Foi só um Boquete - Capítulo 3

Um conto erótico de Gil
Categoria: Heterossexual
Contém 2263 palavras
Data: 21/12/2025 17:58:54

Capítulo 03: O Preço da Fantasia

As semanas que se seguiram à partida da Kelly foram, superficialmente, as melhores da minha vida conjugal. Se existisse um prêmio para "Esposa em Reabilitação", Vanessa teria levado o ouro, a prata e o bronze. A casa estava sempre impecável, minhas camisas pareciam engomadas por profissionais, e a nossa vida sexual... bem, digamos que a minha esposa parecia determinada a apagar a memória tátil de qualquer outra boca que já tivesse me tocado usando a própria língua como borracha.

Ela acordava antes de mim para me chupar. Ela me recebia do trabalho de joelhos. Ela engolia tudo, sempre, com um sorriso que misturava devoção e um pânico sutil.

Mas a verossimilhança daquela perfeição era fina como papel de seda.

Eu dizia que tinha perdoado. Eu repetia para mim mesmo que tínhamos superado. Mas a confiança é um animal teimoso; uma vez que foge, não volta só porque você deixou a porta aberta e colocou comida no pote.

Enquanto Vanessa dormia, exausta de tanto tentar ser perfeita, eu me via transformado no tipo de marido que sempre desprezei. Eu pegava o celular dela com mãos que tremiam levemente. Eu revirava o histórico de chamadas, conferia os tempos de conexão do WhatsApp, analisava as faturas do cartão de crédito procurando gastos não explicados em motéis ou bares. Eu procurava o fantasma da Alice em cada notificação.

Eu nunca encontrava nada. O bloqueio continuava lá. As mensagens eram banais. A rotina dela era: casa, trabalho, academia, eu. E, ironicamente, essa transparência absoluta me deixava mais doente. A falta de provas parecia, na minha cabeça quebrada, apenas prova de que ela tinha ficado *melhor* em esconder. O perdão "rápido" do qual eu me gabava no começo agora cobrava seu preço em noites mal dormidas e paranoia silenciosa.

E havia o fantasma da Kelly.

A presença dela naquela semana tinha agido como uma droga estabilizadora no nosso caos, mas a abstinência bateu forte depois que ela se foi. Vanessa falava dela com uma frequência que beirava o obsessivo. "Será que a Kelly está comendo direito?", ela perguntava enquanto servia o jantar. "Vi um vestido na vitrine que ficaria lindo nela", comentava no shopping. Era uma mistura bizarra de gratidão, culpa e uma saudade que eu não conseguia decifrar completamente. Eu também pensava nela. Não na "ajudante terapêutica", mas na garota quebrada que tinha a boca mais honesta que eu já conheci.

A bolha de normalidade estourou numa terça-feira chuvosa de novembro, quase três meses depois do nosso Natal desastroso.

Estávamos jantando. Um risoto que a Vanessa tinha passado duas horas preparando. O celular dela, sempre virado para cima na mesa como um totem de honestidade, vibrou e acendeu. Número desconhecido.

Vanessa congelou com o garfo a meio caminho da boca. Ela olhou para mim, os olhos arregalados de medo. O medo de que eu achasse que era "ele". Ou "eles".

"Atende," eu disse, minha voz saindo mais dura do que eu pretendia. "No viva-voz."

Ela tocou na tela com o dedo trêmulo.

"Alô?"

Houve um silêncio do outro lado, preenchido apenas por um som estático e o barulho distante de tráfego pesado e chuva.

"Vanessa?"

A voz era um sussurro rouco, quebrado, quase irreconhecível. Mas nós dois reconhecemos.

"Kelly?" Vanessa largou o talher. O barulho do metal contra a porcelana soou como um tiro na sala de jantar silenciosa.

"Eu... eu não devia ligar. Desculpa. Eu perdi o papel com o número do Júlio... molhou tudo... só lembrava o seu porque é fácil..." A voz dela falhou, sumindo num engasgo molhado que gelou meu sangue.

Eu me levantei, a cadeira raspando no chão, e me debrucei sobre a mesa. "Kelly? Sou eu, o Júlio. O que aconteceu? Onde você está?"

"Júlio? Eles... eles me acharam. O Marco me achou. Eu tentei... eu juro que tentei pagar, mas os juros..." Ela começou a chorar, um som agudo de dor pura. "Eu tô sangrando, Júlio. Acho que ele quebrou alguma coisa dentro de mim."

A máscara de "esposa perfeita" da Vanessa caiu na hora. Não houve cálculo, não houve olhar de permissão para o marido corno. Houve apenas reação humana.

"Onde você está, Kelly? Fale agora!" Vanessa gritou, já se levantando.

"Num posto... saída 14 da Dutra. Perto daquele motel com neon rosa. Eu tô atrás da borracharia."

"Fica aí. Não desliga. Estamos indo. Aguenta firme."

Vanessa já estava correndo para a sala, pegando a chave do carro e a bolsa. Eu a alcancei na porta.

"Eu dirijo," falei, tirando a chave da mão dela. Ela não discutiu. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas não eram lágrimas de autopiedade dessa vez.

O trajeto foi um borrão de limpadores de para-brisa lutando contra a tempestade e semáforos furados. O silêncio dentro do carro era pesado, elétrico. Não havia espaço para discutir nosso casamento, nossas mágoas ou minha desconfiança. A realidade tinha chutado a porta do nosso teatrinho doméstico.

Encontramos o posto. Era um lugar lúgubre, mal iluminado, frequentado por caminhoneiros e sombras. Parei o carro perto da borracharia fechada.

Kelly estava lá. Ou o que restava dela.

Ela estava sentada no chão oleoso, encolhida contra uma pilha de pneus velhos, abraçando os joelhos como se tentasse se fazer desaparecer. A chuva caía sobre ela, encharcando o vestido barato — o mesmo vestido azul que a Vanessa tinha comprado para ela meses atrás, agora uma trapo sujo e rasgado.

Vanessa saltou do carro antes mesmo de eu puxar o freio de mão. Ela correu pela chuva e se jogou de joelhos na lama ao lado da garota.

"Meu Deus... meu Deus, Kelly..."

Eu me aproximei devagar, sentindo meu estômago revirar. O farol do carro iluminava a cena como num filme de terror barato. O rosto da Kelly estava inchado, o olho esquerdo completamente fechado por um hematoma roxo-escuro. O lábio estava partido. Mas o pior era o jeito como ela segurava as costelas e a mancha escura que se espalhava pela coxa do vestido.

Ela levantou o rosto para a luz. Tentou sorrir ao me ver, mas saiu uma careta de dor que me assombrou por meses.

"Oi, amante," ela sussurrou, a voz pastosa. "Desculpa estragar o jantar em família."

"Cala a boca," falei, a voz embargada. "Vamos tirar você daqui."

Eu me abaixei e a peguei no colo. Ela pesava menos do que eu lembrava. Era como carregar um passarinho quebrado. Ela gemeu quando a levantei, um som agudo que fez a Vanessa soluçar.

Colocamos ela no banco de trás. Vanessa entrou junto, puxando a cabeça da Kelly para o colo dela, sujando sua roupa de grife de sangue, óleo e chuva sem pensar duas vezes.

"Hospital," falei, engatando a marcha. "O Santa Helena é o mais perto."

"Não!" Kelly se agitou, tossindo. "Hospital não. Polícia não. O Marco... ele tem gente lá. Ele disse que se eu fosse pra polícia ou médico, ele terminava o serviço. Por favor, Júlio. Por favor. Só me leva pra um lugar seguro."

Olhei pelo retrovisor. O pânico no olho bom dela era visceral. Não era paranoia. Era a certeza de quem conhece o monstro debaixo da cama.

"Não podemos arriscar, ela precisa de um médico, Vanessa," argumentei.

"Eu sei costurar," Vanessa disse de repente, a voz firme, embora as mãos tremessem. "Eu fiz aquele curso de primeiros socorros avançado ano passado, lembra? Temos o kit em casa. Antibióticos da minha cirurgia. Analgésicos fortes." Ela olhou para mim pelo espelho. "Se levarmos ela pro hospital e alguém aparecer... a gente não pode proteger ela lá. Em casa a gente pode."

Era uma loucura. Era irresponsável. Mas olhando para o terror nos olhos da Kelly, eu soube que não tinha escolha.

"Vamos pra casa," decidi, pisando fundo.

A meia hora seguinte foi uma operação de guerra. Entramos pela garagem para não sermos vistos pelos vizinhos. Carreguei Kelly direto para a suíte principal — o quarto de hóspedes parecia frio e distante demais para aquela emergência.

Colocamos ela na nossa cama. A mesma cama onde tudo começou. Onde a traição aconteceu, onde a vingança foi executada. Agora, aquele colchão recebia o sangue da vítima real da história.

Vanessa assumiu o comando de um jeito que eu nunca tinha visto. Ela cortou as roupas sujas da Kelly com uma tesoura, expondo o mapa de violência no corpo da garota. Hematomas antigos e novos. Cortes. Marcas de cigarro.

Eu fiquei encarregado de buscar água morna, toalhas, remédios. Eu era o assistente da minha esposa adúltera enquanto ela tentava salvar a vida da prostituta que eu comi por vingança. A ironia da situação era tão densa que eu podia senti-la no ar.

Depois de limpa, medicada e com os cortes superficiais tratados, Kelly parecia um pouco mais humana, embora pálida como um fantasma. Ela estava recostada nos travesseiros de seda da Vanessa, vestindo uma camiseta minha que ficava gigante nela.

"Quem é Marco?" perguntei. Estava de pé no pé da cama, braços cruzados, tentando controlar a raiva assassina que crescia em mim.

Kelly segurava um copo de água com as duas mãos para controlar o tremor.

"Meu cafetão. Meu 'namorado'. O dono da minha dívida." Ela tomou um gole, estremecendo. "Vocês acharam que eu estava na rua por quê? Por aventura? Porque eu gostava de chupar pau de estranho em carro estacionado?"

Ela olhou para a Vanessa, e seu olhar não tinha piedade.

"Você brincou de ser puta, Vanessa. Naquele Natal. Naquele churrasco. Você achou excitante. O perigo, a adrenalina de ser pega, o gosto do proibido. Mas você tinha essa casa pra voltar. Você tinha segurança, dinheiro, um marido que — por algum milagre estúpido — não te chutou pra fora."

Vanessa estava sentada na beira da cama, segurando a mão livre da Kelly. Ela abaixou a cabeça, as lágrimas caindo silenciosas no lençol.

"Mas isso aqui..." Kelly tocou o próprio rosto inchado. "Isso é a vida real de uma puta, Vanessa. Não é glamour. Não é empoderamento. É ser propriedade de alguém que te vê como um caixa eletrônico com buracos. Eu tentei sair. Com o dinheiro que vocês me deram. Paguei uma parte. Achei que ele ia me deixar em paz."

Ela riu, um som seco e quebrado. "Mas a dívida nunca acaba. Os juros do Marco são calculados em sangue."

Foi naquele momento que eu vi a mudança real na Vanessa. A ficha caiu com o peso de uma bigorna. Não a ficha do "medo de ser divorciada". Não a ficha social. Mas a ficha moral.

Ela percebeu, olhando para aquela garota destruída na nossa cama de luxo, o tamanho da obscenidade que foi a traição dela. A futilidade. A arrogância de brincar com sexualidade destrutiva quando ela tinha tudo.

Vanessa desmoronou. Ela enterrou o rosto no colchão, ao lado da perna da Kelly, e chorou. Um choro feio, gutural, de quem está vomitando a própria alma.

"Eu sinto tanto..." ela soluçou, a voz abafada. "Eu sou um lixo. Eu sou tão fútil, tão pequena. Eu quase destruí a gente por nada. Por vaidade. Por um capricho nojento."

Kelly ficou parada por um momento. Então, com um esforço visível, esticou a mão machucada e tocou o cabelo da Vanessa. Um gesto de absolvição que a minha esposa definitivamente não merecia, mas que precisava desesperadamente.

"Você não é um lixo," Kelly disse, a voz fraca. "Você é só... protegida. E burra. Muito burra." Ela deu um meio sorriso triste. "Mas parece que você aprende rápido quando a vida bate."

Eu olhei para as duas. A esposa e a amante. A "santa" caída e a "pecadora" mártir. Os papéis estavam tão misturados que eu não sabia mais quem salvar e quem condenar.

"Você fica aqui," falei. Minha voz saiu rouca, mas definitiva. "Ninguém toca em você aqui dentro."

Kelly me olhou, os olhos grandes e assustados. "Eles são perigosos, Júlio. O Marco não brinca."

"Eu também não estou brincando," respondi, sentindo uma frieza letal tomar conta de mim. "Tenho um sistema de segurança monitorado. Tenho uma arma no cofre que eu nunca contei pra Vanessa que tinha. E tenho advogados e amigos na polícia que me devem favores. Você fica."

Kelly olhou para a Vanessa. "Tudo bem pra você? Ter a puta quebrada morando na sua casa de boneca?"

Vanessa levantou a cabeça. O rosto estava manchado, a maquiagem borrada, os olhos inchados. Mas havia uma clareza ali que eu não via há anos.

"Essa é sua casa agora," Vanessa disse, apertando a mão da Kelly. "Você não sai daqui até estar curada. E não sai dessa vida até a gente resolver isso. Custe o que custar. Eu prometo."

Dessa vez, quando ela disse "eu prometo", meu instinto cínico de checar se era mentira não disparou. Porque dessa vez, a promessa não era para salvar a própria pele. Era para salvar outra pessoa. Era um sacrifício, não uma negociação.

Naquela noite, ninguém dormiu nos outros quartos.

Kelly adormeceu no meio da nossa cama, vencida pelos remédios e pela exaustão. Vanessa se recusou a sair do lado dela, deitando-se encolhida na ponta, segurando a mão da garota como se fosse um elo vital.

Eu fiquei acordado. Sentei na poltrona do canto, no escuro, com a minha pistola .38 no colo, olhando para a porta.

A redenção fácil e o "felizes para sempre" de antes tinham sido uma miragem, uma mentira confortável que contamos para dormir melhor. A verdadeira reconstrução começava agora. Não com sexo de reconciliação ou compras no shopping, mas com sangue, ameaças de morte e a responsabilidade pesada de proteger alguém que o mundo jogou fora.

Agora sim, pela primeira vez em meses, meu casamento parecia real. Quebrado, sujo, perigoso e doloroso. Mas real.

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Comentários

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Cara, parabéns . Os dois primeiros capitulos achei divertidos , tanto pelo texto como pela burrice da Vanessa. Mas derepente muda tudo... pena que foi curto adoro textos longos bem escritos; abs

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Foi estranha a reação da Vanessa quando o número desconhecido apareceu no seu celular. Eu ainda acho que ela está aprontando, mas agora escondendo melhor. E essa necessidade dela de ajudar a Kelly parece ser uma forma de compensar as traições que provavelmente continua fazendo.

Ainda acho que o nosso protagonista vai acabar se divorciando da Vanessa e terminando com a Kelly. Essa questão da confiança, que ele citou, é algo que nunca será completamente resolvido. Essa é clássica em relacionamento onde o(a) corno(a) perdia.

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