Joyce acordou. Se eram horas ou dias, não tinha ideia. Sua cabeça estava enfaixada de forma grosseira e doía.
Quando conseguiu pôr o raciocínio em ordem, viu que estava na ala médica. Sentia-se limpa. Pelo menos a equipe médica teve esse cuidado.
Ela não percebeu um homem se aproximando de sua cama e sentando-se ao seu lado:
— Boa tarde. — Ele disse em uma voz calma e baixa. — Se sente melhor?
Joyce só conseguiu responder com um aceno de cabeça. O movimento fez sua cabeça doer, e Joyce fez uma careta de dor:
— Calma. Pode ir com cuidado. — O homem disse ainda em tom calmo. — Primeiro, meu nome é Ricardo. Ricardo Palhares. Sou do Ministério Público. Eu estou aqui por conta da denúncia de violência que você sofreu.
Joyce observava e ouvia com calma. Não tinha certeza de que podia confiar nele, mas pelo menos iria prestar atenção:
— Primeiro, eu gostaria que você pudesse descrever o que houve na noite passada. Com isso, vamos abrir uma investigação. Em segundo lugar, foi tomada uma decisão em caráter de emergência. Você será transferida para outra penitenciária.
— Como assim transferida? — Joyce se assustou.
— A sua permanência aqui é um risco para a sua vida. — Ricardo explicou. — Eu já vi seu caso, e também as diversas vezes que você se colocou como inocente. Minha função não é te julgar, e sim garantir a sua segurança e integridade. Por isso, o Estado tomou a decisão de te tirar daqui.
Joyce não sabia se ficava feliz ou não. Não era a liberdade, mas talvez teria uma possibilidade de algo melhor:
— Então eu só preciso contar o que houve?
— Sim. Não se preocupe. Essa parte será feita apenas por mulheres. — Ricardo fez uma pausa e olhou fixamente para Joyce. — Além disso, você será transferida para uma cela segura de forma provisória. Só até a papelada ficar pronta.
— E quanto tempo leva?
— Pela gravidade do seu caso, três dias no máximo. Antes do fim da semana, você estará longe daqui.
— E os meus pais?
— Seus pais serão avisados. Não há nada com o que se preocupar nesse ponto.
Um gesto desse foi o bastante para trazer lágrimas ao rosto da jovem. Ela agradeceu e seguiu prontificou a fazer sua parte.
No fim do dia, Joyce foi encaminhada para uma cela própria, isolada do resto das detentas. Não havia sequelas, por exceção de um hematoma grande e feio que ainda doía. Mesmo com o lugar fedendo a mofo e desinfetante, o colchão era um pouco mais confortável.
Nesses dias, Joyce fez as refeições na cela e tomava os banhos de sol em um horário separado. Ajudou como pôde, descrevendo o ataque e a aparência da sua agressora. Como prometido por Ricardo, havia apenas uma psicóloga e duas agentes femininas.
Na hora do recolhimento, recebeu instruções de forma discreta. Seria retirada de lá para tomar banho em outro lugar. Depois deveria se vestir e aguardar. A transferência seria feita em poucas horas. Dessa vez, sentiu uma certa empatia na fala da agente.
Como o combinado, Joyce foi levada para um banheiro privativo. Para a sua surpresa, havia água quente! Um luxo que mudou e muito o seu humor.
Deixou a água cair por um tempo. Lembrou como era bom a água quente no corpo, principalmente os seios e as pernas compridas.
Após o banho, sentiu falta de um espelho. Era vaidosa e tinha um corpo bonito. Mesmo imaginando seu corpo em um estado feio por conta do desgaste físico e mental, ainda queria se ver.
Por fim, se vestiu e aguardou em uma sala da administração. A van de transporte chegou e foi preparada para a viagem. Joyce viu seus poucos pertences serem colocados lá dentro, e pouco tempo depois, ela própria embarcou. Não olhou para trás nenhuma vez.
Pela estimativa, a viagem deve ter durado umas duas horas. Junto dela, alguns poucos homens e mulheres faziam a segurança. Joyce percebeu que uma das agentes, uma mulher loira com rosto bonito e sério, além de um corpo forte, olhava para ela com frequência.
A van chegou de madrugada. Sua chegada foi feita sem alarde, sendo levada para uma cela separada de imediato. Toda a rotina inicial dos dois meses teve que ser reiniciada, visando a adequação e um encaixe no ecossistema.
Na primeira manhã, a mesma agente que não tirava os olhos dela no caminho até lá veio lhe dar o panorama geral e as instruções da penitenciária. Ao contrário das outras mulheres, ela mostrava mais compreensão e empatia. No final das instruções, Joyce pediu permissão para fazer uma pergunta. Com a permissão concedida, veio o questionamento:
— Acho que você sabe porque eu vim parar aqui. Eu estou segura mesmo?
A agente ouviu com atenção a pergunta e respondeu com calma e um tom de voz confortante:
— Esse é um lugar chamado de “Paraíso no meio do Inferno”. Você está segura. Os famosos vêm para cá.
— Os famosos?
— Sim. Sem querer ofender, mas pessoas que cometeram crimes que ganharam destaque na mídia vêm parar aqui.
Joyce então se lembrou. Havia um presídio que era frequentemente chamado de “Presídio dos Famosos” ou “Presídio de Caras”, e ela foi parar lá. Se isso era bom ou não, só o tempo diria.
Se havia uma vantagem na nova penitenciária, era que a comida era melhor. Tudo vinha de dentro da fazenda dentro da própria instituição e realmente era muito boa.
Em um dia, uma agente bateu na cela de Joyce com algo que ela não esperava:
— Você tem visita.
Joyce sabia mais ou menos como as coisas funcionavam, mas não esperava uma visita. Ela foi levada para uma sala fechada, onde recebeu as instruções; apenas um abraço no começo e no fim. Outras interações não eram permitidas, e a visita seria monitorada, mas ninguém ouviria a conversa.
Ela então sentou-se em uma mesa, esperando quem viria. A porta se abriu e o coração se aqueceu com a visão do namorado, Rayan.
Seguindo as instruções, o abraço foi rápido, e logo se sentaram. Joyce deu uma boa olhada no namorado enquanto se desfazia em lágrimas. Rayan era um rapaz da mesma idade de Joyce. Cabelos pretos curtos e arrepiados com gel, pele morena e olhos castanhos. Enquanto fazia um curso profissionalizante, conseguia tirar um bom dinheiro com entregas. Tinha o sonho de abrir um negócio próprio com a namorada:
— Como estão os meus pais? — Era a única pergunta que Joyce podia fazer no momento.
— Eles estão bem. — Ele respondeu com um tom confortante. — Como nessa primeira vez só pode uma pessoa, eles me pediram para vir. Eles sabem que você é inocente.
Joyce ouviu enxugando as lágrimas. Seu medo maior era os pais. Os dois já eram idosos e ela sempre pensava na vergonha que ela dava para eles. Ouvir isso do namorado era um alívio, mesmo que temporário:
— E você amor, com você está?
Joyce pensou em silêncio. Seria ruim falar dos olhares de raiva, do isolamento, do ócio, mas não queria lembrar do abuso e daquela filha da puta de novo. Ela apenas mostrou o que ainda restava do hematoma:
— Meu Deus!?
— Ninguém gosta de crimes com criança e mulher. Por isso eu vim para cá. — Joyce abaixou a cabeça. — Não quero falar disso.
A conversa seguiu em um tom pesado sobre a situação de Joyce. Ela falou das noites mal dormidas, os banhos gelados e o início difícil antes da transferência. Rayan falou bastante sobre como estava o mundo lá fora, os amigos e os parentes. Joyce sentiu aquele quentinho no coração ao ouvir as palavras do namorado.
Com o rumo da conversa, Rayan precisou perguntar:
— Sério que tem muito preso famoso aqui?
Joyce achou melhor segurar a risada e respondeu com um sorriso:
— Na ala feminina não. Aquelas mais conhecidas já saíram. Acho que na ala masculina tem alguns.
O horário acabou logo. O abraço foi restrito, mas o bastante para os dois. Joyce disse que ia continuar escrevendo.
Joyce continuou em uma cela separada. O local parecia mais estruturado e calmo. Uma pequena mudança muito bem vinda.
Os pais começaram a vir para as visitas. No início, Joyce tinha muita vergonha de recebê-los em meio a outras detentas, mas o amor dos dois quebrava esses sentimentos negativos. Lauro e Dalva, seus pais, mostravam que não iriam abandonar a filha.
A pergunta inevitável veio. O pai perguntou se ela já havia visto alguma detenta conhecida. Dona Dalva deu uma bronca no marido, e Joyce respondeu que não estavam mais na penitenciária. Ele ainda perguntou se um jogador de futebol famoso estava lá. Joyce riu um pouco da pergunta e respondeu com calma:
— Na ala masculina. E as alas não se misturam.
O clima ficou mais leve. A despedida foi com lágrimas. Joyce se sentiu melhor com a visita dos pais.
Porém, uma coisa lhe incomodava. Sua inocência. Isso estava indo muito devagar. Até um certo dia, onde Joyce foi chamada para uma conversa. Enquanto esperava em uma sala privativa, a mesma agente loira das outras vezes entrou e sentou-se na cadeira à frente:
— Boa tarde. — O tom foi contido e amigável. — Joyce, vamos direto ao assunto. Eu… tenho uma proposta para te fazer, e eu peço para você me ouvir até o fim.
A fala fez Joyce tremer. Na sua posição, ela tinha muito mais para dar do que receber. O que ela teria que dar era o que lhe assustava, ainda mais considerando o que aconteceu na outra penitenciária:
— Primeiro de tudo, meu nome é Thaís. Você já sabe que eu faço a segurança aqui… e sendo honesta, eu gosto de você. Por isso eu proponho um trato.
Joyce já imaginava onde isso iria acabar. Mas sabendo que ela era o lado fraco da história, resolveu ouvir. Talvez viesse algo bom:
— Eu sei que é errado, e por isso vamos direto ao ponto. Eu te consigo alguns privilégios aqui e vez ou outra você passa a noite comigo.
Era bem previsível, mas Joyce continuou a ouvir. Deveria ser prática e se focar nos privilégios. Quaisquer que fossem.
— Que privilégios?
— Uma cela melhor, e só sua. Vai ter uma cama boa, um lugar que não tem cheiro de mofo e desinfetante, e um banheiro de verdade, com vaso sanitário, chuveiro e água quente. Nada de buracos na parede e no chão.
Isso sim era uma vantagem. Os banhos eram feitos por um buraco na parede por onde a água gelada saía. Nos dias frios era impossível ficar debaixo d'água. Havia histórias de detentos que tomavam banho apenas por insistência dos colegas de cela, podendo passar semanas longe do chuveiro:
— Além disso, posso conseguir algumas coisas boas na cozinha que as detentas não têm acesso, e talvez algumas coisas relacionadas ao seu caso.
“E talvez algumas coisas relacionadas ao seu caso”. Tudo que Joyce queria. E só precisaria transar com Thaís? Parecia razoável:
— Tudo isso por sexo? — Joyce perguntou, ainda mantendo o tom calmo.
— Se você não quiser, não. — Thaís foi enfática nesse ponto. — Joyce. Eu conheço o seu caso. Fiquei sabendo do que aconteceu no outro presídio. Por isso mesmo, não vou te obrigar a fazer nada. Eu gosto de mulher, e gosto de você. Vou respeitar você e suas decisões.
Thaís mostrou que falava sério. Joyce pesou tudo e já deu sua resposta:
— Tudo bem eu aceito. Quando isso tudo começa?
— Preciso de algumas horas, e você vai para a sua cela nova ainda hoje. — Thaís respondeu. — E na semana que vem, eu vou te visitar. Para dar certo, eu preciso trocar o meu turno para o da noite.
Com tudo certo, as duas saíram da sala. A troca de olhares foi a única confirmação do acordo das duas.
Apesar de ter o reconhecimento de outras detentas por conta do seu trabalho na Padaria Artesanal, Joyce ainda passava os banhos de sol isolada de outras presas. Já havia se acostumado e não ligava mais. O olhar de julgamento ainda doía muito. Ela costumava usar esse tempo para se exercitar. Apesar de ser magra, sentia o corpo pedindo por pelo menos uma caminhada.
Também olhava muito para o céu, lembrando-se da liberdade que parecia algo tão banal.
No recolhimento, Thaís veio para levá-la até a nova cela. Ela cumpriu sua promessa; o lugar parecia mais um quarto do que uma cela. Tudo estava lá. Vaso, banheiro, inclusive alguns objetos pessoais, como escova de dentes e de cabelos.
— Minha parte eu fiz. Daqui uns dias eu apareço durante a noite. — Thaís disse indo em direção à porta.
— Espera. — Joyce foi até Thaís. — Só uma coisa. Me dá um abraço?
Era o que Joyce mais sentia falta. Contato humano. Calor. Uma coisa que ela não tinha há três anos:
— Você vai voltar? — Joyce perguntou.
— Sim. O quanto antes.
Mesmo com o som da porta se fechando, Joyce não se sentia mal ou assustada. Sentia que agora as coisas iriam tomar um rumo favorável. Thaís estava se mostrando ser uma pessoa de palavra.
Aquela noite foi a melhor que já passou na cadeia. Uma cama confortável e um quarto limpo fizeram maravilhas em seu sono e humor.
Certa noite, um barulho na porta chamou a atenção. Era Thaís. Como prometido, ela trouxe algumas coisas da cozinha. Alguns doces e sucos para as duas.
Dessa vez, Joyce não se assustou. Parecia feliz por ter a mulher que poderia ser a mudança da sua vida ao seu lado. Ela se levantou e pediu um outro abraço:
— Quantos você quiser. — Thaís disse em voz baixa, recebendo um abraço apertado como resposta. Joyce sentou-se na cama, chamando Thaís para o seu lado. Ela aceitou, fazendo um pedido antes:
— Posso tirar meu uniforme? Ele está me incomodando.
Ela recebeu um “sim” e começou a tirar o uniforme. Por baixo das roupas, Thaís tinha um corpo forte e bonito com seios grandes. Um pouco exagerados, mas ainda bonitos. Ela ficou apenas de camiseta e calcinha, fazendo Joyce ficar admirada:
— Só um minuto. — Joyce pediu licença e fez o mesmo. O contraste era bem evidente. Thaís era gostosa e Joyce era mais magra e delicada. Ainda tinha um corpo bonito e ver sua protetora ficar tão à vontade dessa forma lhe deu coragem de fazer o mesmo.
As duas sentaram na cama e começaram a conversar. Joyce se sentiu confortável para desabafar tudo: a vida na cadeia, o que houve antes da transferência, a saudade dos pais e do namorado, entre tantas outras questões. Thais ouvia tudo com atenção e sentia a dor dela em cada palavra. Joyce aproveitou para fazer a pergunta que mais queria no momento:
— Você pode mesmo me ajudar com o meu caso?
— Olha, eu conheço pessoas. — Thaís começou a falar. — E essas pessoas conhecem pessoas. Se você me contar o que aconteceu de verdade, eu garanto que passo as informações para quem puder ajudar. Tudo bem?
Joyce olhou com lágrimas nos olhos e abraçou Thaís novamente. Talvez a luz no fim do túnel estivesse chegando. Ela deixou a comida de lado e se deitou na cama, fazendo um convite irrecusável:
— Deita comigo? Eu te conto tudo.
