O quintal estava mais quieto do que deveria para uma festa tão cheia. A música dentro da casa seguia alta, abafada pela parede grossa e pelo tanto de gente circulando, mas ali fora… ali parecia que o tempo tinha dado uma desacelerada, como se o mundo percebesse que algo prestes a acontecer exigia silêncio.
Eu e Heitor ficamos lado a lado, apoiados no corrimão de madeira que cercava o jardim. A luz vinda da piscina, aquele azul quase sobrenatural, recortava o rosto de Heitor, acentuando ainda mais o contraste entre a pele clara, os cabelos sombreados caindo pela testa e aqueles olhos azuis que pareciam ser iluminados por dentro.
Eu estava inquieto. Tentava disfarçar, claro, mas meus dedos se apertavam uns nos outros, e eu não sabia para onde olhar. Heitor percebeu.
— Tá tudo bem? — perguntou, com a voz baixa, rouca, relaxada demais para alguém tão lindo.
— Tá… — respondi, num sopro — É muita gente. Eu não tô acostumado.
Heitor sorriu de canto, um sorriso leve, mas que queimou dentro de mim.
— Também não gosto muito — disse ele, mexendo no próprio cabelo — Mas a Júlia quis festa desde que chegamos. Acho que ela gosta de… — ele fez um gesto amplo — Ver gente. Falar. Brilhar.
Eu ri, meio sem querer.
— Ela sempre brilha — comentei.
— Sempre — Heitor concordou, mas sem ironia — Mas é diferente com você. Ela fica… não sei… meio boba.
Eu fiquei vermelho imediatamente. Heitor percebeu. Continuou.
— Você sabe, né? Que ela tá a fim de você.
— Eu sei — murmurei, encarando a água da piscina — Mas eu… não tô afim dela.
Heitor virou o rosto na minha direção. Devagar. Como quem se aproxima de algo frágil.
— E… tá afim de quem? — perguntou, quase num sussurro.
Meu coração deu um salto tão forte que até doeu. Não respondi. Não podia. Tentei desviar, mas Heitor deu um passo curto, só um, reduzindo a distância entre nós a quase nada.
— Mateus — ele disse, baixo — Relaxa. Não precisa falar nada.
E, justamente por isso, eu quis falar. Mas a coragem não vinha. Olhei para Heitor e encontrei os olhos dele já me observando, penetrantes, belos, perigosos.
Heitor aproximou mais o corpo. Nós dois ficamos tão perto que eu senti o leve cheiro do perfume dele, amadeirado, fresco, quente. Algo que grudava na memória.
— Eu percebi, sabia? — Heitor continuou — O jeito que você me olhou quando eu cheguei na sala.
Eu tentei protestar, mas Heitor levantou a mão e tocou de leve o meu braço. Foi um toque tão suave que eu quase estremeci.
— Não tem problema — murmurou Heitor — Eu também te olhei.
E ali estava: o primeiro risco.
Eu senti o peito fechar e abrir ao mesmo tempo. As luzes da festa, o burburinho distante, tudo virou borrão. Só havia o quintal azul, o ar quente da noite, e aquele rapaz lindo demais, perto demais.
Heitor inclinou a cabeça, buscando meus olhos.
— Posso te perguntar uma coisa? — disse ele, com a voz repentinamente mais baixa.
— Pode — eu consegui responder, com a boca seca.
— Quando você olhou pra mim… foi por que… você gostou?
Eu não consegui evitar: apenas assenti. Minúsculo. Ínfimo. Mas Heitor viu.
E então aconteceu.
Heitor aproximou o rosto, devagar, esperando uma reação. Quando não recuei, quando, na verdade, eu me inclinei imperceptivelmente para frente, Heitor fechou o espaço entre nós e encostou os lábios nos meus.
Um beijo suave. Breve. Mas tremendo.
Eu senti o chão sumir. O toque foi gentil, quente, inesperadamente doce. Heitor não pressionou, não avançou, apenas manteve o beijo curto, leve, como se desse a mim tempo para respirar, para aceitar, para querer mais.
Quando nos separamos, Heitor sorriu, quase tímido.
— Eu queria fazer isso desde a hora que você entrou na sala — confessou.
Eu perdi o ar.
Mas antes que pudéssemos dizer qualquer outra coisa, a porta de vidro que separava a área da piscina para o interior da casa deslizou, e a luz forte invadiu o quintal. Nós dois nos afastamos instintivamente.
— Mateus? — a voz de Júlia chamou — Você tá aí?
Heitor levantou o queixo, ajeitando o cabelo com a calma de quem sabia fingir inocência.
Eu, entretanto, sentia o rosto queimando.
Júlia apareceu no quintal, sorridente, aquela alegria perfeita e meio forçada que ela sempre carregava.
— Ah! Os dois aqui fora! — disse ela, como se tivesse encontrado algo curioso. Os olhos dela pularam de Heitor para mim — O que vocês estavam conversando?
Eu abri a boca, mas Heitor respondeu primeiro.
— Música — disse, num tom completamente neutro — Ele falou que toca um pouco. Pedi pra ver depois.
— Sério? — Júlia virou toda para mim, animada — Eu não acredito que você toca e nunca me contou!
Apenas um detalhe: havia algo nos olhos dela. Uma fagulha de desconfiança. Pequena, quase imperceptível… mas estava lá.
Heitor percebeu também e lançou um olhar rápido para mim, como se dissesse calma.
— A gente tava falando disso mesmo — reforçou Heitor, sorrindo com naturalidade — Depois eu ensino ele umas músicas.
— Ah, então tá — Júlia disse, abraçando o próprio braço — Vamos voltar pra dentro? Tá todo mundo procurando vocês.
Heitor deu espaço para ela passar, mas antes de seguir para a porta, virou-se para mim e falou baixinho, sem que Júlia ouvisse:
— Depois me encontra na varanda de cima.
Eu senti um arrepio inteiro descendo pela coluna.
Júlia caminhou na frente, despreocupada, mas algo nela, no jeito de olhar por cima do ombro, no aperto dos lábios, deixava claro que a intuição havia cochichado alguma coisa para ela.
A noite estava apenas começando. O risco também. E o interesse entre Heitor e eu, esse, sim, estava só dando o primeiro passo.
Uma hora mais tarde, a música lá embaixo ainda pulsava, abafada pelas paredes da casa. Risadas, copos batendo, um cheiro indefinido de bebida, gente e cigarro misturado ao perfume doce das flores e plantas no corredor. Eu subi a escada sozinho, o coração acelerado não pela festa, mas pela promessa silenciosa que existia desde que eu conhecera Heitor.
O primeiro beijo ainda queimava na minha memória, tão vívido que parecia recente como um susto. Eu ainda podia sentir o gosto do Heitor na minha boca. Passei a mão pelo corrimão da escada, tentando controlar a respiração. No segundo piso, havia uma varanda ampla, com dois ambientes, virados para os fundos da casa, para a área da piscina, que estava vazia. As luzes estavam apagadas, somente a luz fraca e distante do poste da rua iluminava um pouco o ambiente. A varanda estava quase vazia. Quase.
Heitor estava lá.
Encostado na parede, braços cruzados, postura relaxada demais para quem realmente estava esperando. Mas os olhos… os olhos traiam. Eles acompanharam cada passo meu, como se me puxassem para perto.
— Achei que você não viesse — disse Heitor, a voz grave, baixa, carregada daquele tom que apertava alguma coisa dentro do meu peito.
— Eu… — tentei sorrir, mas falhei — É claro que eu vim.
Heitor descruzou os braços devagar.
— Bom.
Só isso. Mas o jeito como ele disse "bom" fez uma onda quente subir pelo meu corpo.
Heitor se aproximou dois passos. Eu não me movi.
— Você tá nervoso? — Heitor perguntou, com um sorriso pequeno no canto da boca, quase provocação.
— Um pouco —admiti, num fio de voz.
— Eu gosto quando você fica assim — Heitor murmurou, olhando de cima a baixo, sem pressa — Tira essa máscara toda de segurança que você tenta usar.
A fala, tão direta, me fez prender a respiração. Heitor estava perto agora, não tocando, mas perto o suficiente para que qualquer aproximação fosse inevitável.
Ao fundo, no corredor que levava a uma sala de visitas, algo se moveu. Júlia. Eu tinha subido com a desculpa de usar o banheiro do andar de cima. Ela tinha vindo atrás de mim para me mostrar alguma coisa boba, uma foto antiga, uma piada interna, mas parou ao nos ver.
Ela piscou duas vezes, confusa.
Heitor não percebeu sua presença. Eu percebi. E Júlia percebeu que eu percebi.
Houve um estalo ali, não de raiva, jamais dela. Mas de… desconforto. Uma súbita ideia de que estava perdendo espaço. Nos perceber juntos, tão próximos, fez seu coração encolher de um jeito estranho. Ela abriu um sorriso tímido.
— Mateus… tá tudo bem? — perguntou, caminhando até nós.
Eu recuei meio passo sem querer. Heitor franziu o cenho, não de impaciência com ela, mas de desconforto por ter perdido o momento.
— Tá sim, Jú — respondi.
— A gente só tava… conversando – Heitor interveio.
Ela sorriu mais largo, mas seus olhos denunciavam a tensão.
— Que bom. Heitor… não some, hein? — ela disse, puxando o braço do irmão num gesto carinhoso, típico de quem cresceu grudado.
Heitor retribuiu com um tapinha leve na cabeça dela.
— Relaxa, pirralha.
Ela riu, e era um riso verdadeiro. Ela amava Heitor com intensidade, ele era o irmão mais velho e o seu favorito. Depois da morte do pai, ele era sua segurança, sua referência, seu porto.
Ainda assim… ela olhou de mim para ele, e depois de volta para mim, com algo que doía e ela não sabia nomear. A posse silenciosa de quem teme perder alguém.
Quando ela desceu a escada de volta à festa, a varanda ficou de novo apenas de nós dois. A luz parecia mais baixa. O ar, mais quente. Heitor se aproximou mais uma vez.
— Ela gosta mesmo de você — disse, sem ironia.
Eu engoli seco.
— Eu gosto dela também.
— É. Eu sei. Mas… — Heitor inclinou a cabeça — Quando ela chegou, você recuou.
— Eu… não queria que ela interpretasse errado.
Heitor deu um sorriso lento.
— Interpretar o quê, Mateus?
O quê veio carregado de intenção. Eu abri a boca, mas não achei resposta. Heitor avançou o último passo.
Uma das mãos segurou o meu queixo, com firmeza suave, guia, não força. Eu cedi imediatamente, como se aquele toque fosse exatamente o que eu esperava desde que eu o havia conhecido.
O segundo beijo não foi como o primeiro. Foi mais seguro. Mais lento. Mais quente.
Heitor beijava como quem sabia o que queria. Eu o recebia como quem finalmente parava de resistir.
Houve um momento em que as nossas testas ficaram coladas, respirações misturadas, mãos nos ombros, dedos roçando o braço, calor contra calor.
— Queria ficar mais — Heitor murmurou contra a boca dele.
— Eu também — eu respondi, sem pensar.
Mas eu teria que ir embora. Era uma festa. Era tarde. E aquilo tudo ainda era novo demais.
Heitor soltou meu rosto devagar.
— Me procura depois — disse, baixinho, quase uma ordem suave, gravando o seu número no meu telefone.
Eu apenas assenti.
E, quando deixei a casa de Julia e Heitor naquela noite, com o mundo girando de um jeito diferente, soube que nada voltaria ao normal.
O reencontro aconteceu numa tarde de vento quente. Depois de vários dias sem nos falar, Heitor tinha mandado uma mensagem curta: "passa aqui hoje"?
Nada de detalhes. Nada de explicações. Só o convite. A assinatura implícita do jeito dele.
Eu fui.
A casa estava silenciosa, Júlia tinha saído com uma amiga e eu não vi outras pessoas na casa. Heitor abriu o portão com um sorriso enviesado e me puxou pela mão sem cerimônia, fechando o portão atrás de nós.
— Precisava te ver — disse, sem rodeios.
A sinceridade crua fez o meu estômago vibrar.
Nos sentamos no sofá da sala de visitas do segundo andar, um espaço mais reservado da casa, mas Heitor não deu espaço para distância. Ficou perto, muito perto. Pernas quase encostando. Ombros alinhados.
— A gente precisa conversar — Heitor começou, olhando diretamente para mim — Sobre o que aconteceu.
Eu respirei fundo.
— Eu sei.
— Eu não sou muito bom nisso — Heitor confessou, passando a mão na nuca — Mas… eu gostei de você. Não só daquele jeito do beijo. Gostei de estar com você. De como você me olha. De como fica nervoso quando eu chego perto.
Eu senti o rosto esquentar. Heitor percebeu e sorriu.
— Viu? — provocou ele, aproximando-se mais um pouco.
— Não é culpa minha —sussurrei.
— Eu sei.
Heitor levantou a mão e passou devagar pelo meu braço, subindo até meu ombro, depois pela lateral do pescoço. Era um toque lento, cuidadoso, íntimo, feito para testar limites e provocar resposta.
Eu fechei os olhos.
Heitor me puxou para perto, para o seu peito, num abraço que apertava, quente, firme, cheio de intenção. Eu me deixei levar, encostando o rosto no pescoço dele, sentindo o cheiro, o calor, o ritmo da respiração.
Os dedos de Heitor subiram pela minha nuca, entrelaçando-se nos meus cabelos castanhos e ondulados, desfazendo os meus cachos. A outra mão segurou a minha cintura, me guiando com calma.
Não era pressa. Era aprofundamento.
Quando nos beijamos, foi devagar no início. Depois mais fundo, mais entregue. Eu segurei a camiseta de Heitor, apertando sem perceber. Heitor deslizou a mão pelas minhas costas, num toque que arrepiava, que pedia aproximação sem ultrapassar o limite.
Nós ficamos assim por longos minutos, entre beijos, carícias, abraços fortes, toque de dedos nos braços, no rosto, no peito, descobrindo, entendendo, entrando um no universo do outro.
Quando finalmente nos afastamos, ainda colados, Heitor segurou o meu rosto entre as mãos.
— Isso aqui… — ele disse, olhando nos meus olhos — Não é só um momento. A gente vai continuar, se você quiser.
Eu respirei fundo, coração disparado.
— Eu quero.
Heitor sorriu, aquele sorriso raro, que mostrava dentes e intenção.
— Então vem cá – ele me pegou pela mão e me conduziu para o seu quarto.
E eu fui. Não porque sabia exatamente o que viria a seguir. Mas porque, naquele instante, não queria estar em nenhum outro lugar do mundo.