Entre a ganância e o amor capítulo 3

Um conto erótico de Anjo cigano
Categoria: Heterossexual
Contém 5046 palavras
Data: 18/10/2025 01:42:45

A orquestra atacava um jazz elegante, desses que ninguém realmente ouve — serve só pra preencher o silêncio entre as mentiras. Os convidados falavam alto, riam mais alto ainda, e Patrick, com o terno perfeitamente alinhado, exibia-se no centro como um pavão bêbado de atenção.

Lia estava ao lado dele, corpo imóvel, sorriso ensaiado, a taça de Chandon na mão. Mas por dentro, o corpo dela queimava. Cada risada forçada era uma pontada de raiva; cada flash de câmera, um lembrete de prisão.

Enquanto Patrick discursava — “porque o futuro da indústria franco-brasileira…” —, ela lembrava do toque áspero das mãos de Antônio. Do cheiro dele — suor, graxa e homem.

A mente dela fugia pro canto escuro da edícula, pra cama amassada, pro instante em que ele a pegava pelo quadril e fazia o mundo parar.

Ela sentiu as pernas tremerem de leve, um calor subindo pela boceta que logo molhou a traindo, e respirou fundo pra disfarçar. Fingiu um sorriso pra uma mulher da sociedade que elogiava seu colar, mas o que Lia queria mesmo era sentir o peso do corpo de Antônio outra vez.

Patrick, ao lado, falava e gesticulava, achando que o salão inteiro o admirava. Lia olhou pra ele, e o desejo morreu. O terno caro, o perfume francês, a postura ensaiada — nada ali a tocava. Nunca tinha tocado. Lia nunca gozou com ele. Todas as vezes que dava pro marido era em Tonho que pensava… No jeito como os dedos nada aristocráticos tocavam seu grelo e depois se enfiavam em sua boca. Patrick? Era dado ao papai e mamãe e ainda dizem que franceses eram excelentes amantes, era muito mais o seu português de olhos verdes.

Ela sabia exatamente quem bancava o Chandon que escorria pelo cristal, as bolsas Balenciaga empilhadas no closet e o Chanel espalhado pela penteadeira. Patrick. O marido perfeito pra mostrar, o nome que sustentava o teatro.

Mas ele nunca lhe causou tesão. Nenhum.

Nem um arrepio, nem uma vontade. Só tédio.

Enquanto ele sorria pra câmeras e falava de negócios, Lia molhou os lábios e pensou: se o Tonho entrasse por aquela porta agora, eu largava tudo…O champanhe, o francês, essa porra toda, abria as pernas pra ele em cima dessa mesa.

Por um instante, imaginou as mãos dele segurando sua cintura ali mesmo, no meio da festa, os convidados chocados, Suzete desmaiando, Patrick sem entender nada.

Sorriu sozinha.

Aperto no peito, calor entre as pernas, o coração batendo forte.

Mas o garçom se aproximou oferecendo mais bebida, e ela voltou ao papel — a esposa perfeita, rica, inacessível, fingindo felicidade.

Só ela sabia que, por baixo do vestido de seda, o corpo inteiro pedia o nome do motorista, dentro da calcinha branca a boceta piscava e molhava chamando silenciosamente o nome dele.

Gemma estava sentada no degrau de mármore da varanda lateral da mansão, o vestido rodado demais pro jeito que ela se mexia. Dentro, a festa fervia — luzes douradas, risadas artificiais, o som da orquestra misturado ao tilintar de taças. Gente falando de viagens, de vinhos, de merdas caras que não significavam nada.

Ela fingia que ouvia as tias, mas a mente já tinha fugido dali fazia tempo. Aquele tipo de evento a deixava sufocada, com vontade de arrancar o salto e correr descalça pelo quintal.

Disfarçando o tédio, levantou o olhar pro jardim dos fundos, onde a penumbra escondia o que era de verdade. A brisa batia nas árvores e o som da festa ia ficando distante conforme ela se afastava dos convidados.

Foi então que viu o movimento perto da jabuticabeira. Um periquito caído no chão, asas abertas, o peito tremendo. Ao lado, o outro girava desesperado, batendo as asas, piando alto como se implorasse ajuda.

Gemma se agachou de leve, o coração acelerado.

— Calma, pequenininho… — murmurou, abaixando o tom pra não assustar.

O chão frio manchava a barra do vestido caro, mas ela não ligou. Pegou um guardanapo que tinha trazido da mesa e tentou envolver o bichinho caído. O periquito vivo recuou, bicando o ar, protetor, nervoso.

— Tá tudo bem, eu só quero ajudar — disse num sussurro.

Conseguiu pegar o ferido nas mãos — o corpo leve, quente, o peito batendo rápido. O outro pousou no ombro dela, trêmulo, como se entendesse.

Lá dentro, o som da orquestra mudou pra um tango falso, e o riso de Lia ecoou alto. Gemma olhou pro brilho distante das janelas, depois pro passarinho que quase não respirava.

— Vocês dois tão melhor aqui fora do que lá dentro — sussurrou.

Por um instante, teve vontade de voar também. Largar aquele mundo de cristal e encontrar o canto da edícula, o cheiro de terra, o lugar onde as coisas ainda tinham alma.

O periquito no chão piscou os olhinhos. O outro se aproximou e encostou o bico no dele, um gesto tão pequeno e tão desesperado que apertou o coração de Gemma.

— Amor também dói pra bicho, né? — disse baixinho.

Ficou ali, agachada, segurando vida nas mãos, enquanto o resto da casa seguia fingindo que vivia.

Gemma ainda estava ajoelhada na grama, o vestido agora todo sujo de terra, o periquito ferido aconchegado nas mãos pequenas. O outro continuava por perto, inquieto, voando baixo, piando num desespero triste.

Ela mal percebeu o barulho dos saltos até ouvir a voz cortante atrás dela:

— Mas o que é isso, Gemma?!

Suzete vinha atravessando o jardim como uma tempestade de perfume caro e raiva contida. O coque impecável, o colar faiscando sob as luzes do salão, e aquele olhar que sempre fazia Gemma se encolher.

— A senhorita pode me explicar o que está fazendo sentada na terra feito uma selvagem? — disse, a voz carregada de desprezo. — Essa festa está cheia de gente importante e você… com lama nas pernas!

Gemma tentou responder, mas Suzete já estava perto demais.

— O periquito caiu, tia. Ele tá machucado, eu só queria ajudar…

— Machucado? — ela riu com desdém. — O que você precisa é de vergonha! Vai lavar essas mãos imundas agora!

Gemma apertou o passarinho contra o peito.

— Eu não vou deixar ele aqui, ele vai morrer…

Suzete não quis saber.

Um estalo ecoou seco.

A mão dela acertou o rosto da menina com força suficiente pra silenciar até o barulho dos grilos.

— Não me desafie, Gemma! Você é igualzinha à sua mãe: impulsiva, desobediente e sem noção do próprio lugar!

Gemma ficou parada, o rosto quente, os olhos marejados — mas não chorou. Apertou o passarinho como quem se agarra à última coisa viva que ainda entende ternura.

Do portão dos fundos, Antônio viu tudo. Estava voltando da casinha de Mauro, com as mãos ainda cheirando a graxa, quando ouviu a gritaria. Ficou imóvel na sombra, os dentes cerrados, o sangue fervendo.

“Velha filha da puta”, pensou.

Queria atravessar o gramado, tomar Gemma nos braços, enfiar Suzete dentro daquela festa de merda e fazê-la engolir cada sílaba. Mas sabia que não podia. Não era o momento. Ainda era só o motorista.

Quando Suzete se afastou, bufando e praguejando sobre “criação frouxa”, Antônio correu até Gemma.

— Vem, mocinha… deixa eu ver.

Ela olhou pra ele, o rosto ainda marcado, mas sem medo. Entregou o periquito, confiante.

Antônio examinou o bicho com cuidado, o olhar firme, sereno.

— Dá pra salvar. Eu cuido dele lá na edícula, tá?

Gemma assentiu em silêncio. O outro periquito pousou no ombro dela outra vez, como se entendesse a promessa.

— Vai se limpar, antes que aquela vaca volte — murmurou Antônio, baixo, entre os dentes.

Ela sorriu de leve, o primeiro sorriso depois do tapa.

Antônio recolheu os dois passarinhos, os guardou com delicadeza num pano e seguiu pros fundos.

Enquanto o som da festa voltava a crescer no salão, Gemma ficou parada, com o rosto ardendo e o peito apertado — entre raiva e gratidão.

E lá na edícula, Antônio sussurrou pro passarinho ferido:

— Calma, pequeno… o mundo lá de cima é que é doente, não você.

Gemma entrou no quarto com o rosto ainda quente, o corpo inteiro tremendo — não de dor, mas de raiva. A porta bateu com força, abafando de vez o som da festa lá embaixo. A orquestra, as risadas, os brindes… tudo sumiu. Ficou só o silêncio e o latejar na bochecha.

Ela foi direto até a penteadeira, tirou os brincos, arrancou o colar que Suzete tinha mandado usar “pra parecer uma moça de verdade”. O pingente caiu no chão com um tinido seco.

Respirou fundo, os olhos marejados.

Abriu a gaveta de baixo e tirou a foto. A única que tinha.

Aurora.

A mulher da foto sorria com um ar livre, o cabelo solto batendo no vento, o olhar intenso que Gemma herdou sem nunca ter conhecido. Aurora, a mãe que Suzete nunca mencionava sem azedume. A mulher que, segundo as conversas sussurradas da cozinha, tinha sido a vergonha da família — bonita demais, teimosa demais, viva demais.

Gemma se sentou na cama, abraçando a moldura como se fosse o único pedaço de verdade que ainda lhe restava.

— Por que você me deixou aqui, mãe? — sussurrou, com a voz embargada. — Eles me odeiam, me tratam como se eu fosse você… e eu nem sei quem você era.

As lágrimas vieram devagar, quentes, silenciosas. Escorreram até o canto da boca, misturadas com o gosto metálico do tapa.

— A tia me chama de selvagem — continuou, o corpo encolhido. — Mas se ser selvagem é não virar uma boneca igual a ela, então eu quero ser.

A festa seguia distante, abafada, como um eco de outro mundo. O perfume de flores e de álcool vinha pelas frestas da janela, invadindo o quarto escuro.

Gemma apertou a foto contra o peito, os dedos trêmulos.

— Eu queria você aqui. Só pra me olhar e dizer que não tem problema eu ser assim. Que não tem nada errado comigo.

Ficou ali, encolhida, chorando baixo, até o choro virar soluço e o soluço virar silêncio.

No canto da penteadeira, uma pétala caída tremia com o vento vindo do jardim. Lá fora, os periquitos de Antônio piavam fraco, e Gemma, meio entre o sono e a dor, pensou antes de adormecer:

Se eu tivesse conhecido você, mãe, talvez eu já soubesse pra onde ir.

Na manhã seguinte, o sol ainda nem tinha passado direito pelas copas das jabuticabeiras quando Antônio já estava de pé na edícula.

A noite tinha sido curta — Mauro e Dico tinham ido embora tarde, depois do brinde pela nova frota —, mas o sono não veio.

Toda vez que fechava os olhos, via a cena do tapa. O estalo. O rosto de Gemma vermelho.

A velha filha da puta.

Foi olhar o canto da mesa e lá estavam os dois periquitos. O ferido, encolhido num pano de prato, respirava fraco mas firme; o outro, acordado, não saía de perto. Antônio se abaixou, coçou o queixo e falou baixo:

— Bom dia, casal. A noite foi puxada, hein?

Pegou um pedaço de pão, esfarelou, e colocou num pires. O pássaro saudável bicou logo, como se entendesse que ali havia abrigo. O outro ainda só respirava, mas o peito subia e descia com mais ritmo.

Antônio olhou em volta. A edícula cheirava a óleo e sabão — o mesmo ambiente de sempre, simples, mas limpo. De repente, achou que aqueles bichinhos mereciam mais do que um pano em cima da mesa.

— Não vão ficar soltos aqui, não. — murmurou, decidido.

Saiu pro quintal, pegou umas ripas de madeira e um pedaço de tela enferrujada que sobrou de um portão. Em pouco tempo, improvisou uma gaiola. Feita com cuidado, sem luxo — mas firme, segura. Passou a manhã lixando, pregando, cortando arame, o rosto suado, concentrado.

Quando terminou, olhou satisfeito.

— Pronto. Agora vocês têm casa. Melhor que muita gente nessa mansão, viu?

Pegou os dois com cuidado — o ferido, primeiro, apoiado na palma, o outro logo atrás, vigilante. Colocou-os na gaiola, arrumou o pano pra fazer sombra, pôs o pires com água e o outro com farelo.

O periquito saudável subiu num galhinho e começou a piar. O ferido mexeu a asa pela primeira vez desde a noite anterior.

Antônio sorriu, aquele sorriso discreto, de canto, que ele raramente deixava escapar.

— Isso aí… força, rapaz. Ninguém aqui desiste, não.

Sentou no degrau da porta, acendeu o café e ficou olhando os dois.

O som da festa da noite passada ainda pairava fraco no ar, lembrança de um mundo distante.

— Lá em cima o povo vive de mentira, e aqui embaixo a gente dá um jeito de salvar o que é vivo. — falou sozinho, como quem confessa.

O vento da manhã balançava o pano da gaiola, o cheiro de terra subia, e os periquitos piavam juntos, serenos.

Antônio deu um gole no café e pensou em Gemma, no olhar assustado dela segurando o bicho.

— Cê é brava, menina… igual a mãe, aposto. — murmurou.

Ajeitou a gaiola no canto mais iluminado da janela e, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que cuidava de algo que valia a pena.

O sol mal tinha passado pelas cortinas quando Gemma desceu pro jardim. O rosto ainda inchado, o humor arrastando feito passo de domingo triste.

A festa da noite anterior tinha deixado um gosto amargo — o tapa, o olhar de desprezo de Suzete, o silêncio que veio depois.

Lia já tinha saído cedo pra algum evento social; a casa estava calma, mas aquele tipo de calma que pesa, que abafa.

Gemma caminhava devagar até os fundos, o mesmo caminho que fazia quando queria respirar longe dos perfumes caros da mansão.

De longe, viu Antônio encostado na porta da edícula, uma caneca de café na mão e um sorriso discreto quando a viu. Ao lado dele, uma gaiola nova, pendurada num prego, brilhando ao sol.

— Bom dia, mocinha. — disse, baixo.

Gemma forçou um sorriso. — Bom dia…

Antônio apontou com o queixo pra gaiola. — Acho que tem uns amigos querendo te ver.

Ela se aproximou, curiosa. Dentro, dois periquitos — um ainda meio mancando, o outro grudado nele, piando sem parar. O pequeno ferido já se equilibrava no poleiro improvisado.

Gemma arregalou os olhos, levando a mão à boca.

— São eles…!

— São. — Antônio confirmou, com aquele tom sereno de quem não faz drama. — Tão vivos, teimosos igual a você.

Gemma riu pela primeira vez desde o tapa. Os olhos se encheram d’água, mas agora era emoção boa.

— Cê cuidou deles…

— Fiz o que dava. — respondeu. — Mas acho que quem devia cuidar mesmo é você.

Ela ficou sem fala. Antônio abriu a portinha da gaiola e estendeu pra ela.

— Leva pra dentro, mas deixa num lugar com sol. Eles gostam de claridade.

Gemma pegou a gaiola com cuidado, como se segurasse um tesouro.

— Eu vou chamar ele de Bicudo… e ela de Biquinha. — disse, olhando os dois encantada. — Dá pra saber quem é quem, olha, ela é mais arredondada e ele fica todo empinado.

Antônio soltou uma risadinha curta. — Nome bonito. Combina.

Antes que ela pudesse responder, Luciana apareceu correndo pelo gramado.

— Gemma! Cê tá viva? Sumiu depois da festa, achei que tua tia tinha te trancado! — E então viu a gaiola. — Ai meu Deus, que coisa mais linda!

Gemma levantou a gaiola orgulhosa. — São meus. Antônio cuidou deles pra mim.

Luciana se abaixou pra espiar. — Olha o jeitinho deles! Parece até que tão namorando. — E riu, já encantada. — Bicudo e Biquinha, adorei.

Gemma sorriu, leve, o rosto ainda com um restinho de dor, mas o olhar cheio de vida.

— Eles se amam, Lu. Mesmo machucados, não se largam.

Luciana olhou pra ela, depois pra Antônio, que disfarçava o olhar no chão, coçando o queixo.

— É… — murmurou, meio brincando, meio séria. — Amor de verdade é assim mesmo. Aguenta o tranco.

Gemma abraçou a gaiola contra o peito, a cabeça cheia de coisa, mas o coração calmo.

Enquanto ela e Luciana voltavam pra casa, Bicudo e Biquinha piavam juntos dentro da gaiola, e Antônio ficou olhando de longe, o café esfriando na mão.

Um leve sorriso escapou quando ele pensou:

— Se depender dela, esses dois vão viver mais do que muita gente lá de cima.

A alegria das meninas era contagiante até o demônio em salto e laquê aparecer…

Suzete descia a escada do jardim como uma tempestade de veneno: robe de seda, o cabelo ainda preso do jeito perfeito que o cabeleireiro deixara na noite anterior. A visão de Gemma e Luciana agachadas na grama, rindo com uma gaiola nas mãos, já a irritou antes mesmo de entender o que estava acontecendo.

— Mas o que é isso agora?! — a voz dela cortou o ar, aguda e arrogante. — Eu não acredito que você trouxe bicho pra dentro da propriedade, Gemma!

Gemma se levantou de supetão, a gaiola tremendo nas mãos.

— Eles estavam machucados, tia Suzete. O Tonh—

— Cala essa boca! — interrompeu, batendo o salto no chão. — Eu não quero esses troços nojentos aqui! Vão trazer doenças, vão sujar tudo. Já basta o cheiro de óleo vindo da edícula, agora isso?

Luciana deu um passo pra frente, em defesa da amiga:

— Mas Dona Suzete, são só periquitos! Eles são fofos, olha só!

Suzete a ignorou completamente, aquela empregadinha insolente, apontando o dedo pra Gemma.

— Jogue isso fora. Agora. E vá trocar de roupa, parece uma moleca de rua!

Antes que Gemma respondesse, uma voz grave e calma veio do portão lateral:

— Bom dia. Tá acontecendo alguma coisa?

Patrick se aproximava, elegante como sempre, o jornal dobrado debaixo do braço. Tinha aquela gentileza fria de quem não briga, mas também não sente muito.

— Mon amour, o que houve?

Suzete bufou, teatral. — Essa selvagem achou de recolher passarinho doente e trazer para dentro de casa. Daqui a pouco isso aqui vira um zoológico.

Patrick suspirou, ajeitando os óculos.

— Vamos com calma, Suzete. São só aves, não vão fazer mal a ninguém. — olhou pra Gemma e sorriu com condescendência. — Foi muito bonito da sua parte, mademoiselle.

Suzete revirou os olhos, mas recuou um passo, irritada por ser contrariada, e o pior sem poder botar banca, pois era o genro que sustentava tudo.

— Faça como quiser, Patrick. Depois não diga que não avisei. — E saiu, bufando, como quem se sentia ultrajada pelo simples fato de existir ternura naquele quintal.

Gemma segurou a gaiola mais firme, o coração batendo rápido.

— Obrigada, tio Patrick. Eu prometo cuidar deles direitinho.

Patrick sorriu, paternal, já voltando pra casa.

— Eu não duvido. Só… mantenha longe da sala de estar, sim?

Foi quando Lia surgiu pelo portão lateral, vinda da rua. Vestido claro, óculos enormes, o cabelo preso num coque displicente de quem acabou de sair de um café caro com as senhoras da cidade. Parou, observou a cena: Gemma rindo, Antônio em pé a poucos metros, com o olhar de sempre — calmo, firme — e a menina segurando a gaiola como se fosse um presente dele.

Lia sentiu o estômago contrair.

O sangue subiu quente.

Aquele tipo de ciúme que vem de instinto, sem aviso, sem lógica.

— Que graça toda é essa? — perguntou, forçando um sorriso que não alcançava os olhos.

Gemma virou pra ela, animada. — O Tonho cuidou dos periquitos, tia Lia! Ele salvou os dois! Eu vou chamar eles de Bicudo e Biquinha. Olha que lindos!

Lia olhou pra Antônio, e ele, como sempre, abaixou o olhar. Mas ela viu.

Viu o jeito como Gemma falava dele, o brilho no olhar, a admiração pura — e aquilo feriu mais do que qualquer tapa poderia.

— Que interessante — respondeu, a voz doce e fria. — O motorista virou veterinário agora?

Gemma não percebeu o veneno.

— Ele só ajudou, tia. Foi um amor!

Lia forçou o sorriso, mas o maxilar denunciava a tensão.

— Que bom, querida. — virou-se pro homem, o tom seco. — Pode ir, Antônio. Já fez o suficiente por hoje.

— Sim, senhora. — ele respondeu, calmo, e saiu sem olhar pra trás.

Lia acompanhou o movimento dele até desaparecer pela lateral da mansão. Só então virou-se de novo pra Gemma e Luciana.

— Cuidem bem desses bichos, sim. E longe da varanda. Eu não quero sujeira perto das minhas flores.

Saiu também, elegante, fria, mas por dentro em chamas — o coração latejando entre raiva e desejo.

Cada vez que via Gemma sorrir pra Antônio, Lia sentia uma pontada funda: medo de perder o que nunca teve coragem de assumir.

A raiva de Suzete vinha em ondas — uma mistura de orgulho ferido e medo de falência — e fazia barulho nos saltos. Ela cruzou o salão com o colar tilintando, o rosto comprimido numa máscara de elegância rija. Patrick tinha ousado contrariá-la na frente de gente; aquilo, para ela, era imperdoável. Se Ademar não fosse o idiota atolado em negócios mal feitos, não haveria necessidade da caridade daquele francês inútil. Mas não — o casamento com Ademar, que no começo parecia um bilhete premiado, tinha se transformado num pesadelo de empréstimos e contas, sustentado só pelo nome Fabbri. O casamento de Lia com Patrick foi o golpe final do plano: dinheiro entrando, a filha domada — e, de quebra, apagou o fogo na vida que Lia levava com o motorista.

Ela subiu as escadas com passos curtos, respirando como quem vai apertar um parafuso até quebrar. No corredor, as paredes estavam cheias de quadros de famílias respeitáveis; para Suzete eram troféus que precisavam continuar brilhando. Bateu na porta de Lia com a mão firme, sem esperar resposta, e entrou.

Lia estava sentada na borda da cama, o vestido ainda impecável do evento, o rosto pálido por dentro da maquiagem. Havia uma calma tensa em torno dela — aquela paciência de quem aprendeu a decorar emoções — que Suzete odiava. Aproximou-se com um sorriso engendrado de matriarca piedosa, debaixo do qual havia lâminas.

— Filha — começou, voz melosa, — que alegria te ver em casa. Soube que a festa foi um sucesso, só se fala nisso nas colunas!

Lia ergueu os olhos, forçando o sorriso. — Foi só uma reunião, mãe.

Suzete inclinou a cabeça, fingindo preocupação maternal, enquanto cada palavra era uma agulha. — Querida, eu sei que tem sido difícil pra você. Sei dos tratamentos, das injeções, das clínicas caríssimas. Não é barato, eu sei bem…

Lia agarrou a almofada com força, os dedos brancos. A menção da esterilidade queimava como sal. Anos de tentativas, de consultas, de tentativas que terminavam sempre no silêncio de um exame negativo — e a humilhação particular de carregar aquilo numa casa que julgava tanto pela aparência.

Suzete sorriu mais, uma doçura estudada. — Você faz o possível, minha filha. Mas é preciso admitir quando algo não vai bem. Não é falta de querer, às vezes o corpo não responde, não é culpa sua. Mas também não podemos negar… há alternativas. Doa-se uma fortuna por fora e continua a pose. Ou se faz o que for preciso para preservar o nome.

Por que não compra um bebê? Há tantos enjeitadinhos por aí e você sabe que nunca engravidará…

Lia fechou a boca. A voz de Suzete baixou, ficando venenosa como um sussurro. — E já que estamos falando de sinceridade: por que persistir em abrir as pernas pelo motorista? Sério, Lia — riu, uma risada curta e cortante — você se humilha por um homem que não tem nada a oferecer além de favores às escondidas. Quem banca o seu Chanel, quem paga o Chandon, quem sustenta esse teatro todo? Patrick, minha filha. Não o Tonho.

O golpe foi calculado, justo onde sabia que doía. Lia sentiu o rosto explodir em calor. A frase caiu como ácido: anos de tratamento, o desejo de um filho, reduzidos à acusação pública de que ela era uma puta que vendia o próprio corpo por atenção. Havia verdade e mentira ali, tudo misturado, e Suzete gostava de atirar os dois ao mesmo tempo, para confundir.

— Cala a boca, mãe — disse Lia, mas a voz saiu estreita, controlada. — Não fale do que não entende.

Suzete encostou a ponta do dedo na bochecha da filha, num gesto que parecia afago e foi só mais violência. — Eu entendo muito bem, Lia. Entendo que você precisa saciar seus desejos e eu entendo que, se a família desabar, será um desastre. Eu faço o que é preciso. Eu protejo este nome. Você… você age como sempre: abre as pernas, chora depois, e espera que a vida volte ao normal. — E sorriu. — Não me decepcione.

A raiva de Lia virou lava. Tinha cansaço de anos, de humilhações, de tratamentos que sugavam a própria alma. Quando Suzete saiu, deixando o perfume caro no ar e o salão lá embaixo como se nada tivesse acontecido, Lia ficou imóvel um segundo, o peito disparado. Então, num ato que era metade ódio e metade liberação, pegou o frasco de perfume na penteadeira. Jogou tudo sobre o espelho com força. O vidro se manchou de Chanel e, por pouco, não quebrou.

O líquido escorreu como se estivesse apagando aquela imagem que Suzete tanto cultuava. Lia bateu o punho no móvel uma vez, sentiu a dor como prova de realidade, e sussurrou para ninguém: — Foda-se.

O som do vidro sendo salpicado ecoou no quarto como um estalo: era o som da fachada rachando. Ela olhou seu reflexo borrado e, por trás da maquiagem, havia uma mulher cansada, ferida — e com uma raiva que já não cabia mais no peito.

O quarto estava em silêncio — aquele tipo de silêncio que pesa, denso, quase físico. O espelho da penteadeira pingava perfume e rancor. Lia deu um passo, depois outro, até o chão ceder sob o corpo. Caiu de joelhos, depois se deitou inteira, o vestido de seda se amassando no carpete.

Respirava rápido, a garganta fechada, o coração batendo como se quisesse fugir do peito.

As lágrimas vieram sem aviso. E com elas, o passado — cada um dos quatro fantasmas que ela carregava sozinha.

Primeiro.

Vinte e quatro anos. Antônio ainda trabalhava na garagem, jovem, calado, com aquele olhar que dizia mais do que qualquer palavra. Lia lembrava do primeiro beijo, da primeira vez, da culpa e do êxtase misturados. Quando descobriu a gravidez, o desespero foi tão grande que o corpo parecia arder. Suzete foi quem “resolveu”. Um médico discreto, um envelope com dinheiro.

Lia sangrou sozinha naquela clínica fria, segurando o lençol e jurando pra si mesma que nunca mais faria aquilo.

Mentira.

Segundo.

Dois anos depois. Antônio agora dormia na edícula e ela o visitava de madrugada. Lia lembrava do cheiro de sabão, da respiração dele no escuro, e da dor de saber que o que sentiam não tinha lugar. Quando o atraso veio, ela já sabia. Ninguém precisou dizer.

A mãe não soube dessa vez — Lia mesma ligou pro médico. A agulha, o cheiro de álcool, o rosto impassível do homem que não perguntava nomes.

Acordou vazia. E odiou o mundo inteiro.

Terceiro.

Já casada com Patrick. Uma viagem a Paris, uma esperança maldita que nasceu de um engano. Lia sentiu o corpo diferente, uma felicidade cruel — era dele, ela tinha certeza. Do motorista. O sangue nas pernas veio numa manhã gelada. O banheiro do hotel parecia uma cena de crime. Patrick nunca percebeu, achou que era “nervos femininos”.

Lia quis morrer ali, de vergonha e de amor.

Quarto.

O último. Dois anos atrás. Antônio ainda a procurava, mesmo sabendo que era errado, e ela o deixava entrar, se perder nele. Quando o corpo avisou de novo, ela soube que não suportaria mais um fantasma. Chamou o médico de confiança da mãe. Fez o procedimento em casa.

Lembrou do cheiro de éter, da toalha encharcada, do silêncio pesado.

Depois, o vazio. Um tipo de vazio que nem o próprio ar preenche.

Deitada no chão agora, Lia tremia.

Os quatro bebês tinham o rosto dele — ela nunca os viu, mas sabia.

Antônio não sabia de nenhum.

E nunca saberia.

O corpo dela soluçava, os dedos apertando o carpete como se quisessem rasgar o tempo.

A lembrança do toque dele vinha junto, doce e cruel.

A voz de Suzete ecoava em algum lugar da cabeça: “Eu protejo este nome.”

Lia riu — uma risada rouca, amarga, que logo virou choro.

O perfume derramado se espalhava pelo chão, o cheiro de luxo misturado ao gosto do arrependimento.

Ela sussurrou, quase sem voz:

— Me perdoa, Tonho… você nunca vai saber, mas tudo era seu. Tudo.

E ali, sozinha no chão frio, Lia finalmente entendeu o que era estar viva e morta ao mesmo tempo.

Lia continuava no chão, o corpo curvado, o vestido colado na pele pelo suor frio. A respiração vinha entrecortada, o perfume derramado enchia o ar como se quisesse afogá-la na própria culpa. A cabeça girava num turbilhão de lembranças, mas o pensamento fixava sempre no mesmo ponto — ele.

Antônio.

Ela podia ter mentido. Podia ter se salvado socialmente. Bastava um pequeno desvio de coragem, uma mentira dita no tom certo, e Patrick acreditaria. Ele sempre acreditava.

“Amor, estou grávida.”

Ele teria sorrido, feito planos, comprado o berço, anunciado nos jornais de sociedade. Patrick adorava vitrines — era feito pra elas.

Mas Lia nunca conseguiu.

Deitada ali, os olhos abertos e sem foco, ela murmurou pra si mesma, rouca:

— Eu podia ter deixado ele pensar que era dele… os dois últimos…

Pausa.

Um soluço.

— …mas eu não quis. Não consegui.

O amor por Antônio era uma loucura silenciosa, enraizada demais. Era o único lugar onde ela se sentia real, onde não precisava representar nada. E por mais que o mundo inteiro gritasse que era errado, era dele que ela queria tudo. Até o que a destruía.

Ela apertou o peito com força, como se quisesse arrancar o nome dele de dentro.

— Se não puder ter um filho dele comigo… então não vou ter com ninguém.

O pensamento veio simples, absoluto, como sentença.

Patrick podia lhe dar conforto, luxo, status. Mas nunca a fazia tremer.

Antônio, com uma só palavra, fazia o corpo dela se incendiar e o mundo parar.

— Eu te amo, seu desgraçado… — sussurrou, a voz quebrada.

As lágrimas caíam silenciosas. Lia virou o rosto e olhou o teto — o mesmo teto que testemunhara as noites frias, os dias de máscara, os sorrisos de fachada.

Por dentro, algo se despedaçava devagar.

Ela fechou os olhos e viu a imagem de Antônio suado, ofegante, a respiração dele misturada à dela.

E pensou que talvez a maior tragédia do amor não fosse perder — fosse nunca poder dizer a verdade.

Porque, no fim, ela não queria o nome, o dinheiro, nem a vida social perfeita.

Queria um filho dele.

E agora não tinha nem ele, nem os filhos, nem o perdão.

O perfume no chão secava, o espelho rachado refletia um pedaço do rosto dela — um rosto lindo, devastado, e completamente só.

Continua?

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