Os segredos de Clara. 06
Saulo estava na sala de jantar, usando uma das cadeiras como apoio para pegar sua câmera em cima do armário. Observei enquanto ele a colocava sobre a mesa de jantar.
—Você está bem? — Perguntou ele, apertando meu braço. Eu sabia que ele estava pronto para me abraçar se eu precisasse, mas eu estava tão cheio de raiva que precisava de movimento, não de conforto.
— Você ouviu alguma coisa?
— Um pouco.
— Você acredita nisso? Ela passou doze anos mentindo, me enganando e me traindo. Doze anos de desrespeito e ela acha que confessar que é viciada em sexo resolve tudo? Que um simples “me desculpe” acompanhado de algumas lágrimas vai consertar tudo? Nada que ela diga ou faça jamais mudará o fato de que ela passou mais de uma década me enganando. São doze anos que eu nunca vou recuperar. Não importa o que ela faça para tentar se redimir, isso sempre fará parte da nossa história. Ela tomou a decisão unilateral de alimentar seu suposto vício fora do nosso casamento sem sequer conversar comigo. E agora ela quer chorar, “coitada de mim”, porque tem que conviver com as consequências. O único motivo pelo qual ela quer que eu a aceite de volta é para não ter que lidar com as consequências. Ela só tem medo de perder o status de boa moça com a família e os amigos.
— Concordo, Dani. Seja lá em que planeta ela esteja vivendo, não é o planeta Terra.
— Sim, eu sei. Sinceramente, acho que ela acredita que o caso dela deve ser considerado tão grave quanto aquela vez em que ela pegou meu carro emprestado e o amassou, ou aquela vez em que ela jogou meu celular novo na máquina de lavar sem querer.
— Mas, Dani. — Saulo imitou a voz de Clara. — "Sou viciada em ser uma safada, então não posso ser responsabilizada pelos meus atos."
Soltei uma risadinha irônica, andando de um lado para o outro em frente às portas de vidro deslizantes.
— Você ouviu a parte em que ela disse que, embora eu não soubesse do caso, isso não estava me afetando? Meu Deus, Saulo, que coisa mais absurda! Me esforcei ao máximo para não pular por cima da mesa e estrangular aquela vadia. Não me afetar porque eu não sabia? É como dizer que o câncer não te faz mal só porque por 'X' tempo você não sabia que ele estava ali, escondido no seu corpo. Tente convencer uma vítima de câncer dessa lógica. Quer você saiba que ele está lá ou não, ele continua te corroendo por dentro, te matando lentamente. Só que ele faz isso sorrateiramente até não conseguir mais esconder sua face maligna. Não tem como uma pessoa ser 100% sua se está entregando a outra, uma parte do que deveria ser só seu. O que essa pessoa entrega ao outro, jamais será seu e você jamais saberá o que é ter essa pessoa por inteiro. Se dedicando a você 100%. Só uma pessoa doente para não ver o quanto isso te afeta.
Saulo deu um tapinha no meu ombro enquanto ia até a geladeira. Ele pegou duas cervejas e me deu uma.
— Nossa, eu estava tão orgulhoso de você. Não sei se eu teria conseguido manter a calma com algumas das besteiras que ela falou. Você até me assustou, parecia tão formal e indiferente, como um diretor de escola. Você sentiu pena dela em algum momento? Talvez tenha pensado em resolver as coisas.
— Não. Nem uma vez. Aliás, quando olhei para ela, senti repulsa. Tudo o que vi foi uma atriz representando um papel. Nada que ela dissesse ou fizesse me convenceria de que nosso casamento significava algo para ela. Não poderia significar, ou ela não teria cedido aos seus impulsos e o convidado para estar entre as suas pernas repetidas vezes. Ela fazia coisas por ele que não faria por mim. Comigo, ela era a santinha. E você leu as cartas. Meu Deus, ela pediu a ele para ser o pai dos nossos filhos. Você sabe há quanto tempo eu peço a ela para formar uma família e ela ia me roubar até isso. Isso não é amor. Isso é ódio. Más mesmo ela tendo transado com o primo por dez ou onze anos, antes disso ela me traia com outros, como ele mesma confessou.
— Mas mesmo sem tudo isso, me recuso a viver uma vida de desespero silencioso, me perguntando e questionando quem é a verdadeira Clara. Não vou passar a vida com um nó permanente no estômago, desconfiado toda vez que ela se atrasa ou não está no clima, ou, Deus me livre, ela está no clima e eu me torturando, me perguntando se ela está realmente presente comigo ou se colou o rosto de outro cara no meu e está imaginando que é com ele que ela está transando.
— Não consigo descrever o alívio que sinto ao ouvir isso, Dani. Devo admitir que estava preocupado que ela conseguisse te influenciar e, de alguma forma, te convencer a perdoá-la. Quer dizer, eu não te culparia, você investiu muito tempo e emoção nessa mulher. E eu te apoiaria, se fosse isso que você realmente quisesse, mas não consigo imaginar nenhuma felicidade para você se seguir por esse caminho.
Assenti com a cabeça, continuando a andar de um lado para o outro. Sentia-me como um touro a bater as patas no chão.
— O que eu não entendo é: se a Clara queria transar por aí, por que casar com você? Por que casar com alguém? Por que namorar sério? Ela poderia ter se apresentado como uma mulher independente e mantido tudo leve e casual, saído com outras pessoas e, quando um de vocês se cansasse ou visse alguém que lhe agradasse, poderia ter seguido em frente sem ressentimentos. Ela poderia ter transado com todos os caras estranhos que quisesse.
Assenti com a cabeça em concordância. Saulo tinha razão. Por que diabos casar se ela precisava transar com outros para ser feliz? A menos que o cara gostasse desse tipo de coisa, nunca ia acabar bem, não importa com quem ela se casasse.
Exatamente. Para mim, uma grande parte do que torna o casamento especial é que, desde o dia em que você está no altar diante de sua família e amigos e faz seus votos, você sabe, ao pronunciar as palavras, que está prometendo fidelidade para sempre. Você sabe que está prometendo a ela que ela será a única mulher com quem você fará amor para sempre. E o mesmo vale para ela. Ela está prometendo ser sua e somente sua a partir daquele dia. Sem esse voto de fidelidade, o que torna o casamento especial? O que o diferencia de um relacionamento casual? Por que se dar ao trabalho de assumir o compromisso? Por que se dar ao trabalho de fazer as concessões e os sacrifícios que todos os casamentos bem-sucedidos exigem?
— Sem a fidelidade dela, não havia nada de especial nós. Sem essa confiança e compromisso de sermos fiéis um ao outro, não acho que exista intimidade real. E sem isso, ela é apenas mais uma conquista na minha lista.
Talvez eu seja antiquado, mas para mim é simples: preto no branco, sem meio-termo. Ou ela é minha ou não é. Não existe essa coisa de meio termo. Eu simplesmente não funciono assim. E apesar das garantias dela de que era minha, ela não era. Nunca foi. Ela só fingia ser.
— Nossa, acho que nem a mamãe nem a Mel teriam dito melhor. Você devia falar umas dessas coisas quando te entrevistarem. — Ele piscou para mim. — Desde quando você virou filósofo, Dr. Dani? Deve ser por causa de toda essa serragem que você inalou ao longo dos anos.
Eu ri, a provocação de Saulo dissipando minha raiva. — Bem, pelo menos eu não precisei ser atingido por um raio, que é o que seria necessário para penetrar meu crânio grosso.
Brindamos com as garrafas. — Touché. É bom ter meu irmão de volta.
— Você acha que ela realmente acredita nas bobagens que disse? — Perguntei.
— Quem sabe? Talvez ela simplesmente não consiga encarar a verdade.
Dei de ombros. — Bem, no caso dela, a verdade certamente não era bonita.
Saulo deu um sorriso irônico. — Mas ela me decepcionou. Fiquei esperando que ela se oferecesse para fingir que não via você transando com outra por vingança.
Eu ri, e não foi só uma risadinha. Foi uma gargalhada profunda, como se eu tivesse ouvido a piada mais engraçada de todos os tempos.
— Isso teria que ser uma orgia de um ano inteiro para chegar perto do que ela e aquele filho da puta, fizeram.
E falando no diabo, ela disse que ele a chantageou, isso também deve ser levado em consideração, você não acha?
— Ahhh, tem isso também. Com certeza não podemos deixar ele se safar dessa, impune. Mas isso não redime ela em nada. Se fosse uma pessoa honesta, não estaria nessa situação.
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Na tarde de quinta-feira, eu estava no meu quintal, curtindo o pôr do sol, recém-banhado, com uma cerveja na mão e falando ao telefone com a Elem.
Contei a ela a versão resumida da visita de Clara, pois não queria me irritar.
Enquanto conversávamos, abri as mensagens e li as perguntas finais de Elem, discutindo minhas respostas com ela. Sabendo do meu plano de fingir indiferença, ela as formulou de maneira a me permitir falar filosoficamente, em vez de ter que revelar a profundidade da minha mágoa e raiva. Eu só esperava não perder a calma ou revelar minha estratégia quando Oscar fizesse suas perguntas e brincadeiras mais espontâneas.
— Não conseguimos usar todas as cartas. Algumas, se tivéssemos apagado todas as partes impróprias para menores, teriam ficado apenas alguns pronomes e talvez a palavra 'o/a'.
Começamos a publicá-las esta manhã no Facebook, uma por hora. O mesmo acontece no nosso site. Mais algumas serão publicadas nas próximas horas. Estão recebendo uma enxurrada de comentários. A maioria das pessoas está horrorizada. Há um ou outro idiota que acha que está tudo bem, e um ou dois brincando que gostariam do número de telefone de quem quer que seja a garota. E não se preocupe; eu me certifiquei de que apagamos o nome da Clara e o seu em todas as que usamos, para que ela não possa processá-lo nem nada.
— Hum, eu não tenho Facebook.
Elem deu uma risadinha. — Por que isso não me surpreende? Você deveria pensar nisso, pelo menos para o seu negócio, se não para um perfil pessoal. Me dê um segundo e eu te envio por e-mail os que usamos.
Momentos depois, o e-mail chegou à minha caixa de entrada. Abri os três primeiros e, como esperado, Clara, Zaqueu e eu não podíamos ser identificados pelas cartas. Isso era importante. Eu não pretendia desembolsar uma fortuna para aquela mentirosa porque ela reclamou com algum advogado metido a besta que eu havia invadido sua privacidade. Nas cartas e na entrevista, eu seria 'D'; Clara seria 'C' e Zaqueu 'R'. Não usar 'Z' para ele era uma precaução, mas qualquer pessoa da nossa família ou grupo de amigos que tivesse pedido uma cópia das cartas para minha mãe ou Mel e elas me garantiram que muitos tinham pedido, saberia a quem eu me referia. Eu tinha certeza de que a notícia se espalharia a partir daí. Com sorte, Clara e o Rato Zaqueu, ficariam tão envergonhados que iriam embora da cidade.
Eu me sentia bem com o que estava fazendo, eu não buscava vingança. De certa forma, os meios me encontraram. Minha intenção era apenas dar respostas diretas e honestas às pessoas quando questionado, em vez de encobrir o que os dois haviam feito. Para mim, se eles não achavam que tinham feito nada de errado, então não tinham nada do que se envergonhar, se não queriam cumprir a pena, não deveriam ter cometido o crime.
Eu queria manter a Elem na linha, mas sabia que ela precisava dormir cedo e eu precisava treinar.
Cozinhei um pouco de massa e conferi as cartas de amor que a rádio tinha usado, só por precaução, caso alguém as mencionasse na entrevista. Em seguida, me dediquei às respostas para as perguntas da Elem, aprimorando-as a cada ensaio. Na minha última versão, minha performance estava boa, implacável, monumental. Foi uma execução através das palavras.
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— Dani, este é o Oscar. Oscar, Dani.
Minha saudação foi reservada, mas a de Oscar foi tudo menos isso. Eu estava convencido de que o cara tinha TDAH. Mesmo sentado, ele parecia estar em constante movimento. Ficou claro que ele e Elem tinham uma química tão boa na vida real quanto tinham no ar. A conversa entre eles fluía com a mesma naturalidade que a minha com Saulo. Eu me perguntava se eles eram um casal fora das câmeras.
A assistente Claudia, me mimou, colocando um café e um folhado de maçã na minha frente e me dando uma breve explicação sobre o uso do microfone e do fone de ouvido. Suas ações reforçaram a realidade: eu estava prestes a falar sobre coisas muito pessoais com uma plateia invisível que poderia chegar a milhares de pessoas.
Uma onda de náusea me atingiu. Os músculos do meu estômago se contraíram, tentando conter o ninho de vespas furiosas que de repente se instalara no meu intestino. Eu não conseguia decidir se aquelas criaturas irritantes buscavam a liberdade pelo meu umbigo ou pela minha garganta. Tudo o que eu sabia era que queria que elas se acalmassem antes que eu me envergonhasse.
Estava passando um comercial. Entrei assim que terminou. Olhei para Elem em pânico.
— Você vai ficar bem, Dani. — Ela sussurrou. — Todo mundo fica nervoso. Assim que fizermos a primeira pergunta, o nervosismo vai passar.
Assenti com a cabeça, sem confiar em mim mesmo para não emitir um grunhido como um rato se tentasse falar.
Elem assumiu o controle das apresentações e da primeira parte da entrevista, e ela estava certa, embora eu só tenha esquecido na terceira pergunta, de que milhares de pessoas estavam me ouvindo. Ela me conduziu pelo caminho que havíamos combinado, e fiquei feliz por ter podido usar minhas analogias com gangrena e projetos de design para não parecer um completo idiota.
—Então, 'D'". — Disse Oscar, — O perdão nunca esteve nos planos? Você não ama 'C' o suficiente para perdoá-la por sua, ah, fraqueza?
— Em vez de responder diretamente a essa pergunta, Oscar, eu gostaria de invertê-la. Por que ela não me amou o suficiente para permanecer fiel? Ou, pelo menos, me amou o suficiente para ser honesta?
— Boa observação, mas, cara, preciso perguntar, como ela conseguiu se safar por doze anos? Você estava por aí com os olhos vendados?
— Oscar, acho que de certa forma sim. Um amigo meu que estudou psicologia na faculdade me explicou. — Olhei para Elem, que estava radiante. — Acho que se chama viés de confirmação, mas não me cite...
— Nossa, o que é isso? — Oscar riu. — Parece sinistro. Não significa que você seja um sociopata, significa? Preciso chamar a segurança ou usar minhas habilidades ninja?
Elem bufou. — Movimentos ninja?
— Sim, sou mestre em origami. Consigo dobrar meu inimigo como um pretzel.
Não consegui conter o riso. — Ah, é melhor eu me comportar então. Não sou bom em fazer contorcionismos! Mas falando sério, sou operário da construção civil e estou acostumado a ler plantas, não personalidades. Não sou psicólogo, então cruzem os dedos para que eu não estrague a explicação. Basicamente, a premissa é que, quando você acredita que alguém te ama, você interpreta o que essa pessoa diz ou faz de uma forma que sustente essa crença.
Olhei para Elem em busca de confirmação. Ela fez um sinal de positivo com o polegar.
— Então, o que você está dizendo é que durante doze anos você achou que ela te amava e, por isso, pensou o melhor dela, o que te cegou para os sinais da traição dela?
— Sim. Isso resume tudo. — Dei uma risadinha. — Agora que me ofereceram essa explicação, vou aceitá-la; me faz sentir menos ingênuo.
— Pessoal, nossa central telefônica está cheia de ligações de pessoas querendo falar com 'D', então, por favor, tenham paciência; chegaremos até vocês.
— Olá, 'S', o que você gostaria de perguntar ao 'D'?
— Você não consegue perdoar o 'R'?" — A voz da mulher estava rouca, o que poderia passar por nervosismo para quem não a conhecia, mas eu a conhecia. Quem ligava era minha tia Sueli. — Afinal, ele é seu primo.
— Que pena que o 'R' não se lembrasse disso toda vez que combinava de se encontrar com minha esposa ou escrever uma, carta de amor para ela. Que pena que ele escolheu esquecer nosso parentesco toda vez que mentiu na minha cara e me apunhalou pelas costas. Então, não, o perdão não é uma opção. Receio que ele esteja fora da minha vida para sempre.
A mulher soluçava, e meu coração se partiu pela minha tia, mas eu não podia mentir para ela. Vi um olhar passar entre Oscar e Elem, que perceberam que 'S' devia ser um parente.
Oscar atendeu o restante da chamada, tirando 'S' da linha com uma facilidade impressionante.
Elem sussurrou para mim: — Você está bem?
Assenti com a cabeça, embora meu coração se apertasse; esperava não receber muitas ligações semelhantes.
A ligação seguinte me deixou de boca aberta.
— Querido, você parece delicioso. Se um dia você se cansar de construir coisas, deveria considerar uma carreira no rádio. E se precisar de um pouco de conforto, me ligue.
Oscar riu. — Bem, obrigado, 'C', com certeza vamos pegar seus dados para 'D' fora do ar. Tenho certeza de que você fez um bem enorme ao ego ferido dele.
Achei que o Oscar estivesse brincando, mas dois minutos depois, a assistente estava com um sorriso de orelha a orelha enquanto guardava seu celular e colocava um bilhete na minha frente. E não é que a "C", tinha me deixado o número dela.
As ligações não paravam. A maioria era de pessoas compreensivas que me desejavam tudo de bom. Uma delas, eu suspeitei ser amiga da Clara, pois perguntou se havia alguma maneira de eu perdoar o erro de 'C'.
— Hum, erro. Não sei se eu poderia chamar isso de erro, 'G'. Para mim, um erro é chegar em casa com essência de limão quando sua esposa mandou você comprar suco de limão, ou virar à esquerda quando deveria ter virado à direita. Talvez lavar as roupas coloridas com as brancas e manchar todas as peças delicadas dela lilás. Algo que aconteceu repetidamente ao longo de doze anos e exigiu planejamento, escolhas, mentiras e ocultação de provas, isso pode ser considerado um erro?
A ligação caiu. Olhei de Elem para Oscar.
— Ops, parece que perdemos a 'G'.
Muitas das ligações ofereciam conselhos sobre como lidar com a minha perda, desde meditação e terapia, até passar um tempo no meio do mato. Uma delas até sugeriu usar fantoches representando os personagens principais para me ajudar a superar a angústia. O Oscar, claro, não resistiu a fazer uma piada com os Muppets, comparando o Zaqueu ao Monstro das Bolachas. Eu queria protestar, eu sempre gostei do Monstro das Bolachas quando era criança.
De acordo com Elem e Oscar, o segmento foi um sucesso.
— Cara, parece que você vai receber muito apoio para superar isso.
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Sem surpresas, a entrevista teve consequências. Às cinco e meia, minha futura ex esposa, furiosa, batia à minha porta.
— Daniel, atenda esta porta agora mesmo!
Olhei para meu pai, meu babá designado para a noite. — Hora do show.
— Simplesmente não dê a ela o que ela quer, Dani. E ela quer uma reação, então não dê a ela. Negue-lhe o que ela quer. Que a frieza, a calma e a compostura sejam suas palavras de ordem.
Assenti com a cabeça. — Que seja o que for.
Desci o corredor e abri a porta. Consegui até sorrir. "Boa noite, Clara."
— Como você pôde? Como pôde compartilhar minhas cartas no rádio? Por sua causa, elas estão por todo o Facebook. — Ela gritou comigo, com duas manchas vermelhas nas bochechas. Se olhares matassem, eu teria virado cinzas. — Elas eram minhas. Eram privadas. Você não tinha o direito de mostrá-las a ninguém.
Eu sorri. Ah, finalmente vemos a verdadeira Clara.
— Privado? Sério? Seja no apartamento ou nesta casa, o fato é que você as guardava em livros numa estante, que eu, ou qualquer convidado em nossa casa, poderia ter pego para folhear. Isso certamente corrobora meu argumento de que você tinha pouca expectativa de privacidade em relação a elas. Aliás, ao fazer tão pouco esforço para escondê-las, pode-se argumentar que você queria que fossem encontrados e compartilhadas.
— Você ainda não deveria tê-las compartilhado. Não sem me consultar.
Dei de ombros. — Eu apenas segui o precedente que você estabeleceu em relação às decisões sobre o nosso casamento. Além disso, já vi muitas cartas de amor publicadas online. A maioria das pessoas fica toda emocionada com elas. Você claramente não tem vergonha das suas, já que guardou muitas delas por anos, então qual é o problema?
— Não tente me zoar, Dani. Eu pareço uma vadia.
Dei de ombros, sorri e ergui uma sobrancelha.
— O que eu fiz pode ter sido errado, mas não foi odioso. O que você fez é cruel.
Talvez eu estivesse errado? Havia uma dúvida sobre isso? Não foi odioso?
Pedir para outro homem ser o pai do nosso filho não foi odioso ou cruel? Em que planeta ela vivia?
Quase expressei meus pensamentos, mas, ao abrir a boca, foi como se meu pai sussurrasse em meu ouvido: " Frio, calmo e sereno. Não lhe dê a satisfação de uma reação."
— Tanto faz, Clara.
Minha falta de emoção claramente a enfureceu. Aliás, seu rosto estava ainda mais vermelho do que quando eu abri a porta.
— Eu... eu vou fazer você pagar por isso, Dani. Segunda-feira de manhã, vou a um advogado e vou tomar essa casa de você. Vou te expulsar daqui. Chega de ser boazinha. Vou fazer você pagar caro por me humilhar.
— Que tal eu poupar seu tempo e me mudar neste fim de semana? Você pode se mudar, assumir o pagamento da hipoteca e dos profissionais necessários para terminar as reformas.
— Os tribunais vão obrigá-lo a pagar metade. Você pode até ter que pagar pensão alimentícia.
— Improvável, Clara. Você assistiu muita TV; aqui não funciona assim. Você tem um bom salário e consegue se sustentar, então não precisa de pensão alimentícia. Quanto à hipoteca, meus pais se ofereceram para me ajudar, mas isso não será necessário se eu me mudar temporariamente para a casa deles ou do Saulo.
— Por que eles teriam que te ajudar? Você é capaz, pode trabalhar e ganha bem. Não há nada de errado com você.
— Ah, mas existe sim, Clara. Receio que, devido a todo o estresse e ansiedade que sua traição me causou, meu julgamento tenha sido afetado e eu tenha cometido um erro no trabalho hoje e machucado as costas. — Não é verdade, mas eu tinha uma antiga lesão esportiva que se agravava de vez em quando e que me obrigava a usar uma cinta para dar suporte à minha lombar.
— Isso... isso é uma grande besteira. — Disse Clara, cuspindo as palavras.
Dei de ombros. — Tanto faz, Clara.
Observei-a enquanto ela se debatia para decidir com qual ameaça me atacar em seguida. Que tática usaria para conseguir o que queria? De repente, cansei-me dela e de seus jogos e decidi resolver a situação de vez.
— Claro, Clara, sempre podemos pular direto para a linha de chegada, dividir os lucros e vender o lugar do jeito que está.
— Mas se fizermos isso, nenhum de nós sairá com muita coisa.
Mais uma vez, dei de ombros. Percebi que aquilo a incomodava, então anotei mentalmente para fazer o mesmo sempre que possível em todas as minhas interações futuras com ela.
— E daí? É só dinheiro.
— Trabalhei muito duro para deixar tudo escapar fácil assim. — Ela sibilou.
Engoli a risada debochada que subiu à minha garganta. Ela tinha trabalhado demais? Ela plantou algumas ervas e roseiras. E todas as noites e fins de semana que eu dediquei a isso?
— Então compre minha parte e você mesma poderá terminar as reformas.
Clara estreitou os olhos, lançando-me um olhar fulminante. O que ela pensava que eu faria? Murcharia como uma flor sob o calor do seu olhar? Ergui uma sobrancelha, como se esperasse uma resposta. Em vez disso, ela se virou bruscamente e saiu pisando duro, gritando por cima do ombro:
— Isso está longe de terminar, Dani. Vou consultar um advogado e você vai pagar caro por isso. Isso não vai ficar assim.
Fechei a porta e voltei a passos lentos para o pátio, onde sabia que encontraria meu pai.
— Você ouviu alguma coisa disso? — Perguntei enquanto me sentava, aceitando o refrigerante que ele me ofereceu.
— Sim. A maioria.
Suspirei. — Não fui tão frio, calmo e controlado quanto deveria. Acho que houve um ou dois momentos em que deixei transparecer o quanto estou irritado.
— Ninguém é perfeito, Dani, e ela tinha seus próprios planos e estava bastante irritada, então provavelmente a maior parte do que você disse passou despercebido por ela.
— Espero que sim.
— Você tem muitas economias?
— Cerca de 60 mil. Por quê?
— Bem, você se lembra daquele empréstimo que sua mãe e eu lhe fizemos quando você tinha vinte e um anos para abrir seu próprio negócio?
—Sim. — Comecei a sorrir, entendendo imediatamente aonde meu pai queria chegar com a conversa.
— Bem, filho, sua mãe e eu vamos cobrar o empréstimo. Como estamos aposentados, precisamos do dinheiro para os nossos anos de aposentadoria.
Abri um sorriso de orelha a orelha. — Mandarei fazer uma transferência bancária em seu nome na segunda-feira de manhã, sem falta.
— Obrigado, filho.
A ideia do "empréstimo" tinha sido minha. Mamãe e papai sempre insistiram que era um presente, dizendo que queriam ajudar enquanto ainda estavam vivos. Fizeram o mesmo por Saulo quando ele saiu de casa. Tanto Saulo quanto eu éramos uns orgulhosos teimosos e insistimos em fazer os papéis do empréstimo, mesmo sabendo que mamãe e papai jamais aceitariam o pagamento. Nunca me senti tão grato pela minha teimosia como naquele momento; pagar o "empréstimo" só me deixaria com 10 mil na conta. E era meu mesmo — Clara não tinha depositado um centavo sequer, então nenhum tribunal do mundo diria que eu não podia usar o dinheiro dela para pagar a dívida.
Meu pai tomou um gole de refrigerante, contemplando meu jardim. — Acho que também vamos cobrar a dívida do Saulo.
Assenti com a cabeça. Meu pai era um excelente jogador de xadrez, e as minhas vitórias contra ele, assim como as de Saulo, eram raras. Eu conseguia ver sua mente estratégica em ação, ao cobrarem também a dívida de Saulo, não se podia dizer que estavam me pedindo para pagar apenas para impedir que Clara chegasse ao dinheiro.
—Sim. — Ponderou meu pai. — Há alguns investimentos que sua mãe e eu estávamos analisando. Acho que agora teremos o dinheiro para investir neles.