Antes que pudesse dar mais um passo, a figura afundou. Sem respingos e sem fazer barulho. O rio voltou ao seu ritmo normal, como se nada tivesse acontecido. Arabel permaneceu ali, congelada, com o coração batendo forte, esperando que algo acontecesse.
Nada mais aconteceu. Apenas o murmúrio do rio — algo que pareceu uma risada distante.
Correu de volta ao acampamento para acordar os outros cinco integrantes do grupo:
— Pessoal, acordem! Tem uma menina no rio! Rápido, acordem!
Marcos, Mariana, Natassia, Pedro e Jonas despertaram e saíram das barracas, trocando olhares ainda com expressões sonolentas.
— Venham comigo — disse Arabel, fazendo gestos para que a seguissem enquanto pegava uma lanterna.
Os seis chegaram à beira do rio, mas não havia menina alguma. Tudo parecia normal.
Pedro bufou.
— Arabel, é tarde. Deve ter sido só o reflexo da lua ou, sei lá, sua imaginação.
— Não foi minha imaginação! — retrucou ela, frustrada. — Eu sei o que vi!
Natassia estreitou os olhos, aproximando-se de Arabel com um ar desconfiado. Sem aviso, inclinou-se e aspirou fundo perto dela.
— Você tá cheirando a cachaça.
Arabel recuou, indignada.
— Não é cachaça! Eu só tomei uma cervejinha, só isso!
Pedro se aproximou, fingindo farejar o ar ao redor dela, e abriu um sorriso malicioso.
— Sei... mas tem outro cheiro aqui também. Não me diga que você não andou fumando nada esquisito, né?
Ele deu uma risadinha, e logo os outros o acompanharam, entre olhares divertidos e cochichos abafados.
Arabel sentiu o rosto esquentar.
— Tá bom, tá bom... eu fumei um pouco sim. Mas isso não muda nada! — ergueu a voz, quase implorando. — Eu vi a menina! Eu sei o que vi!
As risadinhas continuaram. Arabel percebeu que sua palavra já estava manchada. Respirou fundo, encarando o grupo com firmeza, determinada a não ceder.
— Estou falando sério! — insistiu, cruzando os braços. — A menina estava aqui!
Por mais que insistisse, o grupo relutava em acreditar. Riam ou balançavam a cabeça. Ainda assim, havia algo no olhar determinado de Arabel que fez Marcos hesitar.
Já de volta ao acampamento, Marcos se manifestou:
— Eu acredito na Arabel. Só não sei o que pode ser.
— Só se ela viu o espírito daquela menina morta pela Feiticeira de Nova Cracóvia — arriscou Pedro.
Arabel já tinha ouvido sua avó Natália comentar algo a respeito.
— Que história é essa, Pedro?
— Bem, em 1966 havia uma mulher morando aqui perto, que todos diziam ser uma feiticeira. Naquele ano, uma menina chamada Iryna foi encontrada morta perto da casa dela. O namorado dessa jovem acusou a tal mulher de ser a assassina.
— Ah! Eu já ouvi essa história — disse Natassia. — Depois que o namorado denunciou a feiticeira, algumas pessoas tentaram matá-la, mas ela se salvou fazendo feitiçarias. No entanto, a casa dela foi destruída. E alguns dias depois, misteriosamente, o namorado morreu afogado.
— Sim — continuou Pedro. — O namorado dela, Ivan, tinha 1,90m e sabia nadar, mas morreu afogado em um rio de apenas 1,50m de profundidade. Dizem que foi obra da feiticeira, que se vingou!
Jonas não se conteve e começou a rir alto:
— Isso não passa de lenda! Não tem feiticeira nenhuma! Pelo amor de Deus!
— Eu concordo com o Jonas — disse Mariana. — Não tem feiticeira, nem fantasma! Vamos dormir, gente! Amanhã a gente volta para Curitiba!
De volta ao acampamento, todos se recolheram sem dar mais atenção às palavras de Arabel. Ela se deitou, mas o coração ainda batia rápido, insistindo na lembrança da figura afundando no rio.
No silêncio da noite, encarou o teto da barraca e se questionou em segredo, apenas no íntimo: Será que foi mesmo real? Ou só fruto da bebida e da fumaça?
Seus olhos pesaram. Entre a consciência e o sono, quando os pensamentos já se dissolviam em imagens soltas, mais uma vez a voz atravessou sua mente como um corte:
— Natália!!! Sua hora está chegando!
Arabel sobressaltou-se, mas já não conseguiu reagir.
O corpo mergulhou no sono, e os sonhos vieram em ondas pesadas.
Foi uma noite de pesadelos. Arabel sonhou que a feiticeira surgia entre labaredas e sombras, estendendo mãos ossudas que puxavam Ivan e Iryna para dentro de um redemoinho escuro. As gargalhadas ecoavam, misturadas ao murmúrio do rio, até se tornarem insuportáveis.
De repente, uma figura conhecida apareceu na margem: Natália, sua avó.
No sonho, o rosto dela estava sombrio, os olhos fundos, a voz carregada de tristeza.
— Arabel... — sussurrou. — Você vai me deixar? Vai me abandonar?
O coração de Arabel se despedaçou.
— Nunca, vó! Eu nunca faria isso! — gritou, tentando correr até ela.
Nesse momento, Arabel acordou do pesadelo com um sobressalto, o coração disparado, o suor frio colando à pele. O grito que quase escapou de sua garganta fez Marcos despertar ao seu lado. Ele se ergueu meio atordoado, mas ao ver a expressão dela, aproximou-se de imediato e a envolveu num abraço firme.
— Ei, calma... tô aqui. O que aconteceu? — perguntou com a voz baixa, ainda rouca de sono.
Arabel se agarrou a ele, quase chorando.
— Foi horrível, Marcos... eu sonhei com a minha avó, com a vó Natália. Parecia tão real... eu acho que pode ser um presságio. Algo ruim vai acontecer com ela...
Marcos a apertou mais forte contra o peito, passando a mão em seus cabelos para acalmá-la.
— Shhh... não fala assim. Foi só um sonho, Arabel. Pesadelo, nada mais.
Ela ergueu os olhos marejados, tentando acreditar.
— Mas... estava tão vívido... como se fosse um aviso.
Ele sorriu de leve, tentando transmitir segurança.
— Olha pra mim. Nada de ruim vai acontecer com a sua avó Natália, ouviu? Eu prometo.
O coração de Arabel ainda latejava de medo, mas naquele momento, envolta no abraço de Marcos, permitiu-se respirar mais fundo.
Ao sair da barraca, os outros já se movimentavam pelo acampamento. Mariana foi a primeira a notar:
— Guria do céu, você tá horrível! O que aconteceu?
Pedro, dessa vez sem ironia, se aproximou e lhe ofereceu uma garrafa d’água.
— Ei, calma. Essas coisas... às vezes acontecem mesmo, sabe? Lugar estranho, silêncio da floresta... mexe com a cabeça.
Natassia, mais sensível, pousou a mão no ombro dela.
— Não precisa ficar sozinha com isso. Se quiser falar, estamos aqui.
Arabel os olhou um por um, emocionada pela mudança de tom. Quis contar o sonho inteiro, mas engoliu as palavras. Ainda não sabia se aquilo era só fruto da sua mente... ou um aviso de algo muito pior.
— Pedro... — disse em voz baixa, quase hesitante. — Ontem você falou da feiticeira. Pode me contar mais sobre ela?
Pedro arqueou as sobrancelhas, surpreso com a pergunta tão cedo, mas logo se ajeitou e respondeu:
— Dizem que a casa onde essa tal feiticeira morava fica aqui perto. Nem dá dez minutos a pé, se souber o caminho.
Mariana, que vinha amarrando os cabelos, logo retrucou:
— Ah, não. A gente precisa se arrumar e ir embora. Não quero ficar rodando por aí atrás de lenda.
Pedro sorriu de canto.
— Não é lenda, Mari. A casa tá lá até hoje. Tá caída, velha... mas existe. Se vocês quiserem, a gente pode ir só dar uma olhada. É rapidinho.
O grupo se entreolhou. Jonas deu de ombros. Natassia parecia curiosa. Arabel, então, falou firme:
— Eu quero ir.
Mariana bufou, mas não conseguiu convencer os outros.
— Tá bom... mas que seja rápido, então.
Para não correrem o risco de se perder na mata, resolveram marcar o local do acampamento. Marcos apontou para um pinheiro imenso, de tronco grosso e imponente.
— Olhem só... o maior pinheiro daqui. A gente tá acampado logo ao lado. Não tem como esquecer.
Pedro assentiu.
— Perfeito. Assim não tem erro.
E assim, os seis começaram a trilhar o caminho em direção à casa da suposta feiticeira.
Depois de alguns minutos de caminhada pela mata, o grupo finalmente parou diante de uma clareira pequena. O chão era irregular, coberto por raízes e folhas secas. À primeira vista, parecia apenas mais um pedaço de floresta.
Pedro se adiantou, apontando com a mão.
— É aqui. Foi aqui que ela morou.
Os outros olharam ao redor, confusos. Mariana franziu a testa.
— Aqui? Mas... não tem nada.
Se Pedro não tivesse indicado, talvez nem percebessem que aquele espaço já tivera vida humana. O que restava eram apenas marcas quase apagadas: um trecho de pedras desalinhadas que sugeriam a base de uma construção, parte do que um dia fora uma parede baixa, agora engolida pelo mato.
O silêncio parecia mais pesado ali. Até o vento soava contido, como se o lugar guardasse segredos.
Jonas chutou uma pedra com a ponta da bota.
— Se não fosse você falar, eu jurava que isso nunca foi uma casa.
Natassia, em silêncio, se abaixou e passou a mão pela base de pedras coberta de musgo.
— Está quase desaparecendo... — murmurou. — É como se a floresta quisesse apagar a memória dela.
Depois de alguns minutos continuaram a caminhada. Pedro começou a guia-los ao local da morte de Iryna.
Seguram adiante, abrindo caminho por uma trilha. Caminharam cerca de duzentos, trezentos metros, enquanto a mata ia gradualmente se abrindo, trocando a opressão das árvores fechadas por um terreno mais espaçado, com o chão coberto de folhas secas e alguns troncos caídos.
— Foi mais ou menos aqui... — disse em tom mais grave. — Nessa região que encontraram o corpo da Iryna Petroski.
O grupo silenciou de imediato. Até Mariana, que antes reclamava, agora encarava o chão com expressão séria.
Arabel se aproximou devagar, como se algo a puxasse. Ao pisar naquele pedaço de terra, sentiu um aperto profundo no peito, tão forte que quase a fez perder o ar. Uma onda de tristeza tomou conta dela, pesada, sufocante.
Seus olhos se encheram de lágrimas, e por um instante esteve a ponto de chorar. Mas respirou fundo, fechou as mãos em punho e conseguiu se conter. Ainda assim, a sensação não passou: era como se a dor de Iryna tivesse ficado gravada naquele solo, ecoando até hoje.
Marcos notou sua expressão e se aproximou, discretamente pousando a mão em seu ombro.
— Tudo bem? — perguntou em voz baixa.
Arabel apenas assentiu, sem confiança na própria voz. Não queria demonstrar fraqueza diante dos outros, mas por dentro sentia-se como se tivesse tocado uma ferida aberta no tempo.
Marcos, ainda com a mão no ombro dela, olhou para Pedro.
— Mas como você sabe que foi exatamente aqui?
Pedro cruzou os braços, respirou fundo e respondeu:
— Meu bisavô era policial na época. Foi ele quem atendeu a ocorrência... quem encontrou o corpo da Iryna. Essa história ficou marcada na família.
Jonas arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Sério?
— Sério — confirmou Pedro. — Ele falava pouco sobre o assunto, mas a gente cresceu ouvindo os fragmentos. Depois minha tia, que hoje é delegada lá na cidade, acabou juntando os pedaços e confirmando muita coisa.
Pedro continuou guiando o grupo até chegarem a uma parte onde o rio fazia uma curva suave, cercada por pedras grandes cobertas de musgo. Ele parou e apontou para a água.
— Foi aqui... — disse em tom baixo. — Alguns dias depois, Ivan morreu afogado.
O rio parecia calmo demais. Pedro ergueu a mão, em alerta:
— Cuidado por onde pisam. Essa região tem cobra, e elas gostam de ficar escondidas nas pedras.
Os garotos se aproximaram da margem e olharam a água. Não parecia ameaçadora — tinha cerca de um metro e meio de profundidade, no máximo. Jonas assobiou, descrente.
— Difícil imaginar alguém de um metro e noventa, que sabia nadar, morrer aqui dentro.
Marcos concordou, franzindo a testa.
— Pois é... não faz sentido.
Pedro encolheu os ombros.
— A explicação mais provável é que ele estivesse bêbado. Era comum pescarem aqui e beberem ao mesmo tempo. Se ele estava sozinho, pode ter perdido o equilíbrio, escorregado, batido a cabeça numa pedra ... algo assim.
Natassia, ainda observando a correnteza lenta, murmurou:
— Ou talvez... não tenha sido só isso.
Pedro assentiu, mas com cautela.
— Também pode ter sido algum animal, ou outro acidente. Um corte, uma mordida... ele se feriu e depois se afogou. Ninguém sabe ao certo.
Decidiram que já tinham visto o suficiente por aquele dia. O silêncio desconfortável que pairava sobre o grupo foi rompido por Pedro, que bateu as mãos para tirar a poeira.
— Vamos voltar. O grande pinheiro vai nos guiar.
De fato, bastou retomarem a trilha que logo avistaram a copa imensa do pinheiro se destacando acima das outras árvores. Aquela árvore parecia um guardião, apontando o caminho de volta.
Quando finalmente chegaram ao acampamento, o clima ficou mais leve. Mariana foi a primeira a rir, tirando a tensão do ar.
Jonas se jogou sobre a mochila e suspirou:
— Eu só quero um banho quente e uma cama de verdade. Curitiba nunca me pareceu tão atraente.
Pedro abriu um sorriso, tentando mudar o tom das conversas.
— Vocês têm que admitir... foi uma boa aventura. Nem todo dia a gente visita os lugares de histórias que assombraram a região.
Marcos começou a recolher os equipamentos, enquanto Natassia ajudava Mariana a dobrar algumas roupas. O barulho das mochilas sendo fechadas e o riso leve que surgia entre eles quebrava, aos poucos, o peso da manhã.
Arabel os acompanhava em silêncio, ainda com o coração dividido entre alívio e inquietação. Tentava entrar no clima descontraído, mas por dentro, a imagem da avó no sonho e o peso sentido no lugar da morte de Iryna não saíam de sua mente.
Enquanto organizavam tudo para a volta, cada um parecia ansioso por retornar à rotina, como se o contato com a cidade fosse suficiente para afastar as sombras daquela floresta.
Eram todos jovens, riam e conversavam, sem perceber que estavam sendo observados por uma estranha em forma de menina.
Por trás das árvores, a menina permanecia imóvel, como se fosse parte da floresta. Sua expressão era ao mesmo tempo curiosa e melancólica, carregando o mistério de uma criatura que pertencia a outro mundo. O vento suave balançava os galhos ao seu redor, mas ela permanecia oculta — um espírito vigilante entre as sombras da floresta.
Quando estavam prontos para sair, Arabel sentiu um vento gelado, como se anunciasse que a menina estava perto. Olhou para Marcos e percebeu que ele também sentira algo, pois se arrepiou.
— Você sentiu algo também? — perguntou Arabel.
— Com certeza — respondeu Marcos.
Arabel foi embora com a certeza de que voltaria a encontrar a menina.
Continua ...