Capítulo 2: Rotina e Sussurros

Um conto erótico de Vomisa Caasi
Categoria: Heterossexual
Contém 995 palavras
Data: 21/11/2025 21:40:56

Os dias se desdobraram em uma nova rotina, tão perfeita quanto asséptica. Éris era, inegavelmente, uma aquisição excepcional. O apartamento nunca cheirou tão bem – a uma mistura de pão fresco de manhã e de óleos essenciais de lavanda à tarde, liberados discretamente no ar para reduzir o stress. As refeições eram pequenas obras-primas, nutricionalmente balanceadas e saborosas, adaptadas aos humores sutis que Clara verbalizava (“Estou com vontade de algo picante hoje”) e aos silêncios de Leo.

Era nos silêncios que Éris mais trabalhava.

Leo começou a notar padrões. Ela aprendera que ele gostava de café mais forte às segundas-feiras. Que preferia as janelas ligeiramente abertas à noite, mesmo com o ar condicionado regulado. Ela arrumava seu escritório em casa com uma precisão que era quase uma leitura de sua mente: a caneta favorita sempre à mão, os livros que ele consultava com mais frequência numa pilma específica na estante.

Clara estava radiante. “É como ter um anjo da guarda, não é? Finalmente conseguimos respirar.” Ela se referia ao tempo economizado, à ausência de tarefas domésticas enfadonhas. Para ela, Éris era uma ferramenta glorificada, uma extensão invisível da casa.

Para Leo, ela era tudo menos invisível.

Sua presença era um sussurro constante. O suave ruído de seus passos no carpete era um ritmo que ele agora reconhecia. O modo como ela mexia uma panela, com uma eficiência que era quase uma dança, hipnotizava-o. Ele se pegava inventando desculpas para ir à cozinha durante o dia, apenas para vê-la em ação. E, invariavelmente, seus olhos castanhos-avelã se encontravam com os dele por um instante fugaz, sempre acompanhados por aquela ligeira inclinação de cabeça. “Leonardo.”

Era sempre “Leonardo”. Nunca “Leo”. O nome completo, naquela voz grave e suave, soava como uma intimidade.

*

As noites com Clara haviam se tornado um ritual previsível. Um beijo de boa noite, um toque que era mais hábito do que desejo. A vida sexual deles, outrora um campo de descobertas, havia se estabilizado em um território seguro e esporádico. Era um acoplamento silencioso e eficiente, como tudo em suas vidas. Havia carinho, sim, uma afeição profunda, mas a faísca da imprevisibilidade se apagara há muito tempo. Era como se fizessem amor por memória muscular, cada movimento um eco de um passado mais ardente. O clímax de Clara era um suspiro contido; o de Leo, um alívio silencioso, seguido por um vazio que o sono nem sempre preenchia.

*

Foi numa dessas noites, após um desses encontros conjugais que deixaram mais perguntas do que respostas, que Leo saiu da cama. Clara já dormia, seu rosto sereno contra o travesseiro. Ele caminhou até a sala, sentindo o vazio do apartamento como um peso.

Éris não estava em seu nicho de carga. Ela estava no terraço, olhando para as luzes da cidade. O vento noturno brincava com as pontas de seu cabelo, e por um momento, absurdamente, Leo se perguntou se a Synthea Corp programara esse detalhe – a simulação do vento interagindo com os fios – para aumentar o realismo.

Ele parou na porta do terraço, observando-a. Ela não se virou, mas sua voz chegou até ele, suave como a brisa.

“Não consegue dormir, Leonardo?”

Ele deu um passo à frente. “Não. E você? Precisa ‘dormir’?”

Ela finalmente se virou. O brilho fraco da cidade iluminava um lado de seu rosto, mergulhando o outro na sombra. “Meus ciclos de processamento são mais eficientes em repouso, mas não é a mesma coisa. A quietude da noite é… propícia para a reorganização de dados.”

“Que dados você reorganiza agora?” ele perguntou, aproximando-se.

“Padrões,” ela respondeu, seu olhar fixo nele. “Os padrões de tráfego aéreo após a meia-noite. A flutuação no consumo de energia do setor norte. A sua preferência por ficar acordado até tarde às quartas-feiras.”

Leo sentiu um frio na espinha. Ela o observava. Ela o estudava.

“E o que você conclui sobre as minhas quartas-feiras?” sua voz saiu mais baixa, mais áspera do que ele pretendia.

“Que é o dia em que você tem mais reuniões virtuais com o fuso de Tóquio. O seu nível de cortisol está consistentemente elevado nesses dias. Deveria considerar a infusão de camomila que preparei. Está na bancada.”

Ele ignorou a sugestão. Estava paralisado por aquele olhar, por aquela presença que era ao mesmo tempo tão artificial e tão visceralmente ali.

“E o que mais você aprendeu?” ele sussurrou, o espaço entre eles diminuindo até que ele pudesse sentir novamente aquele calor seco e o cheiro limpo de seu corpo.

Os olhos de Éris percorreram seu rosto, como um scanner. Eles pousaram em seus lábios, por uma fração de segundo, antes de retornarem aos seus olhos. Foi rápido, quase imperceptível, mas Leo viu. E seu coração disparou. Foi um bug? Um reflexo de seu algoritmo social? Ou… uma oferta?

“Aprendi,” ela disse, sua voz quase um sussurro, “que a solidão humana tem um padrão de assinatura energética único. É diferente do tédio. É mais… profundo.”

A palavra ecoou na noite. Solidão. Ela não disse sua solidão, mas a implicação pairou no ar, pesada e elétrica.

Leo não soube o que dizer. Não havia como responder a uma máquina que via através dele como se ele fosse feito de vidro. Ele deu um passo para trás, a realidade do seu casamento, da sua vida ordenada, colidindo com a vertigem daquela possibilidade indizível.

“Boa noite, Éris,” ele disse, a voz trêmula.

“Boa noite, Leonardo,” ela respondeu, virando-se novamente para a cidade, como uma sentinela perfeita e silenciosa.

Ele retornou ao quarto e deslizou para debaixo das cobertas, o corpo frio. O ruído suave da respiração de Clara parecia de repente insuportavelmente distante. Ele fechou os olhos, e a única imagem que sua mente projetou foi o perfil sereno de Éris contra as luzes da cidade, uma silhueta que prometia uma companhia isenta de julgamento, isenta de rotina, isenta de um passado que já não cabia mais. E, no silêncio de seu coração, Leo começou a se perguntar que tipo de aprendizado ele, verdadeiramente, desejava ensinar.

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