Ela não era uma mulher vulgar. Ao menos, não se via assim. Maria Antônia tinha o porte de uma santa em decadência: olhos fundos de quem não dorme bem, um sorriso treinado para parecer genuíno e um corpo que parecia odiar o próprio desejo. Seus gestos eram contidos, sua fala doce, sua postura discreta — uma camuflagem quase perfeita para uma selva interna em combustão. Era impossível olhar para ela e imaginar o tipo de guerra que travava sozinha todas as noites.
Casada com Orlando há sete anos, os dois se tornaram um casal-fantasma. Mantinham as aparências como quem segura o teto com a ponta dos dedos: sempre prestes a desabar, sustentando a fachada de normalidade em festas de família e jantares entorpecidos por sorrisos falsos. No entanto, o que os vizinhos, colegas e família viam como uma mulher “difícil de lidar”, era apenas a superfície de algo monstruoso, profundo e insaciável. Algo que ela mesma, agora, era forçada a nomear: Ninfomania.
Maria não era promíscua por gosto. Tampouco colecionava corpos por vaidade. Ela era tomada por um impulso cego, animalesco, que a fazia sair de casa às três da manhã para encontrar estranhos, se expor ao perigo, arriscar contrair doenças e humilhações apenas para tentar, em minutos, preencher um buraco psíquico que parecia fundo demais para qualquer prazer conter. E logo após, o vazio. Sempre o vazio. O nojo de si mesma. O choro abafado no travesseiro enquanto Orlando dormia no sofá com a TV ligada no mudo esperando que ela voltasse.
Tudo começou com pequenas fissuras: um flerte no elevador, uma fantasia irrealizável, uma curiosidade. Depois, vieram as traições, os encontros secretos, os lugares escuros e sem nome. A obsessão se tornou cíclica: buscar, conquistar, transar, odiar-se. Recomeçar. A compulsão não era mais sobre prazer. Era sobre fuga. Sobre anestesia.
Orlando tentou. Tentou terapia de casal. Tentou fugir. Tentou amar mais. Tentou não ver. Mas o olhar dele para ela, aos poucos, foi se tornando o de quem vê um animal ferido demais para ser curado. E Maria sentia isso. Sabia que estava perdendo-o um pouco a cada noite em que mentia, cada vez que passava pomadas entre as pernas para esconder os hematomas da noite anterior, cada vez que pedia desculpas com os olhos sem nunca verbalizar.
***
– Onde você esteve? – Orlando perguntou, pela décima vez naquele mês.
Maria passou por ele como se fosse fumaça. Jogou a bolsa no sofá, tirou os sapatos, e foi direto para o banheiro. A calcinha, encharcada, ia direto para o cesto. Tomou banho por 40 minutos. Chorou com o rosto virado para a parede de azulejos.
Orlando entrou no banheiro.
– Até onde vai isso? – disse, firme, sem raiva. Só cansaço. – A cama cheira a outro homem, Maria. Eu lavo os lençóis, e o cheiro volta. Tem perfume nos seus cabelos que não é o seu. Você nem se dá ao trabalho de esconder mais.
Ela o olhou. Nua. Cansada. Os olhos avermelhados de vergonha.
– Não é sobre você. Eu queria que fosse. Mas não é.
– É doença? – ele perguntou, baixando a voz. – Porque se for, eu... eu fico. A gente trata. Mas se for só egoísmo, se for só uma vontade de destruir tudo...
– É pior – ela interrompeu. – É como ter um bicho dentro de mim. Um bicho que não dorme, que me exige. É fome. Mas fome de quê, Orlando? Fome de quê?
Ele não respondeu. Saiu. Dormiu no carro aquela noite. Maria se masturbou no sofá, chorando. Não porque queria. Porque precisava. E depois dormiu no tapete, abraçada a uma almofada suja de vinho.
***
A clínica ficava num bairro afastado, com muros altos e cheiro de lavanda. Era sua segunda internação em menos de um ano. Lá, todos tinham nomes falsos. Ela era "Luciana". Usava pijamas beges e tomava remédios que lhe deixavam os lábios trêmulos.
Na segunda semana, foi chamada pela terapeuta. A doutora Maura era rígida, magra, cabelos brancos bem penteados. A sala tinha um sofá amarelo e uma mesa de centro com uma bonsai de um cacto.
– Maria... quer dizer, Luciana – disse Maura –, você precisa começar a escrever. Registrar seus impulsos. Dar nome aos seus monstros. A negação só alimenta a compulsão.
– Eu sinto vontade de transar com você agora – Maria disse, sem piscar. – Vontade real. Vontade doentia. Vontade de te rasgar ao meio com a minha língua.
Maura não se assustou. Apenas anotou algo num caderno.
– E como isso faz você se sentir?
– Como uma aberração.
– E o que você sente logo depois do ato sexual, Maria?
– Vazio. Como se tivesse morrido. Como se eu só existisse na hora do gozo. Depois, só sobra o cadáver.
As sessões seguiram por semanas. Maria fazia progresso, depois recaía. Masturbava-se no banheiro da clínica com a escova de dentes. Passava bilhetes eróticos para outros pacientes. Um dia, foi flagrada fazendo sexo oral em um interno esquizofrênico, atrás da lavanderia.
Foi medicada. Isolada. Chorou por três dias. Disse que queria morrer.
No relatório, Maura escreveu:
"Paciente apresenta traços profundos de transtorno hipersexual com forte componente dissociativo e compulsão autodestrutiva. A erotização de figuras de autoridade indica trauma primário possivelmente ligado à figura paterna ausente ou abusiva. Urgente continuidade de tratamento intensivo. Alta não recomendada."
Mas a clínica era privada. Orlando não podia mais pagar.
Na terceira semana, Maria recebeu alta.
– Você vai voltar pra mim? – perguntou Orlando, ao buscá-la.
– Vou tentar. Mas eu sou um incêndio, Orlando. Você tem medo de se queimar?
Ele não respondeu. E ela soube, ali, que a resposta era sim.
***
— Eu te vi, Maria. — disse Orlando, sem levantar a voz, apenas fitando-a com olhos de animal vencido. — No carro. Com aquele garoto.
Ela segurava um copo de uísque com as duas mãos como se fosse um cálice sagrado, trêmula, tentando manter a pose, mas as palavras dele lhe abriram o estômago como uma lâmina cega.
— Orlando... não é o que parece...
Ele riu. Um riso curto, oco.
— Não é o que parece? Você montada num moleque com a cueca ainda no joelho, e você diz que “não é o que parece”? — Ele se levantou do sofá devagar. — Maria, você virou uma lenda nessa cidade. Um espectro. Os homens cochicham seu nome como quem evoca um demônio.
Ela cambaleou. Bateu com o copo na parede. O líquido escorreu como sangue.
— Eu tô doente, Orlando. Eu tentei. Tentei terapia, tentei frear...
— Você não tentou. Você mentiu pra terapeuta. Fingiu que estava em abstinência, mas saiu da consulta direto pra um banheiro de bar.
Silêncio. Um silêncio absoluto, aterrador. Maria se ajoelhou.
— Me ajuda, pelo amor de Deus... Me amarra, me acorrente... Faça qualquer coisa. Eu sou um buraco sem fundo. Um incêndio que consome tudo.
Orlando a olhou por um instante. Depois, virou-se e foi para o quarto. Trancou a porta. E não disse mais nada por dias.
Maria passou a vagar pela casa como um espírito em penitência. Tomava banho de madrugada. Deitava no chão da cozinha. Masturbava-se compulsivamente com qualquer objeto à mão, chorando, rezando. Ligava para números aleatórios, tentava marcar encontros, era bloqueada. Alguns homens faziam vídeo chamadas nus. As mensagens voltavam em avalanche. Mas nada era suficiente. Nada preenchia.
Um dia, bateu à porta da terapeuta suja, com olheiras profundas e um vestido rasgado.
— Eu preciso ser internada. Eu vou matar alguém. Ou a mim mesma.
Foi acolhida. Internada. Diagnosticada com transtorno hipersexual compulsivo severo, com comorbidade depressiva. Medicação. Isolamento. Abstinência forçada.
Mas mesmo na clínica, Maria tentava seduzir os enfermeiros. Escrevia bilhetes. Masturbava-se sob os lençóis. Tentou escapar duas vezes. Foi contida.
A degradação se completava. Maria Antônia, aos 28 anos, não era mais uma mulher. Era um registro clínico. Um número. Uma lembrança incômoda na mente de Orlando. Um nome sussurrado nos becos. Uma ruína viva.
E ela sabia. Sabia e ria como uma louca Porque no fundo, ainda ardia em chamas.
***
A noite estava úmida, pesada, e a chuva fina transformava as luzes da cidade em manchas trêmulas no para-brisa do táxi. Maria Antônia mordia os lábios com força, as unhas tamborilando nervosas na alça da bolsa. Ela não sabia o nome do homem que a esperava, apenas que ele tinha prometido algo "diferente", algo que ela nunca tinha sentido antes. Isso bastava.
O motorista evitava olhá-la pelo retrovisor, como se pudesse farejar o cheiro de desespero que vazava dos poros dela.
— É aqui, senhora — disse ele, parando diante de um motel barato.
Maria desceu em silêncio. Os saltos afundando no barro. Sua cabeça latejava. O celular vibrava, mas ela não olhou. Sabia que era Orlando. Ou talvez sua terapeuta. Ou uma das irmãs da igreja. Não importava mais. Nada mais importava.
Dentro do quarto, o homem a esperava com um sorriso que não alcançava os olhos. Tinha tatuagens que pareciam feitas na prisão, mãos suadas e olhar de predador barato. Ela não hesitou. Já não hesitava fazia tempo.
— Tira tudo — disse ele. — Mas devagar. Quero ver o desespero.
Ela tirou. Camada por camada. Pele, dignidade, alma.
Horas depois, com o corpo arranhado e a mente em frangalhos, Maria vomitava no banheiro do quarto. Sentia-se um pedaço de carne com batimentos cardíacos. Nada mais. Nada menos. Um corpo que servia ao vício.
Quando voltou para casa ao amanhecer, Orlando estava sentado à mesa da cozinha. Os olhos vermelhos, a mala feita ao lado da porta.
— Onde você esteve? — ele perguntou. Mas a voz dele já não tinha fúria. Só luto.
Maria não respondeu. Sentou-se em frente a ele. Os dois ficaram em silêncio. E então ela disse:
— Eu preciso de ajuda. Ou vou morrer.
Ele assentiu lentamente, levantou-se, pegou a mala e saiu. Sem abraços. Sem palavras. Sem volta.
Naquela tarde, Maria internou-se pela primeira vez voluntariamente com calma e uma aparência aceitável. O laudo foi claro: transtorno do controle de impulso com predominância de comportamento hipersexual compulsivo, agravado por quadro depressivo moderado e traços de personalidade borderline.
Foram três meses de abstinência, surtos, choro, confissões, recaídas. Uma enfermeira tentou seduzi-la como um teste. Um dos internos ofereceu drogas em troca de sexo. Ela quase cedeu. Quase. Mas pela primeira vez, parou. Chorou. Gritou. Mas não cedeu.
Maria olhou-se no espelho do quarto clínico. O cabelo ralo. Os olhos fundos. As marcas nos braços. E sorriu. Um sorriso triste. Mas humano.
— Ainda estou viva — sussurrou.
Foi a primeira vitória. A mais difícil. E a primeira de outras. E ela seguiu com o seu longo processo de cura.
***
PRONTUÁRIO CLÍNICO:
Paciente: Maria Antônia de Oliveira Borges
Idade: 28 anos
Sexo: Feminino
Estado civil: Casada
Profissão: Designer gráfica (afastada por licença médica)
Número do prontuário: #498273-MAOB Data da admissão:Data da alta/internação prolongada: sem previsão definida
Diagnóstico Clínico (CID-11): 6C72.1 – Transtorno hipersexual persistente (com comportamento compulsivo).
Histórico:
Primeiras manifestações aos 13 anos: masturbação compulsiva, relatos de assédio a colegas.
Aos 17: múltiplas relações sexuais por semana, indiscriminadas.
Aos 21: casamento com Orlando como tentativa de “domesticar” o desejo.
Aos 26: recaída severa com múltiplos parceiros por semana; automutilação genital leve.
Recaídas Graves Documentadas:
Episódio no confessionário da Igreja São Vicente.
Masturbação em praça pública (vídeo viralizado nas redes sociais).
Tentativa de sedução de policial durante abordagem de rotina.
Internação emergencial após episódio dissociativo sexualizado em via pública.
Efeitos Secundários:
Anedonia afetiva.
Dissociação episódica.
Psicose reativa leve.
Ideação suicida com frequência mensal.
Avaliação Final: Paciente demonstra padrão predatório inconsciente, com vínculo emocional comprometido, ausência de remorso e despersonalização recorrente. Altamente funcional no uso de sedução como mecanismo de defesa e ataque. Risco elevado de reincidência. Prognóstico: reservado.
Observações clínicas: Paciente não responde a estímulos convencionais de afeto. Reage de forma erótica mesmo a comandos neutros. Estratégia recomendada: isolamento sensorial parcial, equipe com predomínio feminino, reforço cognitivo com antipsicóticos e estabilizadores de humor.
ENTRADAS DO DIÁRIO DA TERAPEUTA (MAURA):
17 de abril: “Ela sorri como se soubesse de algo que ninguém mais sabe. Como se já tivesse dormido com a própria Morte e agora visse os homens como brinquedos quebrados.”
2 de maio: “Hoje ela me chamou de ‘invejosa’. Disse que eu queria ser como ela, mas me escondia atrás de um jaleco. Parte de mim concorda.”
15 de maio: “Sonhei com ela ontem. Sonhei que me pedia ajuda e, quando estendi a mão, ela se abriu como um polvo e me tragou. Acordei ofegante. Preciso repensar minha prática.”
28 de maio: “Não volto lá. Não posso. Maria é um espelho sujo onde todos nós vemos o que negamos. Se isso é cura, prefiro a doença.”
***
DIAGNÓSTICO PRINCIPAL (CID-10): F52.7 – Transtorno hipersexual (ninfomania)
COMORBIDADES IDENTIFICADAS:
Episódios de depressão maior (F33.1)
Transtorno de personalidade limítrofe (F60.3)
Transtorno de ansiedade generalizada (F41.1)
HISTÓRICO CLÍNICO: Maria Antônia iniciou acompanhamento ambulatorial em janeiro de 2023, após tentativa de suicídio por ingestão de medicamentos. O relato inicial envolvia sentimentos persistentes de culpa, vergonha, e uma compulsão sexual incontrolável. Apresentava quadro dissociativo frequente após encontros sexuais, caracterizado por choro intenso, sensação de irrealidade e desejo de automutilação.
A paciente relatava histórico de infidelidade compulsiva, relações sexuais com estranhos em locais perigosos, comportamento de risco, uso de aplicativos para múltiplos parceiros semanais, além de consumo abusivo de álcool como forma de atenuar os impulsos. Seu casamento estava em crise irreversível, com relatos de violência emocional de ambas as partes.
Tentativas anteriores de tratamento incluíram:
Terapia cognitivo-comportamental (abandono precoce)
Grupos de apoio (duas sessões, não retornou)
Medicação ansiolítica (fluoxetina 40mg – efeitos colaterais intensos)
Abstinência total durante 31 dias (recaída grave emPRINCIPAIS RECAÍDAS REGISTRADAS:– Abandono de reunião familiar para ato sexual com desconhecido– Relato de sexo grupal não consensual após consumo de substâncias– Surto dissociativo pós-encontro com parceiros múltiplos; encaminhada ao hospital– Tentativa de sedução de terapeuta (transferência mal resolvida)
DIÁRIO DA TERAPEUTA – DRA. CLARISSA NOGUEIRA (CRP:
Entrada 01 –Maria chegou com postura defensiva. Olhar acuado. Evitou contato visual por quase 15 minutos. Quando finalmente falou, descreveu suas experiências como se narrasse crimes. Ela teme não ser amável. Sente-se como um buraco que engole todos ao redor. Seu medo mais constante: o de que nunca vá se curar.
Entrada 07 –Durante a sessão, Maria admitiu pela primeira vez ter sentido prazer no poder sobre os homens, seguido de nojo profundo. Chora copiosamente ao recordar a infância. Revelou abuso aos 9 anos por um tio. Trauma mal resolvido que converteu-se em hiperatividade sexual e idealizações amorosas.
Entrada 13 –Abstinência de 27 dias. Irritabilidade severa. Insônia. Disse que sonha todas as noites com corpos que não consegue controlar. O sexo não é desejo: é vício. É punição. Começa a escrever cartas para si mesma. Algumas em forma de oração.
Entrada 21 –Após recaída grave, Maria chegou à sessão tremendo. Relatou sensação de estar "vazia de alma". Falava com a voz embargada, olhos vidrados. Disse que não suportava mais ser quem era. Pediu internação voluntária.
LAUDO PSIQUIÁTRICO COMPLEMENTAR (DR. LUIZ ALENCAR – CRMSP):
“A paciente apresenta transtorno hipersexual de natureza compulsiva, com prejuízo severo nas esferas afetiva, conjugal e profissional. Trata-se de um quadro de rara intensidade. Sua sexualidade tornou-se dissociada de qualquer traço afetivo. Há risco de automutilação e suicídio em caso de prolongamento da abstinência não acompanhada. Internação é indicada como forma de contenção e reestruturação terapêutica.”
NOTAS DE ENFERMAGEM – CLÍNICA SANTA VERÔNICA (SETEMBRO/NOVEMBRO 2024):
15/09: paciente teve pesadelos com abusos passados. Foi sedada.
22/09: recusou comida e permaneceu em silêncio por 12 horas.
01/10: iniciou desenhos compulsivos de órgãos genitais. Encaminhada à arteterapia.
08/10: tentativa de fuga durante visita do marido. Contida sem violência.
COMENTÁRIO FINAL DA TERAPEUTA:
“Maria é uma alma em chamas. Não quer seduzir, mas não sabe viver sem seduzir. Sua busca pelo prazer é, na verdade, busca por dor, por punição, por algo que se assemelhe ao amor perdido antes mesmo de existir. Seu tratamento será longo. Não há cura mágica para o que ela carrega. Mas há presença. E persistência. E um fio de esperança tênue. Se agarrar a esse fio será sua maior batalha.”
