Acordei com o barulho da vizinha do 12 batendo panela como se estivesse participando de um campeonato nacional de quem consegue fazer mais barulho antes das seis da manhã.
Sério, aquela mulher não cozinha: ela trava guerras na cozinha.
Abri os olhos devagar, com a sensação de que meu corpo inteiro tinha sido atropelado por um caminhão emocional. A claridade atravessava a cortininha fina da minha Kitnet e caía direto no meu rosto, sem a menor piedade.
Tentei levantar.
Falhei.
Deitei de novo, porque às vezes a cama parece o único lugar que ainda me aceita.
Mas aí a realidade veio cobrar aluguel junto com a consciência.
Literalmente.
Me virei para o lado, encarei o envelope amassado em cima da mesinha improvisada. O aviso de cobrança.
Aluguel atrasado.
De novo.
Senti a garganta apertar.
Não era choro bonito de filme. Era aquele choro feio, silencioso, que começa no peito.
Eu respirei fundo, mas a verdade bateu igual soco: eu ainda estava desempregado. Sem perspectiva. Sem nada.
Joguei as pernas para fora da cama e fui arrastado até a pia, que fazia o papel de cozinha, lavanderia e às vezes apoio emocional.
Coloquei água pra esquentar — “esquentar” sendo um conceito generoso, porque meu fogão elétrico parecia sofrer de depressão também — e sentei com a caneca vazia na mão, tentando criar coragem para enfrentar o dia.
“Vamos, Akio… você não tem escolha”, murmurei pra mim mesmo.
Depois do café ralo, me arrumei como dava: camisa passada com a mão, calça que já tinha visto dias melhores e o tênis que gritava por socorro. Peguei meus currículos — uns dez, já meio tortos nas pontas — e saí.
São Paulo já estava viva, cheia, caótica.
E eu só queria uma chance.
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Passei a manhã inteira indo de empresa em empresa.
A primeira entrevista durou três minutos.
Na segunda, a recepcionista olhou pra mim como se eu tivesse pedido emprego na NASA por acidente.
Na terceira… bom, na terceira eu nem consegui falar com alguém.
A quarta parecia promissora, mas o entrevistador não desgrudou o olhar do celular, como se eu fosse invisível.
À tarde, meus pés já estavam implorando para amputação voluntária e meu humor tinha sido atropelado pelo calor, pela fome e pelos “a gente te liga qualquer coisa”.
Eu já estava pronto para desistir e voltar pra casa com aquele peso no peito, quando vi a última empresa da lista.
Um prédio de vidro, limpinho, com ar-condicionado provavelmente mais caro do que meu aluguel inteiro. A vaga: Assistente pessoal!
Eu respirei fundo e entrei.
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O entrevistador era um cara grande, bem arrumado, com cara de quem já acorda julgando o mundo. Ele me olhou de cima a baixo, como se já tivesse decidido que eu não servia.
“Nome?”
“Akio.”
Ele anotou como se estivesse anotando perda de tempo.
“Você sabe que essa vaga é concorrida, né? Muita gente com experiência aplica. Acha mesmo que tem chance?”
O deboche na voz dele quase me fez recuar.
Mas alguma coisa dentro de mim — talvez cansaço, talvez orgulho — resolveu responder por mim.
“Eu sei que é concorrida, sim”, falei, tentando manter a voz firme. “E sei também que experiência pesa. Mas eu tenho algo que normalmente ninguém vê num currículo.”
Ele arqueou uma sobrancelha.
“Ah é? O quê?”
Respirei fundo.
E deixei sair tudo.
“Eu estudei nas melhores escolas porque ganhei bolsas. Estudei porque me esforcei. Fiz cursos caros com dinheiro que eu não tinha, porque conquistei cada oportunidade. Eu vim pra São Paulo com nada, absolutamente nada, e mesmo assim eu continuo tentando.”
O entrevistador me observou, menos arrogante do que antes.
“Eu posso não ter experiência como assistente pessoal”, continuei, “mas eu tenho preparo, competência e vontade. E, sinceramente, depois de tudo que passei, eu não tenho medo de trabalho nenhum. Eu só preciso de uma chance.”
Houve um silêncio.
Um silêncio que fez meu coração disparar.
O cara largou a caneta, entrelaçou os dedos na mesa e me analisou como se estivesse me vendo de verdade pela primeira vez.
“Interessante…”
O entrevistador ficou me encarando por alguns segundos que pareceram uma eternidade. Depois, se recostou na cadeira, respirou fundo e cruzou os braços, como se estivesse repensando tudo que tinha assumido sobre mim.
“Akio,” ele disse por fim, com a voz menos arrogante, mas ainda firme, “se você for escolhido, eu te ligo amanhã. A gente entra em contato cedo. Pode ir.”
Não era um “sim”.
Não era um “não”.
Era aquele meio-termo perigoso que deixava o coração suspenso, preso no ar.
Levantei, agradeci e saí.
Quando a porta fechou atrás de mim, senti meu corpo inteiro ficar leve e pesado ao mesmo tempo. Leve porque eu finalmente tinha conseguido ser visto. Pesado porque agora… era só esperar.
E esperar sempre foi a parte mais difícil.
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A primeira coisa que pensei foi em pegar um ônibus.
A segunda foi no dinheiro da passagem.
A terceira foi no aluguel atrasado.
A matemática foi rápida: eu ia voltar andando.
Guardei os currículos dentro da mochila — o que sobrou deles — e peguei a avenida longa que levava até a minha região. São Paulo estava quente, abafada, o tipo de calor que gruda na pele. Mas eu segui, porque não tinha escolha.
Depois de uns vinte minutos, o céu começou a escurecer.
E, do nada, uma gota caiu na minha testa.
“Só falta isso…”, murmurei, olhando pra cima.
A segunda gota veio.
A terceira.
E, em menos de um minuto, o céu desabou.
Mas algo dentro de mim… não desabou junto.
Eu parei no meio da calçada, respirei fundo e, em vez de entrar em desespero — o que normalmente eu faria — eu simplesmente tirei os fones à prova d’água do bolso.
Coloquei nos ouvidos.
Desbloqueei o celular.
Procurei a música.
E dei play.
“Rain on me…”
A batida preencheu minha cabeça.
O mundo ficou menor.
Ou talvez maior, eu não sei.
A chuva caía pesada, ensopando minha roupa, colando minha camisa no corpo. Mas eu cantei mesmo assim. Alto. Errado. Desafinado. Mas livre.
“Rain on me! Rain on me!”
A água escorria pelo rosto, mas não eram lágrimas.
Não dessa vez.
Pela primeira vez em muito tempo, eu senti uma coisa estranha…
Uma coisa que parecia quase esperança.
Eu andei o resto do caminho sorrindo — um sorriso meio torto, meio cansado, meio incrédulo — mas era sorriso.
E isso já era uma vitória.
Cheguei na minha quitinete pingando, parecendo um filhote de cachorro que tomou banho à força, mas com o coração mais leve do que quando tinha saído de manhã.
Me joguei na cama, molhando o lençol inteiro, e fiquei olhando o teto.
“Se ele me ligar amanhã…”, pensei.
Mas eu não terminei a frase.
Eu só deixei a chuva secar na minha pele e a música continuar tocando baixinho nos fones.
Pela primeira vez, o futuro não parecia tão impossível.
Ainda distante, ainda difícil…
Mas possível.
Continua...