Durante aquela madrugada acordei com seu peso sobre meu peito, mas de forma nenhuma aquilo era incômodo. Pelo contrário, eu gostava muito da sensação. Não sei explicar até hoje, mas o contato físico com ele, por si só, me trás o conforto do lar que eu nunca tive – e eu não me canso nunca em dar ênfase nisso. Aliás, hoje eu sei que o seu abraço acabou se transformando nesse lar que me faltou durante toda a vida.
Eu costumava pensar que, depois dele, tudo era pequeno demais ou cinza demais para mim e não me cabia. Ao seu lado, eu pude perceber o quanto tudo era imenso e belo, que a vida valia sim a pena de ser vivida. Eu tinha muito medo desses começos violentos, tudo era avassalador, mas particularmente eu não me preocupei muito com isso naquele momento. Era o que era, “é lindo e vai dura” eu pensava comigo mesmo. Eu queria que durasse, queria ter outra vida. É a sensação de olhar ao redor e ver que ainda era possível viver, mesmo que eu não tivesse mais meus vinte anos.
Eu cuidava do seu sono, ele estava apagado e não soltava minha mão por nada – mão essa que futuramente estaria com uma aliança pesada de ouro, que por sua vez não me traria peso nenhum. Seu corpo, envolvido ao meu, parecia que pertencia àquele lugar que ocupava. Eu não sabia onde ele começava e eu terminava, o que eu sabia era que eu poderia ficar uma semana a fio ali com ele e não sentiria necessidade de fazer mais nada. A muito contragosto eu o convenci de irmos para a cama, e lá ele me abraçou novamente, apagando em seguida. Acredito que ele nem deveria estar sonhando, era pura exaustão, e assim como ele eu acabei apagando também.
As horas foram passando e acordei em uma cama vazia, com os primeiros raios de sol tocando o meu rosto. Por uma fresta da janela pude ver um céu nublado com alguns raios de sol, mas o mais importante, sem chuva naquele momento. Olhei para o relógio ao lado da cama e pensei comigo mesmo que seria melhor dormir mais, mas obviamente isso não seria possível. Fui até a cozinha, onde pude ver que nosso café da manhã estava pronto, mas sem sinal dele. Fui até a sala e pelas grandes janelas de vidro que iam do teto ao piso, entre as cortinas, pude ver uma rua calma. As imensas árvores na minha visão se misturavam com a vista da pequena cidade mais distante, fazendo daquela paisagem algo muito cativante, mesmo nessas circunstâncias macabras. Para ser honesto, eu ainda estava acordando, tentando raciocinar sobre o que fazer em relação ao caso e tudo o que envolvia ele.
Ouço um barulho de coisas caindo no chão. Sabia que vinha da escada que dava acesso a garagem e corri para o chão ao lado da lareira onde estava a arma de Marinho. Caminhei até o topo da escada fazendo mira, já preparado para algo ruim que eventualmente pudesse acontecer. Somente abaixei a arma quando ouvi em seguida um sonoro “PORRA!”, com toda certeza sabia que era ele. Desci as escadas encontrando o homem completamente pelado mexendo em algumas caixas, tentando encontrar alguma coisa que há tempos não mexia.
“Me ajuda a pegar essa da última prateleira...” Falou sem me olhar, somente passando a mão no cotovelo como se tivesse acabado de receber uma pancada. Eu não fiz nada de imediato, somente fui até ele e o beijei. Ele ficou um tempo até entender o que se passava, mas logo me abraçou e retribuiu o beijo com bastante intensidade. Ficamos alguns minutos nos beijando e trocando caricias. “Bom dia, meu amor! Você dormiu bem?” Ele me devolveu depois do beijo, fazia mais sentido receber isso como primeiro contato do dia.
Eu respondi que sim, o chamando de “amor” e lhe dando vários beijos. Percebi ele abobalhado quando eu o chamava assim, mal pude acreditar que eu havia o pedido em casamente em meio a toda essa avalanche de eventos, e ele, mais louco que eu, aceitou. Apesar disso, por trás dos olhos tímidos de alguém que encontra seu amor, havia dúvidas. Foram justamente essas trevas que me despertaram curiosidade sobre o que o homem estava fazendo naquele momento em sua garagem revendo o que eu acredito que seja seu passado. Retiramos a bendita caixa do lugar: nada! Não encontramos seja o que ele estivesse procurando, ele também não falou nada. Estava muito preocupado procurando alguma coisa. Eu perguntei se ele precisava de mais alguma ajuda, mas ele negou: “Tá tranquilo!”, concluiu.
Subi, tomei meu café da manhã e aproveitei para colocar algumas roupas nossas para lavar. Ele subiu as escadas adentrando no quarto que um dia foi de sua filha. Eu acompanhei tudo da porta. Era um quarto típico de menina, alguma coisa entre uma infância terna e uma quase pré-adolescência. Uma parede possuía caixas até o teto, colocadas de uma maneira poucos organizada. Poucos minutos depois vasculhando eu peguei uma caixa grande de papelão com o nome “infância” nela, que dentro possuía outra de metal não muito grande marcada como “pai”. Algo dentro de mim sabia que era essa.
Mostrei a caixa a ele que acabou de jogar vários papeis que pareciam recibos de conta no chão, ele imediatamente parou tudo o que estava fazendo e veio até mim em silêncio tomando a caixa das minhas mãos e me puxando com ele para a sala. Sentamo-nos no sofá e ele jogou o conteúdo da caixa na pequena de apoio em nossa frente, ali havia algumas cápsulas de bala, fotos, um punhal, memórias no geral. Ele pegou uma cápsula e um alicate e arrancou a cobertura de metal onde se coloca a espoleta, lendo atentamente algumas informações que estavam gravadas no metal. Levantou-se de forma rápida, pegou uma folha de papel e voltou, lendo uma informação em seguida e me olhando com sentimentos que eu não pude decifrar bem.
_ Meu pai não se matou, ele foi assassinado! – Soltou de imediato. Eu fiquei em choque tentando entender o que era aquilo, mas ele foi continuou:
_ Eu guardei a cápsula da bala que foi encontrada na sala dele quando ele “se matou”, mas ela não é do lote que a polícia fazia uso. No ano anterior que aconteceu a munição passou a ser controlada pela Estado, e os lotes não batem. – Ele me olhava com olhos marejados, mas firmes. Eu o questionei:
_ Mas não poderia ser a munição anterior a esse controle? Como você pode ter certeza disso? – Falei de forma cética. Ele somente me entregou o papel que estava em suas mãos.
Ele tinha razão. O lote que a bala pertencia desapareceu no ano anterior da morte do seu pai. Sem motivação aparente, sem rastros, simplesmente sumiu. Não sabíamos exatamente como, mas aquele lote não foi perdido, alguém o usou e usou muito bem. Marinho recostou no sofá em silencia olhando para o teto, parecia que mil pensamentos passavam por sua cabeça naquele momento. Eu nada disso. Lagrimas silenciosas escorriam de seus olhos e eu não sabia exatamente o que fazer. Dar espaço? Deixa-lo em seu momento? Indagar alguma coisa? Abraçá-lo? Fiquei com a última opção.
Fui até onde ele estava e o abracei. Ela não imita sons, somente chorou dolorosamente e se apoiando em mim. Sabia que muitas barreiras não existiam entre nós, mas era estranho saber que elas deixaram de existir e eu não percebi – ou sequer elas existiram. Era estranho e sublime, “é bom, vai durar” eu pensava. Uma tristeza sem tamanhos também se apoderou de mim enquanto eu constatava isso. Para meu amado, foi uma vida acreditando em algo que não se sustentava. Com toda certeza, era demais saber de tudo aquilo agora. Fomos interrompidos por um telefonema.
Máscaras de animais e os quatro corpos desaparecidos foram encontrados em na passagem interna da prefeitura. O grupo de agentes responsáveis pelo achado ainda estavam vasculhando o lugar, mas adiantaram que era uma instalação muito grande. Ela basicamente ligava a mina na qual achamos as garotas desaparecidas com o centro histórico da cidade, mais especificamente o prédio da prefeitura e da biblioteca. A origem daquela construção pelo que se esperava, era relacionada diretamente a família Castanho, já que eles eram os fundadores da cidade. Por essas horas, pelo menos umas vinte viaturas das Forças Federais estavam em Três Colinas, já que a coisa aparentemente tratava-se de tráfico humano e de drogas.
Havia um registro que falava da cessão de um terreno pela família para a construção dos dois prédios públicos, mas sem relação com a estrutura ligada as minas. Especulamos que aquela estrutura foi feita posteriormente, já que essa mina ficou desativada por muitos anos devido a sua alta periculosidade de trabalho. Seja lá qual fosse a população que construiu aquele lugar, deve ter sofrido todos os tipos de mazelas possíveis. Eu e Luciano debatíamos isso enquanto trocávamos de roupa para sair, ele parecia funcional, mas a dor nele era imensa. Eu acabei não aguentando e soltei:
_ Eu não sei se devo falar isso, mas vou falar mesmo assim. Se você estiver me achando intrometido e não quiser falar, tudo certo. Mas veja só, o que está acontecendo de fato com você, Luciano? Há coisas que sei que você não quer me contar, mas se quiser compartilhar eu tô aqui. – Disse enquanto pegava uma garrafa de água na geladeira para nós.
_ Nos resta agora saber exatamente o envolvimento dos Castanhos e estamos resolvidos. O cerco tá fechando pra eles. Tô tranquilo. – Concluiu me entregando metade de uma laranja e saindo de casa em direção ao carro. Acabei dirigindo novamente, já que ele estava com o braço machucado das pancadas de ontem. Mesmo sem saber se era a melhor estratégia, insisti depois de um tempo dele em silêncio.
_ Amor, seja lá o que estiver acontecendo, pode falar comigo. Eu só vou te ouvir e te ajudar no que for possível. – Falei pegando em sua mão e colocando em meu colo. Ele se aproximou do meu rosto beijando-o em seguida e voltando para seu lugar, tirando a mão do meu colo.
_ Eu passei minha vida toda acreditando que meu pai se matou, mas uma parte minha sabia que poderia ser outra coisa. Lembro que uma semana antes de acontecer ele estava recebendo uns telefonemas estranhos e parecia ansioso. Algo parecia não estar bem, mas eu só pensava que era tudo por causa do caso. Lembro que minha mãe também ficava muito aflita, mas segurava bastante a onda. Não quero falar muito, mas na época eu tava na faculdade e acabou sendo uma experiência pior do que eu imaginei, acabei descobrindo também que minha mãe estava desconfiada de alguma traição do meu pai, mas ninguém nunca soube de nada. – Ele me fala, mas olhando para a janela com um olhar distante, continuando em seguida:
_ Quando a gente tava na mina, eu senti umas coisas muito estranhas... Acho que a maioria pelo consumo do Cobre Branco, já que a gente ficou superexposto, mas acredito que em algum momento eu alucinei e lembrei de umas coisas que eu nem lembrava mais de ter visto. Uma delas foi meu pai xingando alguém no telefone no dia em que ele morreu, e acho que agora sei quem foi. – Ele conclui limpando uma lágrima.
Eu estava feliz te ter ouvido ele compartilhar algo assim comigo, mas não me senti satisfeito. Daria espaço para ele, mas ciente de que ele estava sendo extremamente evasivo. Eu gostaria de perguntar mais, mas não tive coragem. Será que o pai de Luciano estava sendo chantageado? Será que ele não sabia dessa possível traição? Com quem ele falou no telefone? Eu estava disposto a respeitar seu silêncio, mas não me contive.
_ Marinho, com quem teu pai tava brigando no dia que ele morreu? – Perguntei quase me arrependendo.
_ Tom... – Ele respondeu seco.
_ Eles eram bem amigos, né isso!? – Questionei de forma despretensiosa...
_ Sim, unha e carne. Uma amizade de infância. – Ele concluiu seco, mas provavelmente já sabendo onde eu queria chegar.
_ Então, eu vejo que o Tom lhe trata como um filho, de forma bastante respeitosa, até as vezes nostálgica... Tu não acha que... – Fui interrompido no meio da fala com um Marinho me respondendo de forma precisa:
_ Sim, eu acho que ele e meu pai foram amantes por toda a vida.
***
O clima na delegacia era bastante agitado. Eu observava o intenso movimento de policiais para todos os lados enquanto pegava dois copos de café. Pelos corredores, muitas caixas de papeis para todos os lados com seus conteúdos virados ao avesso por mãos incansáveis dos agentes da lei ali presentes. Em uma sala mais afastada, três pessoas da comunidade pesqueira detidas, com risco real de serem linchadas pelos presentes naquele lugar. O barulho interno era abafado pelo externo formado por uma grande quantidade de moradores locais prontos para descontarem sua raiva em alguém. Nessas horas, um grupo de policiais estava no território da comunidade de pescadores fazendo sua defesa, era preciso ter bom senso pois nem sem as coisas são o que parecem ser.
Era estranho porque, mesmo com todas as provas existentes contra as atividades da família Castanho as pessoas ainda assim não direcionavam sua raiva para eles. Diziam que eles faziam muito bem para a região gerando empregos. Que coisa mais absurda! Bastava a desapropriação do espaço pelos tantos crimes e a formação de uma cooperativa que quase tudo estaria resolvido. Um grupo de advogados tentava a todo custo reverte a situação dando entrevistas ou causando mais tumulto dentro e fora da delegacia, mas eu sabia que em breve as coisas estariam resolvidas. Iriamos agir contra eles muito em breve, precisávamos somente da informação certa.
Eu estava na minha sala com um Marinho mais calado que o normal do meu lado. Estava arrumando uns documentos para serem entregues ao meu superior que acabou de nos comunicar que o caso sofreria intervenção federal imediata, honestamente eu achei razoável. Tudo o que eu queria mesmo era dar o fora dali com Marinho, precisávamos descansar. Luciano pegou novamente a caixa de metal e a cápsula da bala do pai e sai. Fiquei nas minhas atividades enquanto o homem sumia nos corredores.
***
Não foi muito surpresa quando Marinho descobriu que as coisas do pai estavam com resquícios de Cobre Branco. Era até óbvio, já que na semana anterior de sua morte ele apresentava um comportamento bem estranho. Bastava saber se ele estava fazendo uso consciente ou se estava sendo drogado por alguém, acabamos por descobrir que era a segunda opção. Marinho foi uma sala mais ao fundo da Delegacia onde Tom estava.
_ Era você no telefone no dia que ele morreu? Por qual motivo ele disse que te mataria? – Perguntou Marinho muito sério olhando nos olhos de Tom.
_ Você não entenderia, era maior que todos nós. – Concluiu o homem de olhos azuis profundos e cabelos muito brancos. – Durou uma vida toda, e acabou da pior forma possível. Todos os dias penso nele, mas tínhamos uma reputação a zelar.
_ Então me fale, eu mereço saber! – Disse Marinho apoiando levemente a sua mão sobre sua arma carregada, sem sacá-la.
_ Eles nós chantagearam, havia fotos e vídeos nossos. Decidimos ficar um ano sem nos encontrar para baixar um pouco a poeira, e quando voltamos era nas minas. Fomos descobertos por um segurança dos Castanho, então deu tudo errado. Eles induziram o vício em Cobre Branco contaminando a água, e manipularam a tribo para fazerem os sequestros para o ritual. É tudo culpa deles. – Disse o homem com lágrimas doloridas no rosto.
_ Então você matou meu pai, Tom? – Disse Marinho sacando sua arma e colocando no rosto dele.
_ Sim! – Disse o homem de forma pausada, recendo um choro violento de Marinho em seguida – Foi a coisa mais difícil que fiz na minha vida. – Disse em um choro igualmente violente – Ele me obrigou a matá-lo, pois não tinha coragem de tirar a própria vida. Ele ajudou a encobrir algumas provas e apagar rastros da investigação, eu queria assumir nosso romance e viver e deixar que o escândalo viesse. Mas ele negou, disse que se isso ocorresse não haveria mais espaço para nós em nenhum lugar do mundo. Naquele dia ele usou uma dose gigante de Cobre Branco, e então eu o fiz. – Marinho baixou sua arma boquiaberto e se sentou na cadeira atrás dele, totalmente em silencia. Tom continuou:
_ Eu nunca quis nada daquilo, seu pai me obrigou. Ele foi a única pessoa que amei na vida, ele foi meu primeiro beijo e minha virgindade. Meu casamento de fachada foi somente para ficar ao lado dele sem levantar suspeitas, mas eu nunca quis. Eu queria que tivéssemos uma vida juntos, mas nunca aconteceu. Então veio a chantagem e deu tudo errado. Eu estou envolvido em tudo também, e estou agindo para preservar a memória dele. Mas não aguento mais, tudo está resolvido. Por essas horas as caixas certas estão não mãos das pessoas certas, e em breve eu estarei preso. Minha vida acabou, filho, mas a sua está apenas começando. Mesmo que eu não possa, só quero te dar um conselho: vá embora e nunca mais pise aqui novamente! – Tom disse isso pegando duas armas e um colar de granadas e saindo da sala, deixando um Marinho sem reação para trás.
***
Os episódios que se seguiram depois dali foram bem estranhos. Primeiro, Tom saiu da delegacia rumo a colônia de pescadores, onde matou com tiros de execução cinco pessoas. Seguiu para uma área de busca onde alguns policiais estavam, somando quarto no total, que foram mortos da mesma forma. Ele seguiu para a sede da Companhia Castanho, onde oito dos principais sócios estavam e simplesmente explodiu o local, matando entre eles funcionários e seguranças. No final, o corpo de Tom nunca foi encontrado.
Tudo o que foi descrito aqui foi resolvido de portas fechadas entre mim, Marinho, meu Supervisor e uma Super Intendente muito rígida, porém sensível. Foi decidido manter a memória do pai daquele e de Tom, mesmo que nós quarto soubéssemos de tudo. Eles foram tratados como heróis, enquanto a dinastia Castanho finalmente perdia seu império. As duas semanas que se sucederam foram basicamente uma grande resolutiva desses eventos.
Três Colinas parecia menos fria agora. As chuvas já não eram tão presentes e nossa rotina desacelerou, ao ponto de tudo ser visto com um certo tédio. Como era de se esperar, meu amado ficou dias em um silêncio profundo, como se tentasse reconstruir algo dentro de si que veio a ruir. Eu, por minha vez, tentava dar o máximo de assistência possível, seja na delegacia resolvendo bronca e preenchendo papelada, seja em casa, com o máximo de afeto que eu era capaz de dar. Nessa altura, ninguém se preocupava com o fato de sermos assumidamente um casal, ou seja lá o que eles vissem em nós. Realmente não nos incomodava.
No meu último dia de trabalho em Três Colinas, uma chuva fina e tímida teimou em se fazer presente durante todo o dia. Marinho parecia ter digerido um pouco mais a situação e já conversava alguns breves assuntos comigo, mas nesse dia em particular ele estava mais calado. Apesar do clima entre nós estar melhor, já que uma série de prisões entre os integrantes da família Castanho, dos moradores da comunidade pesqueira e do corpo de policiais foi realizada – pelos menos dos que ficaram vivos – Marinho parecia me evitar.
Quando chegamos em casa, ele foi direto para o banheiro. Pronto, só era o que faltava. Eu sabia que precisava viajar de volta para a capital, mas obviamente ele estava inserido nos meus planos, não faria o menor sentido depois de tudo abandoná-lo, ainda mais naquele lugar. Eu acendi a lareira e coloquei no rádio a com músicas country muito antigas, e fui ao seu encontro. Eu cheguei ao banheiro completamente nu.
_ Queria saber o que tá se passando nessa cabeça branca, seu Marinho! Estresse não faz bem a um idoso! – Disse tirando um pouco de sarro de sua cara enquanto ele dava um riso amarelo e se aconchegava ainda mais com suas costas no meu peito. Eu somente o abraçava, desejando que nunca mais existisse espaço nenhum entre nós dois.
_ No final, foi tudo culpa do meu pai. Se ele não tivesse cedido a chantagem... – Disse de forma perdida. Eu o cortei:
_ Enterre seus mortos, delegado! Muita gente já morreu, tem sangue pra todo lado. A gente ficou vivo e vai permanecer juntos, e no final das contas somente isso que vai importar. – Disse de forma categórica, tomando as rédeas da situação.
_ Não posso ficar calmo sabendo que tu vai embora depois de amanhã... – Disse ele com peso na voz.
_ Corrigindo: NÓS VAMOS EMBORA DEPOIS DE AMANHÃ! Primeiro que ganhei uma bela de uma promoção e tu também, aliás, esses dias tu vai ganhar tudo o que tu quiser, final, tu se tornou o delegado que resolveu tudo. Tu tá ao lado dos dois grandes outros heróis mortos agora, sobrando todo o mérito para alguém que, diferente dos outros, realmente merece o prestígio. Não tô dizendo que vai ser tudo perfeito, mas precisamos desse recomeço para partir sem levar se quer a poeira daqui. – Conclui.
_ Sabe o que Tom me disse antes de sair da delegacia?
_ O que? – Eu disse...
_ Vá embora e nunca mais olhe para trás! – ele terminou virando para me abraçar, restando depois disso somente um silencia de confirmação. Em 48 horas estaríamos bem longe dali.
***
Foi uma noite muito tranquila. Sem sexo, mas com muito amor e cumplicidade. Ficamos juntos o tempo todo apreciando a vista na varanda enquanto tomávamos chá. Ele estava bastante frágil, não era para menos. Depois de tudo que Marinho passou era de se esperar.
Conversamos sobre nossas infâncias, dores, amores, tudo no geral. Das coisas mais importantes até detalhes do cotidiano. Como por exemplo, ele detestava gola alta e sua cor preferida era laranja. Ele também gostava de iluminação indireta com luzes quentes, porque acabou desenvolvendo repulsa por luzes brancas por causa da delegacia. Outra coisa importante: detestava coentro e azeitonas. Tudo o que tivesse um desses ingredientes seria como sentir o gosto da morte. Ele também me amava de verdade, e queria compartilhar sua vida comigo.
No final desse dia, estávamos abraçados na nossa cama escutando a chuva muito final banhar a floresta no nosso quintal. Ele me abraçava firme, enquanto eu sentia todos os pelos do seu peito nas minhas mãos e rosto. O cheiro que saia do seu corpo era indescritível, algo entre uma noite com carros esportivos e tomar banho em uma cachoeira perdida no coração de uma cachoeira inóspita. Não sabíamos exatamente como seria na capital, mas sabíamos que estaríamos juntos para tudo. Foi assim que permanecemos até os dias de hoje.
No dia de partir, levamos pouca coisa. Mesmo assim, havia o suficiente. Foi tudo muito agridoce para nós dois. Cumprimentamos algumas pessoas, outras passaram batido, Marinho organizou a casa com minha ajuda e deixávamos de uma forma que fosse vendida depois, muito embora nosso retorno para pegar a mudança fosse eminente. A questão seria resolvida depois, mas por hora, olhávamos a janela de um trem já ensolarado imaginando como seria nossa vida pela manhã.