Fui convidado para uma solenidade numa cidade em que eu trabalhara muitos anos atrás; estavam homenageando os primeiros funcionários da empresa mais importante do lugar, e eu era um dos tais. Foi numa espécie de chácara do atual proprietário da firma, Antonio Sá Filho. Aquela chatice toda de discursos e lágrimas e tal e coisa, depois os fartos comes e bebes (em que socializei o mais que pude) e o show musical – que aí era demais para minha introspecção e me afastei para umas mesas dispostas à distância do barulho da música.
Estava eu curtindo minha maravilhosa solidão, tomando uma taça de um vinho seco delicioso e apreciando o céu estrelado, quando ouço, ao meu lado, um “boa noite” de começo de conversa. Amaldiçoei em pensamento a intrusa até sua terceira geração, mas preguei meu sorriso mais simpático e devolvi o cumprimento, para ouvir, em seguida, um “Posso?”, que selava irremediavelmente o fim da minha tranquilidade.
Enquanto ela sentava, eu buscava em minha memória de onde conhecia aquela mulher – o rosto não me era completamente desconhecido, mas eu não atinava de onde. Aí já começou o rebuliço por dentro de mim, imaginando que ela iria me propor uma daqueles cretinos jogos de “não lembra de mim?”. Foi sensata, no entanto: apresentou-se, sem mais delongas. Marisa Isabel.
Minha mente iluminou-se, num clarão mnemônico. Eu não conhecera outra Marisa Isabel na vida, a não ser aquela, que agora estava diante de mim, cerca de quarenta anos depois. E no rastro de seus ainda belos olhos verdes, viajei no tempo até o começo de minha carreira, naquela cidade, naquela empresa. Eu fora convidado por Antonio Sá, o pai, para compor a equipe que iniciaria aquela franquia. Recém formado e noivo, mesmo morando em outra cidade, aceitei o convite sem pestanejar.
A empresa se fazia por si mesma, ancorada na famosa marca que utilizávamos. Marisa Isabel também fazia parte dessa primeira turma. Uma linda jovem, de olhos verdes, corpo ensandecedor, extrovertida, inteligente e competente. Era namorada de adolescência de Mauro, que também compunha a equipe, e que sugerira a Antonio meu nome. Pela afinidade de nossas funções, conversávamos muito, eu e Marisa, e terminou que, de assuntos profissionais, fomos nos tornando confidentes.
Eu já estava confuso sobre o que sentia por Marisa Isa (assim eu a chamava, como forma de particularizar o tratamento), e se eu deveria mesmo continuar noivo. Conversamos sobre isso também, confessamo-nos apaixonados um pelo outro, mas tudo tendo de ser platônico, porque ambos tínhamos compromissos com outras pessoas, e além do mais, Mauro era muito meu amigo, confiávamos demais um no outro... O melhor mesmo era cada um seguir seu destino convencional e tudo bem...
Mas a notícia do casamento deles me abalou um bocado. Por uma questão de coerência (e de autoproteção mesmo), decidi resumir as conversas com Isa a questões profissionais. Ela, inteligente (como já falei), entendeu e fez sua parte.
Uma noite – que não era outra senão a da véspera do seu casamento –, pusemo-nos a conversar para além do empresarial. Estávamos sozinhos no escritório e sabíamos que seria nossa última oportunidade de estarmos juntos, de nos falarmos abertamente sobre nossos sentimentos... E assim se deu.
Ela estava particularmente linda naquela noite. E nossa conversa foi tomando um rumo mais íntimo, reafirmamos o quanto nos sentíamos atraídos um pelo outro, e, de tão próximos, aconteceu nosso primeiro beijo. Os hormônios, aprisionados em nossos corpos pela convencionalidade a que estávamos nos obrigando, desprenderam-se como uma represa que rompe e em pouco tempo estávamos nus, nossos corpos finalmente se entregando com a ânsia de quem se desejava tanto e há tanto tempo.
E transamos loucamente. Jovens que éramos, tínhamos fogo para mais de uma sessão de foda – e foram três. A buceta de Isa era extraordinariamente maravilhosa, agasalhava meu pau de uma forma completa. Nossas bocas vadiavam em nossos corpos com a sofreguidão de quem sabia que era aquela vez e nunca mais. E gozamos loucamente tantas vezes – ela mais do que eu.
Enfim, cansados, esgotados, os dois corpos nus entranhados sobre o sofá que fora nosso ninho de loucuras, sentíamos que precisávamos nos dizer o que não precisávamos falar, pois sabíamos sobejamente que aquela noite maravilhosa simplesmente não existira, e que ficaria apenas decalcada para sempre em nossas mentes, enquanto nossos corpos seguiriam cada um seu próprio caminho. Mas nos falamos para aquietar nossa consciência. Para não restar qualquer resquício de dúvida.
E, como a letra de um bolero antigo, fui ao seu casamento no dia seguinte, cumprimentei os noivos, e até satisfeito com a maturidade da decisão que tomara. Não passei mais muito tempo na empresa. Apareceu uma vantajosa proposta no exterior, pedi para sair e viajei para fora do país, passando cinco anos fora. O noivado naufragou e me construí um empedernido solitário – que é o que sou até hoje. O destino é engenhoso, pensava eu. O fato é que nunca mais tivera notícias dos dois.
E agora estava Marisa Isa na minha frente, involuntariamente revolvendo todo aquele passado que eu julgava para sempre sepultado. Nossa intimidade de quatro décadas atrás restabeleceu-se de imediato, como se não tivéssemos nos afastado. Ela contou que o casamento com Mauro foi maravilhoso nos primeiros anos. Mauro Filho chegou antes do primeiro aniversário de união, para coroar de felicidade a vida dos dois.
Entretanto, o universo, o destino ou seja lá o que for, estava apenas dando um tempo antes de abrir a torneirinha de aflições e sofrimento. Aos dois anos, Maurinho foi diagnosticado com mielodisplasia, uma doença que compromete a produção de células sanguíneas saudáveis. O pai se dispôs de imediato a verificar a compatibilidade para a doação da medula óssea, que poderia curar o filho. Infelizmente, não era compatível; e além da queda, o coice: o exame de DNA necessário para o possível transplante revelou que Mauro não era o pai biológico da criança.
Marisa Isabel, inteligente como sempre fora, compreendeu tudo num átimo. A noite da véspera do casamento deixara mais que apenas boas lembranças. Mauro foi extremamente cortês, mas firme e definitivo: não queria saber quem era o pai, mas era impossível continuar o casamento com aquele desenlace. Continuaria cuidando da saúde do filho que ele registrara como seu, mas seria esse seu único compromisso com ela, a partir dali.
Divorciaram-se, e Mauro cumpriu a palavra – tomou conta de Maurinho até o fim, que não demorou muito. À falta de um doador compatível e com o organismo do garoto se deteriorando rapidamente, terminou colapsando e Marisa enterrou o seu filho (o nosso filho) antes do terceiro aniversário. Mauro sofreu um grave acidente automobilístico e faleceu seis meses depois.
Ela entrou em depressão, e por pouco não se perde também. Não fosse Raimundo – que não tinha entrado na história, como o J. Pinto Fernandes, de Drummond –, Marisa não sabia o que teria acontecido com ela. Rai foi pacientemente juntando os cacos, costurando tudo com atenção, carinho e... amor também (que Marisa é muito fácil de ser amada); reconstruiu minimamente sua vida, juntaram-se, casaram-se e tiveram três filhos, que lhes deram os cinco netos que são o sustentáculo de sua felicidade.
Eu parecia que fora nocauteado num ringue do passado. Sentia-me entre embriagado e anestesiado – e nem era só o vinho e o frio da noite. Minha primeira reação interna foi de revolta, por ela não ter me procurado, me contado tudo quando acontecera. Mas em seguida coloquei-me no seu lugar e, sabendo como eu sabia de sua personalidade, entendi que ela jamais me procuraria, em função do que conversamos naquele sofá, quarenta anos atrás. Eu seguira a minha vida, ela a dela, e não existia “nós dois”.
Meu estupefato silêncio foi quebrado por um homem calvo, de óculos, simpático, que se achegou à mesa. Marisa me apresentou ao marido, dizendo que ele sabia de toda história, que precisou ser purgada durante o seu processo de reabilitação psicológica. Agora finalmente se fechara o ciclo: Raimundo conhecia pessoalmente o elo que faltava naquela fatídica corrente.
Não consegui conter as lágrimas, que desceram em dois fios pela minha face; os de Marisa, os belos olhos verdes de Marisa, também nadavam; até mesmo os de Rai, por fim, igualmente lacrimejavam. Num ímpeto de puro sentimento de gratidão, levantei-me e abracei fortemente aquele homem, que soubera tão bem reconstruir uma mulher destruída. Marisa Isabel participou do abraço e em pouco os três fungávamos, incontidamente.
E nunca mais os vi nem procurei saber deles. Já me bastava a angústia de ter me sabido pai sem o saber que fora e sem poder sequer ver o meu filho...
