Nossa casa, antes um símbolo suburbano de conquista e tranquilidade, tinha se transformado em um bunker de luxo. As cortinas *blackout* da suíte principal permaneciam fechadas 24 horas por dia, criando um crepúsculo artificial e eterno que mexia com nosso relógio biológico. O ar-condicionado zumbia num tom monótono, filtrando o ar e, metaforicamente, a realidade lá fora.
Já faziam três dias desde a noite de terça-feira em que trouxemos Kelly do posto de gasolina. Três dias em que a rotina do meu casamento foi pulverizada e reconstruída em torno de antibióticos, trocas de curativos e um medo gelado que se instalava na base da espinha. Estávamos na sexta-feira, e o fim de semana que se aproximava parecia uma ameaça, não um descanso.
Vanessa tinha cancelado todas as reuniões presenciais. "Gripe forte", ela mentiu para o chefe com uma facilidade que, meses atrás, teria me deixado paranoico. Agora, eu sabia que ela estava mentindo para proteger a garota que dormia na nossa cama. Eu também me afastei do escritório, operando remotamente, com o laptop aberto na mesa da cozinha e a pistola .38 — que eu tirei do fundo falso do armário — descansando pesada e fria sob uma pilha de papéis de contabilidade.
A única bênção no meio desse caos era a Juju não estar em casa. Minha mãe tinha levado a neta para passar a semana no sítio na segunda-feira, um arranjo de férias que agora parecia intervenção divina. Pelo menos minha filha não estava respirando o ar tóxico de medo que impregnava nossa sala.
A verossimilhança da nossa vida "normal" tinha evaporado. O que restava era uma intimidade crua, forçada pelo perigo e pela presença daquela terceira pessoa quebrada entre nós.
Era final de tarde quando a tensão sexual, represada pelo medo e pela falta de privacidade, começou a vazar pelas rachaduras.
Kelly precisava de um banho. Até então, Vanessa vinha fazendo a higiene dela com toalhas úmidas na cama, porque a dor nas costelas da garota a impedia de ficar de pé sem gemer. Mas hoje, Kelly insistiu. Ela se sentia suja. "Cheiro de sangue velho e asfalto", ela reclamou, tentando se levantar e falhando com um chiado de dor.
"Eu ajudo," Vanessa disse, mas olhou para mim. Ela não tinha força física para sustentar o peso morto de um corpo adulto, mesmo um tão magro quanto o da Kelly, sem machucá-la.
Entrei no banheiro da suíte. O vapor já embaçava o espelho, carregando o cheiro de sabonete de lavanda caro da Vanessa — um contraste absurdo com a situação de enfermaria clandestina. Vanessa tinha despido Kelly com cuidado. A garota estava sentada na tampa do vaso, nua, encolhida, tentando cobrir a nudez mais por frio do que por vergonha.
Ver Kelly nua novamente, sob a luz clínica do banheiro, foi um choque duplo. Primeiro, pela violência. O hematoma na lateral do quadril era uma mancha roxa, amarela e esverdeada obscena contra a pele pálida. Mas, segundo, e de forma perturbadora, pela beleza que persistia apesar do estrago.
Meus olhos traíram minha moral. Desceram pelas pernas finas, pelo triângulo de pelos escuros que eu tinha conhecido tão intimamente meses atrás, pelos seios pequenos que agora tremiam com o calafrio do ar-condicionado. Senti meu pau endurecer dentro da calça jeans. Uma reação fisiológica estúpida, animal, que misturava a memória do prazer com a adrenalina do momento e a proibição implícita.
Tentei desviar o olhar, envergonhado, mas peguei Vanessa me observando. Ela não estava olhando para o meu rosto. Ela estava olhando fixamente para o volume na minha virilha.
Esperei o ciúme. Esperei o olhar ferido de "como você pode pensar nisso agora?". Mas o que vi nos olhos da minha esposa foi algo muito mais complexo e escuro. Ela mordeu o lábio inferior, as pupilas dilatadas. Havia uma aceitação ali. Uma cumplicidade suja nascida do estresse extremo.
"Pega ela no colo, Júlio," Vanessa sussurrou. A voz dela saiu um tom mais grave que o normal, rouca. "Coloca ela na banheira."
Aproximei-me. Kelly levantou os braços, confiante, como uma criança ou uma amante habitual. Passei um braço pelas costas dela e outro sob os joelhos. A pele dela estava quente, febril. O contato do corpo nu dela contra minha camisa foi elétrico.
Ela encostou a cabeça no meu ombro enquanto eu a levantava. "Oi, herói," ela murmurou, dopada de analgésicos, o hálito quente no meu pescoço arrepiando minha nuca.
Caminhei até a banheira de hidromassagem que Vanessa já tinha enchido. A água estava coberta de espuma. Desci Kelly devagar, cuidando para não pressionar as costelas. Ela suspirou longamente quando a água quente envolveu o corpo dolorido, fechando os olhos em alívio.
Fiquei ali, ajoelhado ao lado da banheira, as mãos molhadas, a respiração curta. Vanessa se ajoelhou do outro lado. Estávamos flanqueando a garota como guardiões pervertidos. Vanessa pegou a esponja e começou a passar nos ombros da Kelly, mas seus olhos estavam fixos em mim.
"Ela é linda, não é?" Vanessa perguntou, baixo o suficiente para não acordar a garota se ela estivesse cochilando, mas alto o suficiente para ser uma provocação deliberada.
Engoli em seco, sentindo o suor frio na testa. "Vanessa..."
"Não precisa mentir, Júlio. Eu vejo como você olha. Eu lembro como você fodeu ela naquela manhã, com raiva, com vontade." Ela mergulhou a esponja na água, passando-a agora pelos seios da Kelly, limpando com uma delicadeza que era quase erótica. O bico do seio da Kelly endureceu com o contato e a temperatura.
Minha ereção pulsou, dolorosa contra o zíper. O cenário era bizarro: minha esposa lavando a amante espancada, enquanto verbalizava o desejo que eu tentava esconder por decência. Era voyeurismo reverso, cuidado misturado com luxúria e culpa.
"Eu sei que você quer," Vanessa continuou, os olhos brilhando com uma febre que não era doença. "Está tudo bem. Eu também... eu sinto coisas estranhas olhando pra ela. É confuso. É como se ela fosse nossa."
Ela levou a mão molhada, cheia de espuma morna, e em vez de tocar na Kelly, esticou o braço por cima da banheira e tocou minha calça. Bem em cima do volume. Apertou com força.
"Vanessa, a garota tá aqui..." sussurrei, chocado, mas sem recuar um milímetro. Meu corpo traía minha mente a cada segundo.
"Ela está quase dormindo. Os remédios derrubaram ela." Vanessa massageou meu pau através do jeans grosso, os dedos ágeis. "Você está duro como uma pedra. Você gosta de cuidar dela, ou gosta de ver ela vulnerável?"
"Eu gosto de você," respondi, a voz falhando, tentando focar na mulher que era minha esposa. "Gosto de ver você cuidando dela."
Vanessa sorriu, um sorriso triste e lascivo. "Isso nos torna pessoas horríveis, Júlio? Ficar com tesão no meio dessa desgraça toda?"
"Acho que nos torna sobreviventes," falei, segurando a mão dela e parando o movimento antes que eu perdesse o controle ali mesmo. "O medo dá tesão. É biológico. É fuga."
Kelly se mexeu na água, gemendo baixo, e Vanessa recolheu a mão rapidamente. Terminamos o banho em silêncio, mas a eletricidade no ar era tão densa que eu podia sentir o gosto metálico dela na boca.
Secamos Kelly, vestimos nela uma camiseta limpa e larga e a colocamos de volta na cama. Ela apagou em segundos, vencida pelo calor do banho e pela medicação.
Saí do quarto, precisando de ar, precisando de distância daquela cama e daquelas mulheres. Fui para a cozinha beber água gelada. Minhas mãos tremiam. Não só pelo desejo reprimido, mas pela estranheza da nova dinâmica. Vanessa não estava apenas aceitando a presença da Kelly; ela estava integrando isso na nossa vida sexual, usando a garota como catalisador para reacender algo primitivo entre nós.
Estava encarando a geladeira quando o telefone fixo tocou.
Aquele aparelho era uma relíquia na parede da cozinha. Ninguém ligava para o fixo. Só telemarketing e cobrança. Mas eram 19h30 da noite de uma sexta-feira.
Olhei para o aparelho bege como se fosse uma bomba relógio. Vanessa apareceu no corredor, os cabelos presos num coque frouxo, a roupa molhada de respingos do banho, o rosto ainda corado da excitação anterior. Ela viu meu olhar fixo no telefone e entendeu. O tesão sumiu do rosto dela, substituído pelo terror.
"Não atende," ela sussurrou.
O telefone tocou de novo. E de novo. Na quarta vez, a secretária eletrônica disparou.
*"Você ligou para esta residência. Não podemos atender no momento. Deixe seu recado após o sinal."* A voz gravada era da Vanessa, de dois anos atrás. Feliz, leve, ignorante do futuro, genérica o suficiente para não dar nome aos bois, mas específica o suficiente para quem sabia onde estava ligando.
Houve um clique. Silêncio e chiado de linha. E então uma voz masculina, calma, polida, com um leve sotaque arrastado que eu não consegui identificar — sulista talvez? Ou apenas pretensioso?
*"Boa noite, Dona Vanessa. Sr. Júlio. Espero que a visita esteja sendo agradável. Ela costuma dar trabalho com a alimentação, é bom ficar de olho, ela perde peso rápido quando está estressada. Ah, e sr. Júlio... trancar o portão da frente e colocar câmeras falsas é inteligente, mas vocês esqueceram a basculante da lavanderia destrancada ontem à noite. Eu poderia ter entrado para dar oi. Mas sou um homem educado. Vamos conversar em breve."*
Clique.
O silêncio que se seguiu foi absoluto, pesado como chumbo. Vanessa estava branca como papel. Eu senti o sangue drenar do rosto, seguido por uma onda de calor furiosa. Ele esteve aqui. No nosso quintal. Testando as janelas enquanto dormíamos exaustos. Enquanto achávamos que estávamos seguros.
"A janela..." Vanessa sussurrou. "Eu abri pra tirar o cheiro de cândida ontem... eu devo ter esquecido de virar a trava... meu Deus, Júlio."
Corremos para a lavanderia. Eu fui na frente, sacando a arma da cintura.
A janelinha basculante da área de serviço estava, de fato, entreaberta. Apenas uma fresta, emperrada no meio do caminho. Mas o suficiente para alguém olhar. No parapeito externo, havia algo que não pertencia ali.
Empurrei a janela com o cano da arma. Havia uma flor. Uma daquelas flores de plástico vagabundas, de coroa de cemitério, roxa e desbotada. E, amarrado nela com um arame fino, um bilhete escrito à mão em papel de caderno pautado: *"O juro corre."*
Fechei a janela com força e girei a trava até o final, checando duas vezes. Virei-me para Vanessa. Ela estava encostada na máquina de lavar, respirando rápido, o peito subindo e descendo em espasmos, à beira de um ataque de pânico.
"Ele sabe," ela disse, a voz estrangulada, lágrimas brotando. "Ele sabe que ela está aqui. Ele sabe nossos nomes. Ele esteve a um vidro de distância da gente."
"Ele está brincando com a gente," falei, tentando soar mais calmo do que estava, guardando a arma mas mantendo a mão nela. "Se ele quisesse invadir, tinha invadido ontem. Ele quer terror psicológico. Quer que a gente entregue ela por medo, sem ele precisar disparar um tiro."
"Eu não vou entregar," Vanessa disse, e houve um brilho de aço nos olhos dela que me surpreendeu. "Não vou. Nem que ele quebre todas as janelas."
Ela se aproximou de mim. O medo estava lá, vibrando nela, mas havia outra coisa misturada. Aquela mesma energia volátil que vi no banheiro. A adrenalina de presa encurralada que decide morder em vez de correr.
Ela colocou as mãos no meu peito, sobre a camisa, sentindo meu coração batendo a mil por hora contra a palma dela.
"Estou com medo, Júlio," ela confessou, colando o corpo no meu.
"Eu também."
"Me faz esquecer," ela pediu. Não foi um pedido romântico. Foi uma ordem desesperada, visceral. "Agora. Me fode. Me fode pra eu esquecer que tem um monstro lá fora. Me fode pra eu lembrar que eu ainda estou viva."
Ela não esperou resposta. Beijou-me com violência, mordendo meu lábio inferior até eu sentir gosto de ferro. As mãos dela desceram para o meu cinto, desajeitadas, urgentes, abrindo a fivela com um estalo metálico.
Ali mesmo, na lavanderia, encostada na máquina de lavar fria, sob a luz fluorescente branca que zumbia como moscas, o medo virou combustível. Baixei a calça dela, o tecido rasgando levemente na costura porque a paciência não existia mais. Ela não usava calcinha — talvez tivesse tirado depois do banho da Kelly, talvez fosse premeditado.
Ela pulou no meu colo, envolvendo as pernas na minha cintura, e eu entrei nela com uma estocada única, brutal, funda. Ela abafou um grito no meu ombro, cravando os dentes na minha camisa.
Não houve preliminares. Não houve carinho. Foi sexo de trincheira. O som da pele batendo contra pele, a respiração ofegante, o ranger rítmico da máquina de lavar saindo do lugar com o impacto dos nossos corpos. Eu a fodia com raiva — raiva do Marco, raiva da minha própria negligência com a janela, raiva do mundo — e ela recebia tudo, arranhando minhas costas, pedindo mais, xingando baixo.
"Minha," eu rosnei no ouvido dela, marcando território contra a ameaça invisível lá fora, possessivo como nunca fui. "Você é minha. Ninguém toca em você."
"Sua," ela gemeu, a cabeça jogada para trás, o pescoço exposto e vulnerável. "Só sua. Sempre sua. Me protege, Júlio. Me usa e me protege."
Explodimos juntos, num orgasmo que foi mais alívio de tensão e descarga elétrica do que prazer convencional. Ficamos ali por um minuto, ofegantes, suados, colados um no outro no silêncio da lavanderia, enquanto a flor de plástico do lado de fora balançava no vento noturno.
Quando nos separamos, arrumando as roupas de qualquer jeito, o clima tinha mudado. O pânico paralisante tinha dado lugar a uma clareza fria e assassina. O sexo tinha queimado o excesso de ansiedade e deixado apenas o foco.
Fomos para a cozinha. Vanessa prendeu o cabelo de novo, as mãos agora firmes, secando o suor da testa. Eu coloquei a arma sobre a mesa de vidro e peguei meu celular.
"Chega de esperar," falei, a voz dura. "Se ele sabe quem somos, eu preciso saber quem ele é. E onde ele dorme."
"Como?" Vanessa perguntou, servindo um copo de água e bebendo de um gole só.
"Kelly mencionou nomes. Lugares. O posto na Dutra. O motel com neon rosa. Eu tenho aquele contato que usei pra investigar os antecedentes do Tomás na época da fusão da empresa, lembra? O detetive particular, o Rocha. Eu paguei caro pra ele ser discreto naquela época, e ele me deve favores."
"Ele é caro," Vanessa lembrou, prática.
"O juro corre," citei o bilhete com nojo. "Caro é esperar ele voltar."
Liguei para o Rocha. Ele atendeu no terceiro toque, voz rouca de quem fuma três maços por dia e dorme pouco. Expliquei o básico, omitindo nomes, mas sendo claro na gravidade: preciso de tudo sobre um cafetão chamado Marco que opera na região da Dutra. Tenho uma garota fugida dele. Ele ameaçou minha casa. Deixou recado.
"Marco 'Dente de Ouro'?" Rocha perguntou do outro lado da linha, e o tom de reconhecimento cansado na voz dele não foi reconfortante. "Rapaz... você arrumou sarna pra se coçar. Esse cara não é só cafetão de beira de estrada. Ele roda carga roubada, tem esquema com polícia rodoviária corrupta. Ele se acha intocável naquela região."
"Ele é intocável?" perguntei, olhando para minha esposa.
"Ninguém é intocável se você souber onde apertar. Mas ele é perigoso. Quanto a garota deve?"
"Não sei o valor exato. Ela disse que é impagável. Que é sobre posse."
"Tudo é pagável se a moeda for certa," Rocha disse enigmaticamente. "Vou levantar a ficha dele. Endereço, rotina, onde ele guarda o dinheiro, quem ele teme. Mas Júlio... se prepare. Esse tipo de gente não aceita perder mercadoria. É questão de honra distorcida pra eles. Se ele foi na sua casa, ele já cruzou a linha."
Desliguei. Vanessa me olhava, esperando, os olhos secos e atentos.
"E aí?"
"O nome dele é Marco. E ele é grande. Mas não é fantasma. Ele sangra." Olhei para o bilhete de papel barato em cima da mesa. "Ele cometeu um erro."
"Qual?"
"Ele achou que a gente ia se encolher de medo. Ele ameaçou minha casa. Minha mulher." Olhei para o corredor escuro onde Kelly dormia. "E a nossa hóspede."
Vanessa segurou minha mão sobre a mesa, apertando forte, as unhas marcando minha pele. "Nossa hóspede," ela corrigiu, solidária. "Nossa responsabilidade."
Naquela noite, revezamos a vigília. Vanessa ficou com a primeira parte, sentada na sala com todas as luzes apagadas, observando a rua pela fresta da cortina, uma xícara de café frio na mão. Eu deitei vestido, com a arma debaixo do travesseiro, tentando descansar os olhos, mas ouvindo cada estalo da madeira da casa.
A casa estava silenciosa, mas não era mais um silêncio de medo passivo. Era o silêncio de uma armadilha armada, esperando para disparar. A lavanderia ainda cheirava a sexo e suor, um lembrete visceral de que estávamos vivos e de que, se Marco quisesse entrar, ele teria que passar por cima de muito mais do que apenas trancas e alarmes. Ele teria que passar por um casal que tinha acabado de descobrir, da pior forma possível, que não tinha mais nada a perder além um do outro. E isso nos tornava muito mais perigosos do que ele imaginava.
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Continua?
>> E aí pessoal, oq estão achando?