de anos atrás, quando vinha mostrar o boletim da escola. Ombros ligeiramente curvados, respeito automático.
— Aconteceu alguma coisa, tio? — perguntou, fechando a porta. — Falei alguma besteira no almoço?
Fiz sinal para que ele se sentasse.
— Não, filho. Não é sobre o que você falou. É sobre o que você ainda não percebeu.
Sentei-me à mesa, girei o anel no dedo e deixei um silêncio pesado se acomodar entre nós. Aprendi, em anos de reuniões e aconselhamentos, que o silêncio aperta mais do que qualquer bronca. Quando vi o desconforto crescer no rosto dele, comecei.
— Você ama a Helena, não ama?
Ele piscou, confuso.
— Claro que amo. A senhora… quer dizer, a tia sempre foi…
— Não “a tia”. — cortei, suave. — A mulher.
A palavra caiu entre nós como um copo quebrando no chão. Davi enrijeceu, as orelhas ficando vermelhas. Por um segundo, pensei que ele fosse negar por reflexo. Mas o silêncio dele bastou.
— Ela está murchando, Davi — continuei. — Não no corpo. No espírito. A casa está grande demais para dois velhos. Eu a vejo acordar de madrugada e ficar olhando para o teto. Eu sei quando um sorriso é para mim e quando é só uma cortesia.
Ele abaixou o olhar, engolindo seco.
— Tio… eu não…
— Eu já não dou a ela o que você tem de sobra — interrompi. — Vida. Fôlego. Fogo.
Levantei-me e fui até a janela, como se procurasse alguma resposta lá fora. Na verdade, eu já tinha a resposta antes mesmo de chamar o menino. Queria apenas ouvir a minha própria voz cruzando a linha.
— Você sempre disse que faria qualquer coisa por mim, não disse? — perguntei, sem virar. — Pelos estudos, pela ajuda, pela casa, por tudo.
— Claro que faria. O senhor sabe disso.
— Então escuta com atenção — disse, enfim voltando a encará-lo. — Hoje eu vou te pedir a única coisa que ainda não pedi.
Vi o medo nascer nos olhos dele, mesmo antes de eu terminar a frase. E foi ali, naquele instante, que percebi: a minha prova de amor por Helena teria o rosto do meu próprio afilhado.
***
A noite daquela segunda-feira foi a mais longa da minha vida. Eu disse a Davi para vir às dez. Passei o dia inteiro ensaiando diálogos, imaginando recusas, mas ele era um bom menino. Bom demais. Leal demais. Ele viria.
Às nove e meia, entrei no nosso quarto. Helena estava sentada na penteadeira, escovando os cabelos. Usava a camisola de seda preta que eu lhe dera.
— Artur? Você está quieto desde ontem.
Aproximei-me, parei atrás dela e olhei para nossos reflexos no espelho. Um casal respeitável, envelhecendo com dignidade. Uma mentira.
— Estou apenas pensando no quanto te amo — sussurrei. — E no que eu faria para te ver feliz de novo.
— Eu sou feliz, Artur.
— Não. Você é conformada.
Ela parou de escovar o cabelo. Seu olhar no espelho tornou-se inquisidor. Antes que ela pudesse perguntar mais, a campainha tocou. Uma única vez. O som ecoou pela casa silenciosa como um tiro de largada.
Helena virou-se para mim, assustada.
— Você está esperando alguém?
— Sim. Um presente para você.
Desci as escadas. Abri a porta. Davi estava parado sob a luz da varanda, pálido como um fantasma. Ele usava um casaco, mas eu sabia que por baixo não havia nada além do corpo que eu oferecera.
— Eu não posso, tio — ele sussurrou, a voz quebrada.
— Você pode. E você vai. — Peguei em seu braço com uma força que não usava há anos. — É uma ordem.
Eu o arrastei escada acima. Helena levantou-se da penteadeira quando nos viu entrar. Seu rosto passou pelo choque, pela negação, e então, ao ver meu olhar determinado, ela entendeu. Uma mão subiu até a boca, abafando um som que poderia ser um grito ou um suspiro.
— Artur, não...
— Sim — respondi, fechando a porta e girando a chave.
Levei Davi até a beira da cama. Ele tremia dos pés à cabeça. Retirei seu casaco, expondo o peito jovem e o terror em seus olhos.
— Deite-se — ordenei a ele.
Então, virei-me para Helena.
— Esta, minha querida, é a minha prova de amor.
Eu me retirei para a poltrona de veludo no canto, desaparecendo nas sombras, e me tornei um deus ausente e onipresente. Um espectador do meu próprio sacrifício.
O silêncio era uma tortura. Durou minutos que pareceram horas. Então, ouvi o som de seda deslizando pelo chão. Ouvi Helena se aproximando dele.
Não vi os detalhes. Eu não precisei. Minha mente completou cada lacuna com a imaginação mais cruel. O que eu ouvi foi o suficiente. O suspiro trêmulo de Davi quando foi tocado pela primeira vez. O murmúrio de Helena, não de protesto, mas de rendição. O farfalhar dos lençóis.
Eu fiquei ali, na minha escuridão, e escutei. Ouvi o ritmo da respiração deles mudar, tornando-se mais rápido, mais pesado. Ouvi os sons que nossa cama de casal nunca havia feito: um ritmo primitivo, urgente, desesperado. Ouvi Helena gemer, um som baixo, animal, que ela nunca me dera.
Cada som era um prego na minha cruz e um hino à sua libertação.
Num momento, ouvi Davi chorar. Um soluço abafado, o som de um menino se partindo ao meio. E então, ouvi minha própria voz, saindo das sombras, um sussurro frio e profano.
— Não pare.
O ritmo acelerou. O choro dele se transformou em um rosnado de esforço. A cama protestava. O ar ficou pesado, carregado com o cheiro de suor e pecado. E então, o som final: o grito sufocado de Helena, o arquejar profundo de Davi, e o silêncio que se seguiu, mais pesado do que qualquer barulho.
A prova estava completa.
***
Davi levantou-se da cama como um autômato. Ele não olhou para ela, adormecida e brilhante de suor. Ele olhou para mim. Em seus olhos, não havia mais admiração. Havia um vazio tão profundo que me assustou.
Destranquei a porta e a abri para ele.
— Vá.
Ele passou por mim sem dizer uma palavra e desapareceu no corredor. Ouvi a porta da frente bater, selando o fim de sua inocência.
Voltei para o quarto. O cheiro de sexo pairava no ar. Sentei-me na beira da cama, ao lado de Helena. Ela abriu os olhos lentamente, o rosto sereno de quem acaba de acordar de um sonho bom. Ela estendeu a mão e tocou minha bochecha.
— Você me ama tanto assim? — perguntou, a voz rouca de sono e prazer.
Peguei a mão dela e beijei seus dedos.
— O amor não é bondoso, Helena. O amor é absoluto.
Ela sorriu, um sorriso genuíno que eu não via há anos, e voltou a dormir. Deitei-me ao lado dela, na mancha ainda úmida do meu afilhado, e fechei os olhos. Eu tinha perdido minha honra, minha moral e a alma do garoto. Mas, pela primeira vez em muito tempo, senti que meu casamento estava salvo.
E eu sussurrei no escuro a única oração que me restava:
— Amém.