O alarme tocou como se estivesse gritando comigo.
Não era aquele toque suave de celular que te convida a acordar. Não. Era um som agressivo, insistente, que parecia dizer: levanta agora ou sua vida acaba. Tentei ignorar por alguns segundos, enterrando o rosto no travesseiro, mas quando minha mente finalmente despertou de verdade, o pânico veio junto.
Abri os olhos de uma vez só e estiquei o braço em direção ao celular.
— Não, não, não… — murmurei.
Quase atrasado.
Dei um pulo da cama tão rápido que fiquei tonto por meio segundo. O coração disparou, e eu já comecei a fazer cálculos mentais impossíveis: tempo pra tomar banho, tempo pra me vestir, tempo até o ponto de ônibus. Tudo parecia curto demais.
Quando coloquei o pé no chão gelado do quarto, ouvi o som que acabou de vez com qualquer esperança de um dia fácil.
Chuva.
O barulho das gotas batendo forte na janela denunciava que não era uma chuvinha qualquer. Era daquelas que atrasam ônibus, molham calça, grudam camisa no corpo e fazem todo mundo ficar de mau humor.
Fui até a janela e puxei um pouco da cortina. O céu estava cinza, pesado, sem nenhum sinal de misericórdia.
— Ótimo… — falei pra mim mesmo, suspirando.
Tomei um banho rápido demais, quase militar. A água quente ajudou a acordar, mas não o suficiente pra melhorar meu humor. Me vesti às pressas, tentando escolher algo que não ficasse tão marcado se molhasse. Spoiler: escolha inútil.
Na cozinha, o cheiro de café fresco foi a única coisa boa daquela manhã. Preparei uma xícara cheia, forte, do jeito que eu precisava pra sobreviver ao dia. Enquanto o café passava, cortei um pão ao meio e coloquei uma fatia generosa de queijo. Nada sofisticado, nada especial. Mas era o meu café da manhã, e naquele momento isso bastava.
Comi rápido, em pé mesmo, olhando o relógio na parede como se ele estivesse me desafiando. Dei um gole grande demais no café e quase queimei a língua.
— Ai, droga…
Engoli assim mesmo. Não tinha tempo pra frescura.
Peguei a mochila, enfiei o guarda-chuva de qualquer jeito e saí de casa. A chuva me recebeu com força, respingando na calçada, molhando a barra da calça em segundos. Corri até o ponto de ônibus, já sentindo a umidade subir pelas pernas.
O ônibus demorou.
Claro que demorou.
Quando finalmente chegou, veio cheio. Entrei espremido, segurando na barra com uma mão e tentando não molhar ninguém com o guarda-chuva pingando. Olhei o relógio no celular e senti o estômago afundar.
— Tá… vou me atrasar um pouquinho… só um pouquinho… — tentei me convencer.
Cada parada parecia durar uma eternidade. O trânsito estava lento, os carros andavam em fila, e eu só conseguia imaginar o rosto do Sr. Alencar olhando pra mim com aquele ar de reprovação silenciosa.
Desci do ônibus quase correndo, desviando de poças, e cheguei ao prédio do escritório já sem fôlego. Ajustei a mochila no ombro, respirei fundo e atravessei a porta de entrada.
Meu pé mal tocou o chão do escritório quando ouvi a voz.
— Cinco minutos, Akio.
Congelei.
Levantei o olhar devagar e lá estava ele: Sr. Alencar, impecável como sempre, relógio no pulso, olhar afiado.
— Bom dia… — tentei, meio sem graça.
— Cinco minutos atrasado — repetiu, como se estivesse registrando um crime gravíssimo.
— Desculpa, senhor… a chuva, o ônibus… — comecei, mas ele apenas fez um gesto curto com a mão.
— Não quero explicações. Quero pontualidade.
Assenti, engolindo seco.
— Não vai acontecer de novo — prometi.
Ele me encarou por mais um segundo, depois virou-se e foi embora, como se eu já tivesse sido devidamente punido.
Soltei o ar que nem percebi que estava prendendo.
Fui direto pra minha salinha — *minha*, ainda me soava estranho pensar assim. Era pequena, simples, mas organizada. A salinha que o Sr. Alencar tinha designado pra mim. Coloquei a mochila no canto, tirei o casaco úmido e comecei a arrumar a mesa, alinhando papéis, ligando o computador, tentando parecer extremamente profissional, mesmo estando com o coração ainda acelerado.
Depois de alguns minutos, respirei fundo e fui até o escritório do Sr. Alencar buscar os documentos que ele havia mencionado no dia anterior.
Bati na porta.
— Entre.
Abri a porta… e travei.
O Sr. Alencar estava apenas de camiseta.
Não era algo escandaloso. Uma camiseta simples, escura, mas… diferente. Sem o terno, sem a camisa social, sem aquela armadura corporativa que ele sempre usava. As mangas marcavam os braços, e por um segundo — apenas um segundo — minha mente simplesmente… desligou.
Fiquei parado tempo demais.
— Akio.
Piscar. Voltar à realidade.
— S-sim, senhor?
— Está procurando algo específico ou pretende ficar me encarando?
Meu rosto esquentou na hora.
— Desculpa! Eu vim buscar os documentos pra organização — falei rápido demais.
Ele apontou para a mesa, visivelmente irritado.
— Estão ali. E tente manter o foco no trabalho.
— Claro, senhor. Desculpa.
Peguei a pilha de documentos, evitando qualquer contato visual desnecessário, e praticamente fugi do escritório. Só quando fechei a porta da minha salinha atrás de mim é que percebi o quanto meu coração estava batendo forte.
— Concentra, Akio… pelo amor de Deus… — murmurei.
Espalhei os documentos sobre a mesa e comecei a trabalhar, separando, organizando, criando pilhas bem definidas. Aos poucos, o barulho da chuva lá fora e o som distante dos teclados me ajudaram a entrar no ritmo.
Foi então que alguém bateu na porta.
— Pode entrar — falei.
A porta se abriu, revelando Lucca, com um sorriso fácil no rosto… e um cupcake na mão.
— Paz feita com o mundo? — ele perguntou, erguendo o doce como se fosse uma oferenda.
— Isso é… pra mim? — perguntei, surpreso.
— Isso é compensação moral — disse, entrando e colocando o cupcake sobre a mesa.
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa, outra presença preencheu o espaço.
— Interessante.
A voz do Sr. Alencar fez meu sangue gelar.
Ele estava parado na porta, braços cruzados, olhando do cupcake pra nós dois.
— Então — continuou — ao invés de trabalharem, decidiram ficar se enchendo de doces?
Lucca abriu a boca pra responder. Eu, em pânico, já me preparava pra pedir desculpa pela centésima vez.
— Calma, chefe — Lucca foi o primeiro a falar, erguendo as mãos em rendição. — É só um cupcake.
O Sr. Alencar nem respondeu de imediato. Apenas lançou um olhar rápido para o doce sobre a mesa de Akio, depois para Lucca, como se estivesse avaliando o nível de absurdo da cena.
— Certo — Lucca continuou, já recuando em direção à porta. — Já entendi. Ambiente de trabalho, produtividade, zero açúcar. Tô indo.
Ele piscou discretamente pra mim antes de sair, fechando a porta com cuidado demais pra alguém que claramente estava fugindo.
O silêncio que ficou depois foi pesado.
— Akio — disse o Sr. Alencar, entrando na sala sem ser convidado —, vou precisar sair.
— S-sair? — perguntei, endireitando a postura na cadeira.
— Sim. Preciso comprar algumas coisas na rua. E vou precisar da sua ajuda.
Meu estômago deu um leve aperto.
— Claro, senhor… mas… — respirei fundo, tentando ser o mais respeitoso possível — eu preciso organizar aqueles documentos antes das onze, como o senhor pediu ontem. Eu já comecei…
Ele fez um gesto vago com a mão, como se eu estivesse falando de algo completamente irrelevante.
— Deixe pra depois.
— Depois…? — repeti, sem conseguir esconder a surpresa.
— Sim, Akio. Depois. Isso agora é prioridade.
Assenti, mesmo sentindo aquele desconforto familiar de quem sabe que “depois” provavelmente significava “nunca”.
— Me encontre no pet shop da esquina em vinte minutos — ele completou, já saindo.
— Pet shop…? — perguntei, mas a porta já tinha se fechado.
Fiquei parado por alguns segundos, processando a informação. Pet shop. Rua. Ajuda. Tudo isso soava perigosamente como vou carregar coisas.
Peguei o celular e abri o aplicativo de transporte com um suspiro resignado.
— Claro… — murmurei. — Uber de novo.
O Sr. Alencar nunca oferecia carona. Nunca. Não importava se estava chovendo, se era longe ou se ele estava indo exatamente pro mesmo lugar. A regra invisível era simples: eu dava meu jeito.
Cheguei ao pet shop alguns minutos depois dele. O lugar era grande, bem iluminado, cheio de prateleiras organizadas e aquele cheiro misto de ração, shampoo e limpeza artificial.
O Sr. Alencar já estava lá dentro, analisando produtos com uma atenção quase cirúrgica.
— Ah, chegou — disse, sem sequer olhar pra mim. — Preciso disso aqui.
E começou.
Coleiras reforçadas. Brinquedos resistentes. Um tipo específico de ração. Medicamentos. Vitaminas. Um antipulgas “melhor que o outro”. Tudo para o rottweiler dele, que claramente vivia melhor do que muita gente.
Cada item que ele escolhia vinha parar nos meus braços.
— Segura isso.
— Pega mais um desse.
— Não, esse não, o outro.
— Coloca tudo junto.
Quando finalmente pagou, eu já estava equilibrando sacolas como se fosse uma torre prestes a desabar.
— Vamos — disse ele. — Temos mais coisas pra resolver.
Achei que ele estava brincando.
Não estava.
Seguimos direto para o shopping.
E foi ali que o tempo começou a perder completamente o sentido.
Loja após loja. Roupas. Sapatos. Uma parada rápida pra olhar algo que “talvez” ele comprasse. Depois voltava e comprava. Em cada loja, novas sacolas eram empurradas pra mim, enquanto ele caminhava livre, mãos nos bolsos, celular no ouvido.
— Akio, desmarca a reunião das duas.
— Remarca a das três pra amanhã.
— Não, melhor pra sexta.
— Cancela essa aqui, eu resolvo depois.
Eu tentava acompanhar tudo pelo celular, digitando rápido, equilibrando sacolas, desviando de pessoas, sentindo os braços começarem a doer.
As horas passavam.
Minhas costas doíam. Meus pés reclamavam. O relógio parecia zombar de mim.
Em algum momento, percebi que já estava com fome. Muita fome. O café da manhã simples parecia coisa de outro dia.
Finalmente, depois de mais uma loja, o Sr. Alencar parou em frente a um restaurante.
— Vou almoçar — anunciou, simples assim.
— Ah… certo — respondi, aliviado, achando que finalmente sentaria também.
Ele me entregou as últimas sacolas.
— Me espera aqui.
— Aqui…? — perguntei, confuso.
— Sim. Já volto.
E entrou no restaurante.
Sozinho.
Fiquei parado na frente do lugar, com sacolas penduradas nos braços, observando pessoas entrarem, saírem, rirem, sentarem para comer. O cheiro da comida vinha em ondas, torturante.
Olhei o relógio.
Minutos passaram.
Depois mais minutos.
Nenhuma mensagem. Nenhuma instrução.
Eu continuava ali, plantado, segurando compras que nem eram minhas, sentindo uma mistura de cansaço, fome e aquela pergunta incômoda se formando na minha cabeça:
Isso aqui ainda é trabalho… ou eu virei outra coisa sem perceber?
E, pela primeira vez desde que tinha conseguido aquele emprego, senti que talvez aquele escritório estivesse cobrando um preço bem maior do que eu imaginava.
---
Meu celular vibrou no bolso da calça, e por um segundo achei que fosse mais uma mensagem do Sr. Alencar mandando remarcar alguma coisa inexistente. Com dificuldade, soltei uma das sacolas no chão e puxei o aparelho.
RH – Empresa Alencar & Associados
> Olá, Akio. Tudo bem?
>
> Estamos entrando em contato para informar que foi realizado um depósito em sua conta no valor de R$ XXX,XX.
>
> Esse valor é destinado ao custeio de transporte por aplicativo, bem como eventuais despesas relacionadas a demandas externas, deslocamentos, compras e demais atividades necessárias para dar suporte ao Sr. Alencar.
>
> Caso haja necessidade de valores adicionais, pedimos que informe previamente.
>
Fiquei olhando para a tela por alguns segundos, processando cada palavra.
— Então é isso… — murmurei.
Não era um “obrigado”. Não era um “desculpa pelo transtorno”. Era só um aviso formal de que, oficialmente, eu era a pessoa responsável por resolver tudo que o Sr. Alencar não quisesse fazer.
Logo em seguida, o aplicativo do banco notificou o depósito.
O dinheiro estava lá.
Suspirei fundo.
Com o corpo pedindo arrego, procurei um lugar pra sentar. Encontrei uma cadeira de metal encostada perto da entrada do restaurante e me joguei nela com cuidado, largando as sacolas ao redor como se estivesse montando um pequeno forte.
As pernas doíam. Os braços pareciam de borracha. A cabeça latejava.
“Só cinco minutinhos”, pensei. “Só pra respirar.”
Encostei a cabeça no encosto frio da cadeira.
E apaguei.
Não sei quanto tempo passou. Podiam ter sido dez minutos, vinte, uma hora. Tudo o que sei é que acordei com uma sombra tapando a luz e uma voz impaciente me puxando de volta à realidade.
— Akio.
Abri os olhos assustado.
— Hã…?
O Sr. Alencar estava parado na minha frente, impecável, como se não tivesse passado horas andando pelo shopping.
— Está dormindo em horário de expediente agora?
Sentei direito na hora.
— Desculpa, senhor… eu só… — minha voz falhou um pouco — fiquei esperando.
— Já chega. Está na hora de voltarmos para o escritório.
Levantei às pressas, recolhendo as sacolas, sentindo o corpo protestar em silêncio. Seguimos até o estacionamento, onde o carro dele estava parado.
Ele entrou no veículo sem dizer mais nada.
Fiquei ali, parado do lado de fora, esperando alguma instrução, quando meu celular vibrou de novo.
Mensagem do Sr. Alencar.
> Antes de voltar ao escritório, leve todas essas coisas para minha casa.
Olhei para o carro.
Olhei para as sacolas.
Olhei para o celular.
— Claro… — murmurei, sem nenhuma convicção.
Abri o aplicativo de transporte mais uma vez e chamei um carro. Quando ele chegou, fui andando em direção à escada que descia da frente do shopping até o nível da rua.
E foi aí que tudo deu errado.
Com os braços ocupados demais, o peso mal distribuído e o cansaço cobrando seu preço, meu pé escorregou no primeiro degrau.
Por um segundo, o mundo virou câmera lenta.
— Ai—
Não consegui terminar.
Caí com tudo.
Sacolas voaram. Caixas bateram no chão. Meu corpo foi junto, batendo de lado, completamente desajeitado.
O silêncio durou meio segundo.
Depois, ouvi uma risada.
— Rapaz, você tá bem? — perguntou o motorista, já saindo do carro.
Eu comecei a rir também. Não porque fosse engraçado, mas porque, naquele ponto, era rir ou chorar.
— Acho que… tô inteiro — respondi, ainda no chão.
Ele me ajudou a levantar, recolheu algumas sacolas e me entregou com cuidado.
— Dia puxado, hein?
— Nem me fale — suspirei.
Seguimos viagem, e eu fiquei quieto o trajeto inteiro, olhando pela janela, tentando ignorar a dorzinha nova no corpo e a exaustão antiga na alma.
Quando finalmente chegamos à casa do Sr. Alencar, toquei a campainha com o pouco de energia que me restava.
A porta se abriu revelando a governanta!
— Boa tarde.
— Boa tarde… — respondi, ajeitando as sacolas. — Compras do senhor Alencar.
— Pode deixar aqui — disse ela, abrindo espaço.
Atrás dela, ouvi um som pesado de patas no chão.
O rottweiler apareceu.
Grande. Forte. Imponente.
Meu coração deu um pulinho automático, mas o cachorro apenas me olhou… e abanou o rabo.
O rottweiler se aproximou e encostou a cabeça na minha perna, como se exigisse atenção.
Sorri pela primeira vez em horas.
Ajoelhei com cuidado e passei a mão pela cabeça dele, sentindo o pelo quente e macio.
— Pelo menos você… — murmurei — parece gostar de mim.
O cachorro respondeu encostando ainda mais o focinho em mim, satisfeito.
Continua...