Acordei com o sol me castigando. A cortina mal fechada deixava a luz atravessar direto no meu rosto, e a dor de cabeça parecia um lembrete cruel da noite anterior. O gosto da cerveja ainda estava na minha boca, misturado com uma sensação agridoce que eu não sabia nomear.
Me virei na cama, encolhido, tentando juntar os pedaços do que lembrava. As risadas, o bar, o som das garrafas batendo, o mar iluminado pela lua... e o Samuel. Ele aparecia nítido na minha cabeça - o sorriso inclinado, o olhar firme, o jeito fácil de se aproximar. A cena perto da árvore me veio inteira, e o calor subiu de novo, mesmo eu tentando afastar.
- Eu tava bêbado... - murmurei, cobrindo o rosto com as mãos. - Só isso.
Mas não adiantava. A lembrança voltava inteira, como se tivesse acontecido agora. A forma como o Samuel me olhou, o tom da voz dele, o riso abafado... Eu não devia ter sentido nada. E, mesmo assim, senti.
O celular vibrou na cômoda. Peguei com preguiça, piscando várias vezes pra enxergar. Era uma mensagem do Robinho.
"Acorda aí, sumido. Espero que tenha chegado bem. Samuel encheu o saco pra saber se você ficou de boa, acho que ele fala demais."
Fiquei olhando pra mensagem por uns segundos, lendo e relendo. O jeito como ele escreveu me deixou meio... esquisito. Não era só preocupação, parecia mais uma implicância. E, de algum modo, eu gostei disso.
"Tô bem, sim. Dormi que nem uma pedra."
"Bom saber. Da próxima vez, tenta não desaparecer, né? Fiquei parecendo babá de bêbado."
Sorri sem graça. Ele podia brincar, mas eu percebia um tom diferente ali. Um incômodo que ele tentava disfarçar com piada. E isso bagunçava ainda mais minha cabeça.
Levantei meio cambaleante e fui até o banheiro. O espelho me devolveu um rosto cansado, os olhos inchados e o cabelo todo bagunçado. Passei água no rosto, respirei fundo e deixei o som da torneira preencher o silêncio.
Quando desci pra cozinha, encontrei o Erick encostado no balcão, mexendo num copo de café com leite e o celular na outra mão. Ele levantou os olhos pra mim e abriu aquele meio sorriso que sempre entregava que ele tava prestes a me provocar.
- Olha quem resolveu acordar - disse, dando um gole no café. - Achei que ia ter que chamar os bombeiros pra te tirar da cama.
- Muito engraçado - murmurei, abrindo a geladeira atrás de alguma coisa que não me fizesse enjoar.
- Então, maninho, como foi ontem? - perguntou ele, largando o celular. - Você, o Robinho e o primo misterioso dele...
Fiz que não ouvi, mas ele insistiu.
- O que foi? Tá com essa cara de quem viu um fantasma.
- Nada demais - menti, pegando uma garrafa d'água. - Só bebi demais.
O Erick me observava calado, com um olhar desconfiado que sempre me deixava sem jeito.
- Sei... - ele murmurou, apoiando o queixo na mão. - Então foi só isso. Porque, sei lá, tá com uma expressão de quem sonhou com alguém e não quer admitir.
- Para, Erick - falei, tentando disfarçar o rubor que subia. - Eu só dormi mal.
Ele riu, levantou-se e passou por mim, dando um leve tapa no meu ombro.
- Tá bom, maninho. Fica tranquilo. Só não mente pra mim - disse, piscando antes de sair da cozinha.
Fiquei ali, parado, com o coração acelerado e uma pergunta martelando na cabeça: por que eu não conseguia tirar o Samuel da minha mente?
Por alguns segundos, o silêncio voltou a dominar a cozinha. O som do relógio na parede parecia mais alto do que o normal. Respirei fundo e me encostei na bancada, tentando afastar os pensamentos, quando ouvi passos voltando pelo corredor.
O Erick reapareceu na porta, ainda com o copo de café na mão, o olhar mais sério agora.
- Eu sei que não devo me meter na tua vida, maninho - ele começou, encostando o ombro na parede -, mas... sei lá. Ontem, quando conheci aquele cara, o tal do Samuel, eu senti uma coisa estranha.
Levantei o olhar, meio surpreso. Ele nunca falava assim, com aquele tom baixo, quase desconfortável.
- Não sei explicar - continuou. - Tipo, como se o santo não tivesse batido, sabe? É uma sensação esquisita. Não é implicância, é... instinto.
Fiquei olhando pra ele em silêncio. A lembrança da noite anterior me atravessou de novo - o arrepio, o frio que passou pelo corpo quando nossas mãos se tocaram, a sensação de déjà vu que eu não conseguia entender.
Erick deu um gole no café, desviou o olhar e completou:
- Só... toma cuidado, tá?
Assenti devagar, sem dizer nada. Ele me conhecia bem o suficiente pra entender que eu não ia responder. Quando ele saiu da cozinha, fiquei encarando o copo d'água nas minhas mãos, o reflexo trêmulo da luz na superfície.
Talvez ele tivesse razão.
Mas o mais assustador era o fato de que, no fundo, eu também tinha sentido o mesmo.
Me levantei e fui direto pro chuveiro, deixando a água cair sobre a cabeça, tentando lavar junto o peso daquela noite.
Mas quanto mais eu tentava esquecer, mais lembrava.
O bar, a praia, o olhar de Samuel - e o arrepio que ainda parecia preso na pele.
Saí do banho e vesti qualquer coisa: camiseta preta, calça jeans, o mesmo tênis de sempre. Passei a mão no cabelo ainda molhado e respirei fundo em frente ao espelho.
"É só um dia comum", repeti mentalmente.
Mas o reflexo me desmentia.
Quando cheguei na rua, o sol já castigava, e o Rio parecia acordar de ressaca - buzinas, vozes, gente apressada. Segui em direção a faculdade pois na terça eu só tinha aula no horário da tarde. O rosto de Samuel insistia em voltar, o sorriso provocador, o tom da voz dele ecoando: "tenta não pensar demais nas minhas gracinhas..."
Me peguei sorrindo, sem querer e
logo em seguida senti raiva de mim mesmo por isso.
"Tá vendo? Tá deixando isso entrar na cabeça", pensei.
"Foi só uma noite, uma cerveja a mais. Nada além disso."
Quando cheguei na faculdade, o campus estava cheio, barulhento. Aquele caos cotidiano que sempre me dava uma sensação de normalidade. E foi ali, logo na entrada, que vi o Robinho encostado na mureta, com um copo de café na mão e o semblante sério.
Ele me viu e levantou uma das sobrancelhas.
- Dormiu bem? - perguntou, com um tom neutro demais pra parecer casual.
- Dormi. Quer dizer, mais ou menos - respondi. - E você?
- Ah, tranquilo. - Ele deu de ombros, desviando o olhar. - Só tô com a cabeça cheia.
O silêncio que se seguiu foi desconfortável. Ele parecia querer dizer algo, mas se segurava. O olhar dele era direto, meio irritado, meio magoado, mas ele mascarava isso com ironia.
- Samuel mandou mensagem cedo - disse, quase num sussurro. - Disse que foi divertido ontem.
Assenti, tentando disfarçar o incômodo que aquela informação me causou.
- É... foi uma boa noite.
- Boa até demais, né? - ele retrucou, cruzando os braços.
Fiquei quieto. Não queria discutir. Mas o tom dele denunciava o ciúme - disfarçado, contido, como quem não quer admitir nem pra si mesmo.
- Cê tá estranho hoje - comentei, forçando um sorriso. - Aconteceu alguma coisa?
Ele desviou o olhar, chutou uma pedrinha no chão e respondeu baixo:
- Não. Só... não gostei muito do jeito que o Samuel ficou te olhando ontem, só isso.
Sorri de leve.
- Ciúme, Robinho?
- Para, Yuri. - Ele revirou os olhos, visivelmente desconfortável. - Eu só acho que esse cara é meio... sei lá. Intenso demais.
- E você prefere os mornos?
- Prefiro quem sabe respeitar limite - retrucou rápido, firme.
Fiquei quieto, o sorriso morrendo aos poucos.
A verdade é que, mesmo sem querer, a fala dele me atingiu. E, no fundo, eu também não sabia mais qual era o meu limite.
Ficamos ali, em silêncio, o som das vozes dos alunos preenchendo o espaço entre nós. Ele tomou o último gole do café, amassou o copo e jogou no lixo.
- Vamos logo, antes que a aula comece - disse, virando as costas e começando a andar.
Olhei pra ele por um segundo antes de segui-lo, sentindo o peso daquele mal-estar pairando no ar.
A sensação era de que algo tinha mudado entre a gente, mesmo que nem um dos dois tivesse coragem de admitir.
E enquanto caminhava atrás dele pelos corredores, percebi que a noite passada não tinha terminado - só tinha começado a se desenrolar em silêncio, dentro de cada um de nós.
Entrei na sala com a cabeça em outro lugar. O professor falava alguma coisa sobre métodos de pesquisa, mas as palavras pareciam ecoar longe, como se eu estivesse submerso. A imagem do Robinho virando as costas ainda me rondava.
Fiquei encarando o caderno aberto à minha frente, a caneta parada sobre a página em branco. O barulho das cadeiras arrastando, das risadas, das conversas ao redor - tudo misturado num som distante.
Por que aquilo estava me incomodando tanto?
"Prefiro quem respeita os limites."
Essas frase ainda ecoava em minha cabeça.
Mas o jeito que ele disse... Tinha alguma coisa ali - ciúme, talvez? Ou será que eu estava viajando?
Suspirei, tentando me concentrar. Nada funcionava. Me peguei lembrando do momento em que o Samuel ficou me olhando na praia, e depois, da forma como o Robinho me observava, com aquele olhar que misturava raiva e... medo?
Medo de me perder, talvez?
O toque do meu celular me tirou do transe. Uma mensagem piscava na tela:
Robinho: "Tô no pátio. Quando der, vem."
Eu estava tão perdido em meus pensamentos que nem vi ele saindo da sala. Meu coração acelerou sem motivo.
Fingi anotar algo no caderno, fechei, e saí da sala antes mesmo do professor terminar a explicação.
O sol batia forte no pátio, e o Robinho estava sentado num banco sob a sombra de uma árvore, com uma garrafa d'água na mão. Ele levantou o olhar quando me aproximei.
- Achei que tu tava puto comigo - falei, tentando disfarçar o nervosismo.
- Não tô puto, Yuri - respondeu baixo, balançando a cabeça. - Eu só... sei lá.
Sentei ao lado dele. O silêncio pesou por alguns segundos. Eu podia sentir o calor que vinha do corpo dele, o cheiro leve de perfume misturado ao suor. Era uma sensação estranha, como se o ar ao redor tivesse ficado mais denso.
- Ele é um babaca- ele começou, sem me olhar. - na minha família sempre soubemos histórias dele, o típico garanhão que anda armado pra cima e pra baixo e se sente só porque é militar.
- Mas porque ele ter gostado de mim te incomoda?
- Nada. É que... ele parece muito direto contigo.
- Direto como?
Ele respirou fundo. - Sei lá, cara. O jeito que ele te olhava, as piadas... parecia que tava te sondando.
Dei uma risada nervosa. - Tu tá com ciúme dele?
Ele virou o rosto pra mim, e por um instante, os olhos dele travaram nos meus. Não tinha resposta. Só aquele olhar firme, intenso, que dizia mais do que qualquer palavra.
Eu senti o estômago revirar. Quis falar alguma coisa, qualquer coisa, mas a voz travou na garganta.
Até que ele desviou o olhar e deu um sorriso sem graça.
- Tu é bobo, Yuri. - Bebeu um gole d'água e levantou. - Bora pra aula.
Fiquei ali por alguns segundos, vendo ele se afastar.
Meu coração ainda batia rápido.
E, pela primeira vez, eu comecei a me perguntar se ele realmente não sabia o que eu sentia por ele.
As horas seguintes se arrastaram como se o relógio tivesse decidido me castigar. O calor da tarde tornava o ar pesado, e a sala abafada parecia diminuir aos poucos, me sufocando entre os olhares que eu fingia não perceber. Robinho não disse quase nada depois da primeira aula. Sentou-se ao meu lado como sempre, mas parecia distante, mexendo no celular com mais força do que o necessário.
Eu sabia que ele estava incomodado. Aquele silêncio dele sempre vinha acompanhado de um ciúme disfarçado - e o jeito como o canto da boca tremia toda vez que alguém falava comigo só confirmava o que eu já sentia no ar.
Quando o sinal tocou, o som ecoou como um alívio. Juntei meus cadernos e esperei que ele levantasse primeiro.
- Vamos? - perguntei, tentando soar casual.
Ele deu de ombros. - Bora.
Descemos as escadas em silêncio, e o sol da tarde me atingiu o rosto assim que saímos do prédio. O campus estava cheio de alunos indo embora, uns rindo, outros reclamando do calor. Eu e Robinho andávamos lado a lado, mas havia uma distância estranha entre nós - um vazio que nem a proximidade dos nossos ombros conseguia disfarçar.
Foi quando ouvi o som de um motor se aproximando.
Um carro preto parou na frente da faculdade, e o vidro foi abaixando devagar. Samuel.
O sorriso dele apareceu antes mesmo que o rosto ficasse totalmente visível.
- Olha só quem tá fugindo do calor - disse, com aquele tom tranquilo, quase brincalhão. - Querem uma carona?
Robinho bufou baixo.
- A gente vai de ônibus mesmo - respondeu, rápido demais.
Samuel riu, ignorando a resposta dele e voltando o olhar pra mim.
- E você, Yuri? Vai negar um ar-condicionado desses?
Tentei disfarçar o constrangimento, mas o jeito como ele me olhava me deixava sem graça.
- Não precisa, sério. A gente já tá indo...
Mas Samuel não parecia disposto a desistir. Desligou o carro, saiu, deu a volta e - pra meu total espanto - abriu a porta do passageiro.
- Sobe aí. Prometo que deixo vocês no caminho.
Robinho deu um passo à frente, quase protetor.
- Falei que a gente vai de ônibus.
Samuel sorriu de canto, como se o ciúme dele fosse um tipo de distração divertida.
- Tudo bem, mas o convite era pro Yuri.
O ar pareceu pesar entre os três.
Olhei pro Robinho - ele evitava meus olhos, a mandíbula travada. Olhei pra Samuel - que me observava com uma calma irritante, uma confiança que eu não entendia de onde vinha.
Por um segundo, pensei em recusar. Mas algo na forma como ele segurava a porta, no olhar firme que me atravessava, me fez hesitar.
E hesitar foi o bastante pra que Robinho murmurasse, com raiva contida:
- Faz o que quiser.
Eu respirei fundo.
- Tá bom... Nós vamos.
Samuel sorriu satisfeito, como se tivesse vencido uma disputa invisível.
- Boa escolha.
Subi no banco da frente, e Robinho entrou logo depois, no banco de trás. Assim que fechei a porta, o ar gelado do carro me envolveu, e o cheiro do perfume de Samuel tomou conta do espaço - amadeirado, forte, com algo que lembrava menta e fumaça.
- Então... pra onde vão? - perguntou ele, ajeitando o cinto.
- Pra casa - respondi, tentando não parecer nervoso.
Samuel assentiu, ligando o carro. O som suave do motor encheu o silêncio. Ele dirigia tranquilo, uma mão no volante, o outro braço apoiado na janela aberta.
- E aí, o que tão achando da faculdade até agora? - perguntou, olhando rapidamente pra mim.
- Tá... tudo novo ainda - murmurei.
- É, eu lembro de como era o primeiro semestre... meio caótico. Mas você parece se adaptar fácil.
Olhei pra ele de relance.
- Parece?
- Dá pra ver. Você tem esse jeito calmo, mas atento. É difícil explicar.
Atrás de mim, ouvi Robinho bufar, discreto, mas o suficiente pra eu perceber. Samuel fingiu não notar e continuou falando, até que comentou, com um tom mais baixo:
- Eu já estive aí, sabia?
- Na faculdade? - perguntei. - Você cursou também?
Ele riu, desviando o olhar para a rua.
- Comecei... mas larguei. Fiquei pouco tempo. Segui carreira militar.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, curioso.
- E como foi parar na carreira militar?
Samuel assentiu, com um meio sorriso que não combinava com a leveza da conversa.
- É. Eu gosto do perigo. Sou apaixonado pelo perigo, a sensação de quase morrer me excita.
As palavras dele ecoaram dentro de mim, cortando o barulho do trânsito.
Era como se eu já tivesse ouvido aquela frase antes, dita com o mesmo tom, o mesmo brilho estranho nos olhos. Um arrepio subiu pela minha nuca, e eu fiquei olhando pra frente, imóvel.
Samuel continuou, sem perceber meu silêncio:
- É como se fosse uma coisa de outra vida... sabe? Eu sou apaixonado nessa sensação.
Engoli em seco.
Por um instante, o ar pareceu rarefeito dentro do carro. Tudo em volta - o som dos pneus, as vozes das pessoas na calçada, até a respiração de Robinho atrás de mim - ficou distante.
Samuel virou o rosto devagar na minha direção, e o olhar dele encontrou o meu. Havia algo hipnótico ali, um brilho entre o charme e o abismo.
Eu desviei o olhar rápido, tentando disfarçar o tremor nas mãos.
Atrás, Robinho continuava calado, mas o silêncio dele era pesado, denso. Parecia observar tudo.
Foi então que Samuel pousou a mão na minha perna, de forma natural demais pra ser um acidente.
O toque dele me fez voltar à realidade num susto. Olhei pra baixo, depois pra ele, sem saber o que dizer.
Samuel apenas sorriu, com aquela expressão indecifrável.
- Relaxa, Yuri.
O resto do trajeto seguiu quieto. Quando o carro parou em frente à minha casa, ele virou pra mim e disse:
- Foi bom conversar com você. A gente se vê amanhã?
Robinho respondeu antes de mim, seco:
- Ele tem aula cedo.
Samuel deu um risinho.
- Então eu passo pra buscar.
Saí do carro tentando ignorar o calor no rosto e o peso no peito. Robinho apenas me olhou e ficou em silêncio levantando uma sobrancelha como quem diz um tchau. O carro arrancou devagar, o som do motor se perdendo na rua, mas a sensação do toque ainda ficou ali - como se tivesse deixado uma marca.