Nós nos vestimos e a cara do Vicente era impagável. Ele olhava para a Clara como se fosse um pitbull com focinheira encarando um bife suculento. No final, nos despedimos deles e ela veio comigo na minha moto. Agenor fez questão de pagar o motel.
Já em casa, pedi desculpas para a Clara pelo papelão de ter sido o “empata foda” da noite, mas ela me surpreendeu uma vez mais:
- Amor, eu... eu acho que estou realmente mudar a minha medicação. Será que a Mariana ou aquele outro psicólogo não me atenderiam antes?
[CONTINUANDO]
Estranhei aquela repentina decisão, afinal, era o “normal” dela se relacionar com outros e até então, tudo estava dentro de nosso combinado dela ser transparente comigo:
- Sua consulta não seria na próxima semana? – Perguntei, confuso.
- É, mas... – Ela começou a chorar: - Isso tá errado. Eu não posso continuar, não posso fazer isso com você.
- Calma, Clara. Eu não estou bravo com o que aconteceu. Eu só não consegui...
- Eu sei. Mas não tá certo, não desse jeito. Eu... Eu vou ligar para a Mari. – Disse entre lágrimas e vi em seu olhar que não era fingimento, ou isso ou eu nunca a teria conhecido de verdade.
Eu a acalmei, afinal, eu não queria que ela buscasse orientação com a Mariana. Não sei explicar, mas, na minha ótica, o tratamento da Mariana não estava surtindo efeito algum. Ela se acalmou e eu falei que iria encomendar uma pizza para nós. Ela disse que iria tomar um banho e que logo desceria. Fiz a encomenda de duas pizzas, uma meio calabresa e portuguesa, e uma meio franco com catupiry e meio margherita, e arrumei a mesa enquanto a aguardava.
Estranhei a demora da Clara e fui até o banheiro. O chuveiro continuava ligado. A porta estava fechada, mas mesmo com o som da água caindo, consegui ouvir a da Clara, ainda chorando. A porta não estava trancada e eu a abri delicadamente.
Olhei na direção do box e a vi sentada embaixo da ducha, com um filete de sangue escorrendo embaixo de si. Imaginei que pudesse ter se machucado no sexo com os dois. Aproximei-me dela e só então vi marcas de arranhões nas pernas e na virilha, além dos dedos avermelhados:
- Clara, o que você... – Falei, já abrindo a porta do box.
- Eu... Eu já tô saindo, amor. Só tô tentando me limpar. É que eu... eu... eu tô suja. – Ela voltou a unhar suas partes baixas e gritou: - SUJA!
Entrei no box, de frente para ela e segurei suas mãos. Ela desabou de vez, chorando, se debatendo, pedindo perdão, lamentando a vida miserável que estava me proporcionando. Falei que não se preocupasse que eu a ajudaria a se reencontrar e a abracei, ficando ali sob a água até ela se acalmar.
Decidi ajudá-la a terminar o banho. Ela não parecia querer o meu contato, mas ao mesmo tempo queria. Fui paciencioso, carinhoso e quando sentia que ela se retraía, eu colocava o sabonete em sua mão e a ajudava a se limpar. Foram minutos, longos minutos, mas conseguimos terminar aquela tarefa.
Depois, eu a ajudei a se enxugar e ainda a fazer um rápido curativo eu uma ferida mais profunda perto de sua virilha. Ela então vestiu uma calça de moleton, mesmo estando bem quente e se deitou na cama. A campainha tocou e fui receber as pizzas. Depois voltei para busca-la, mas ela não queria sair da cama. Decidi não pedir mais e a peguei no colo, levando-a entre reclamações, lágrimas e risadas até a cozinha.
Servi, piquei, comemos juntos no mesmo prato, bebemos no mesmo copo e sinceramente me senti bem em poder cuidar dela, porque ela parecia estar melhorando com o meu contato e atenção, tanto é que ela passou a me servir também.
Depois, organizamos a cozinha, lavamos os pratos e talheres e fomos para a sala, assistir um filme. Ela dormiu nos primeiros 15 minutos, deitada em meu colo. No final, levei-a no colo de volta ao quarto e dormimos, abraçados, mas sem sexo algum. Naquele momento, eu entendi a fragilidade de sua condição e também a urgência de um tratamento sério e criterioso.
No dia seguinte, consegui o número do celular do psicólogo que a atenderia na próxima semana e liguei. Ele me atendeu e eu expliquei a situação, inclusive da automutilação da Clara. Ele se dispôs a nos atender no mesmo dia, mesmo sendo um domingo. Clara até se assustou com a disposição dele, mas não recusou.
Em 1 hora, estávamos estacionando em frente a um prédio. Fomos autorizados a subir e recebidos pouco depois por Caio Serone, o psicólogo do convênio médico. Ele impressionou no primeiro contato, moreno, alto, com seus trinta e poucos anos. Ele era casado com uma bela morena, também chamada Clara. Após os cumprimentos, ele a convidou a acompanha-lo até um quarto, adaptado como escritório. Ficamos eu e Clara na sala:
- Ela está bem tensa, não é? – Perguntou Clara.
- Muito. É... uma situação complicada.
- Eu imagino. Vou pegar um copo de suco para nós. – Disse e se levantou, sem sequer me dar chance de negar, retornando pouco depois com dois copos: - Também sou psicóloga, psicopedagoga na verdade.
- Então você sabe o que eu estou passando...
- Saber, eu não sei, porque você não me contou, nem o Caio, mas a tensão em vocês é evidente, nela principalmente. Se você quiser me contar, para desabafar, prometo que nada sairá desta sala. Mas é uma decisão sua.
- É complicado...
- Sempre é, Lucas. Tudo o que envolve relacionamento entre duas pessoas é muito complicado. Difícil, praticamente impossível, é encontrar um casal que nunca tenha passado por alguma situação tensa. Os que resistem sempre me impressionam.
Fato é que não me abri. Bem... não imediatamente, pois coisa de uns 5 ou 10 minutos depois de conversas variadas sobre temas diversos, vi-me contando detalhes que eu nem sabia que sabia para aquela desconhecida de olhos verdes. Clara me ouviu e como boa terapeuta não julgou em momento algum, mas foi bastante objetiva ao final:
- Essa “terapia” que a doutora Mariana prescreveu para a Clara é bem estranha, Lucas. Confesso que nunca vi uma abordagem como essa.
- No entendimento dela, seria mais fácil eu me moldar a realidade da Clara do que ela se moldar a minha.
- Sim, eu entendi, mas veja bem, se a Clara vive uma vida plena apenas quando está medicada, então a realidade dela não é um normal que a faça feliz, concorda? Então, eu... digo isso de mim, Clara psicóloga... eu não trabalharia com a sua Clara dessa forma.
- Eu também não concordei num primeiro momento, mas depois acabei aceitando para ajudá-la.
- Errou! Você não tem que moldar a sua personalidade para aceitar um modo de vida que não te faça feliz para ajudá-la. Isso, inclusive, cria uma expectativa falsa na cabeça da Clara que pode causar uma crise a qualquer momento. – Ela tomou um pouco do seu suco e concluiu: - Tanto é que a experiência que vocês tiveram ontem acabou sendo ruim para você e para ela também.
- Para ela, eu não sei, porque eu acredito que ela tenha aproveitado bastante com os caras.
- Sim, mas foi apenas o prazer sexual antecipando o momento em que você chegaria e participaria com ela. Você mesmo me disse que depois que você chegou e não reagiu bem, ela encerrou tudo e depois de flagelou em casa, não foi? Isso é prova de que a expectativa que ela criou, não se realizou e pior, causou um estresse violento para ela.
- Eu sei... – Resmunguei, olhando cabisbaixo para meu copo: - Eu... Eu devia ter sido mais forte e ficado, fingido que estava curtindo. Sei lá...
- Pra quê? Para você sofrer depois? Você fez o que deveria ter feito desde o início: negado essa situação e explicado que esse mundo, dessa forma como lhe foi imposto, não é o que você quer.
Eu segui encarando o meu copo, cujo gelo já derretia rapidamente e ela se sentou mais perto de mim:
- Amar não é se submeter. É entender que um relacionamento precisa respeitar e realizar ambos os parceiros. Não basta ela ser feliz com uma situação, se você não vai. É complicado de entender... mas, as vezes, amar é entender que vocês não combinam e que precisam seguir caminhos separados.
Nesse momento eu a encarei surpreso, mas ela tinha o semblante impressionantemente calmo e sereno. Pensei em rebatê-la, mas a porta do quarto se abriu e Clara veio até sala, acompanhada de Caio. O semblante dela, por sua vez, parecia bastante estranho:
- Clara... – Disse Caio, chamando a atenção de ambas e sorrindo com a confusão: - Não, Clara, digo, Clara, a minha Clara... Você conhece alguma Mariana Setúbal?
- Não. – Respondeu a esposa dele: - Por que?
- Não... por nada... – Ele resmungou e me encarou: - Lucas, conversei bastante com a Clara. Acho que nosso santo bateu forte, tanto que ela se abriu comigo de uma forma surpreendente.
Clara sorriu e ele agradeceu a confiança dela. Ele voltou a me encarar:
- Sugeri a ela que suspenda a medicação, porque, pelo que conversamos, a medicação parece estar atuando como um facilitador de seus gatilhos e...
- Eu comentei com ele que eu estava bem até a Mari me sugerir voltar a tomar os remédios, amor. Então, ele me sugeriu que eu suspendesse o uso e usasse você como meu “medicamento”. – Ela disse fazendo aspas com os dedos: - Assim... se eu tiver uma vontade ou uma recaída, eu ligo para você e você me acalma, entende?
- Por mim, sem problemas.
Olhei rapidamente na direção da Clara, a outra Clara, e vi que ela encarava bastante séria seu celular. Só quando o Caio chamou a sua atenção, ela nos encarou com um semblante preocupado. Despedimo-nos e saímos.
Clara, a minha, estava bastante calma, quase sorridente e eu não resisti:
- Espero que esse sorriso seja efeito da consulta e não de ideias tortas suas para com o Caio.
Ela deu uma risada e um tapinha em meu braço:
- Sabe que eu não tinha pensado por esse lado? Mas até que ele é bem gatinho...
Após uma gargalhada sapeca, ela explicou:
- Estou bem tranquila mesmo. Gostei da forma como ele me atendeu, bem atencioso, calmo e principalmente porque ele não gosta de usar medicamento em suas terapias. Até usa, mas só em último caso.
- Então?
- Então, acho que vou, aliás, acho não, eu vou voltar a consulta-lo. Mas não vou abandonar a Mari também. Só vou intercalar os dois.
Achei prudente e não conversamos mais sobre isso nesse, nem nos próximos dias.
Aliás, passada quase uma semana, Clara me surpreendeu com uma exigência da Mariana:
- Como assim voltar a usar urgentemente o medicamento?
- Pois é? Ela quer que eu use... e volte a fazer terapia semanal com ela.
- Tá, mas e você, quer?
- Eu não queria, amor. Estou me sentindo bem e a segunda consulta que tive com o Caio foi ainda melhor para eu entender algumas questões meio confusas. Então... eu não queria...
- Você comentou com ele sobre essa exigência da Mariana?
- Não. Isso foi depois.
- Então ligue e pergunte a opinião dele. Pessoalmente, eu também preferia que você não usasse.
Ela ligou e explicou a situação para o Caio, mas seu semblante ficou estranhamente sério demais e logo ela ativou o viva voz:
- Caio quer que você escute isso.
- Lucas, é Caio. Como vai?
- Bem, Caio, e vocês?
- Estamos bem também. Obrigado. – Houve uma pausa e ele continuou: - Pedi para Clara colocar no viva voz para conversar com vocês dois, mas agora, pensando melhor, eu gostaria de conversar com vocês pessoalmente. Poderiam vir até meu consultório amanhã, por volta das 15:00?
Eu não poderia, mas como tinha feito alguns extras no meu trabalho, decidi abusar e pedir um favor ao meu chefe. Combinamos de ir até seu consultório no dia seguinte. Clara praticamente não dormiu nessa noite, tensa, curiosa, ansiosa, bem típico de uma mulher.
No dia seguinte, no horário combinado, fomos até seu consultório num prédio comercial do centro. Fomos recebidos por ele. Diferentemente das consultas anteriores, nesta ele estava bastante sério. Clara foi direta:
- O que foi que aconteceu? Eu fiz algo errado?
- Não! Não, Clara. – Disse ele, acalmando-a: - O que precisamos conversar é bastante sério, por isso preferi fazer pessoalmente, com os dois.
- Por que com os dois? – Perguntei, confuso.
- Porque já envolve os dois. – Ele respirou fundo e nos olhando seriamente disse: - Acho que boa parte do seu problema tem nome, Clara...
- Eu sei. – Ela o interrompeu: - Sou uma tarada sem freio. Qual a novidade nisso?
- Não, você não é. Tudo bem que você tem um distúrbio, mas isso tem solução.
- Ué! Então não estou entendendo mais nada? – Ela insistiu.
- Clara, a Mariana Setúbal não é mais uma profissional há tempos.
Isso eu não esperava, Clara muito menos, tanto que ficamos abobados, olhando para o Caio sem saber o que dizer, num silêncio absurdamente constrangedor por bons segundos:
- Como é que é!? – Ela perguntou enfim.
- A Mariana... bem... ela é formada em psicologia e chegou a se inscrever nos quadros do Conselho Regional de Psicologia. Inclusive, ela clinicou por algum tempo...
- Mas então!? – Clara o interrompeu novamente.
- Bem, na nossa primeira consulta, enquanto conversávamos na saída, a minha Clara começou a fazer umas buscas no site do CRP, mas nada encontrou, o que não é normal. Então, no dia seguinte, ela entrou em contato com alguns conhecidos no CRP e descobriu que a Mariana havia sido cassada.
- Cassada? – Clara repetiu, perdida.
- É, expulsa.
- Mas por quê? – Ela perguntou em seguida.
- Olha... – Ela se calou por um instante, pensando se devia ou não revelar algo, mas foi sincero: - Não espalhem, por favor. Eu não poderia contar... A Mariana andou realizando algumas experiências não homologadas pelo CRP e dois de seus pacientes chegaram a se suicidar por causa disso.
- Experiências!? Mas que raios de experiências são essas? – Perguntou Clara se levantando e começando a andar de um lado para o outro.
- Os detalhes, eu também não sei. – Explicou Caio: - Só sei que envolvia uso de medicamentos controlados, indução por hipnose.
Clara parou defronte a uma janela, olhando o lado de fora com uma mão sobre a boca. Seu corpo todo estava tenso de uma forma que eu nunca vira antes. Caio me olhando, voltou a falar:
- No primeiro dia em que atendi a Clara, já estranhei os medicamentos que ela estava usando. Um deles, o Rohypnol nem pode ser prescrito por um psicólogo e só quando a Clara me trouxe uma cópia da receita na segunda consulta é que vi que algo estava errado, porque a Mariana estava usando o nome e o CRM de uma quase homóloga, Maria Mariana Marques Setúbal.
- Mas isso é caso de polícia! – Falei e ele concordou.
- Vamos chegar lá... – Caio disse, pedindo calma com as mãos: - Eu acredito que a Mariana também estava utilizando a Clara em alguma “experiência”.
- Como assim!? – Perguntou Clara, quase perdendo o controle.
Caio se levantou e foi pegar uma água para Clara. Ofereceu também um comprimido e falou:
- Este você pode tomar sem medo. É um extrato natural feito para acalmar sem viciar ou causar qualquer efeito colateral. Pode confiar.
Clara pegou o comprimido e ficou olhando. Depois olhou para mim em dúvida. Novamente Caio falou que iria tomar um para ela entender. Dito e feito. Clara então tomou o comprimido, um pouco de água e veio se sentar ao meu lado. Ela me olhava com lágrimas nos olhos e eu segurei a sua mão, olhando para Caio:
- Como assim experiência?
- Tudo indica que ela estava trabalhando alguma forma de sugestionamento no subconsciente de Clara e isso ficou ainda mais claro para mim quando Clara me contou que estava se sentindo bem sem o remédio, mas que, após orientação da Mariana para voltar a toma-lo e de terem conversado sobre algumas iniciativas, ela teve aquela recaída com os dois rapazes no incidente que você presenciou.
- Tá. Eu... de que a Clara havia voltado a tomar os remédios por orientação da Mariana eu sabia... – Virei-me para a Clara e falei: - Mas você não me disse nada de que havia conversado com ela sobre iniciativas.
Clara suspirou fundo e falou:
- Eu voltei a tomar os remédios e numa dose maior, tudo orientado pela Mari. Ela ainda me disse que eu poderia, até deveria fazer uso de um com bebida alcoólica para potencializar os efeitos e que... – Ela pigarreou: - E que eu deveria forçar você a assistir e entender que aquilo, que o meu mundo de empoderamento, foi isso que ela me disse, poderia ser bom para nós dois.
- Por isso, eu acho que a Clara estava sendo utilizada numa experiência. Uso de medicamento controlado e de efeitos hipnóticos, e indução de uma verdade plantada durante as consultas em seu subconsciente. E só para você entender, Lucas, com essa “verdade” plantada e potencializada pelo medicamento, dificilmente a Clara iria resistir aos seus impulsos. Aliás, vou partir do pressuposto que o seu diagnóstico está errado e vamos trabalhar para descobrir, assim que os efeitos dos medicamentos passarem, se você tem realmente algum transtorno.
- Filha da puta! – Falei, batendo a mão no braço do sofá: - Eu vou atrás daquela biscate agora. Vou arrebentar e...
- Não, não vai. – Caio me interrompeu: - Isso é tudo o que você não pode fazer agora. Se quiserem fazer justiça, vamos ter que trabalhar com muita calma e vocês principalmente vão ter que fingir que tudo continua bem e que vocês estão seguindo à risca o tratamento dela. Tenho conhecidos na polícia civil que poderão nos auxiliar nos demais detalhes.
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