RIO DE JANEIRO
O set de filmagem estava um caos. Entre cabos no chão, refletores ligados e uma dezena de técnicos correndo de um lado para o outro, o cenário improvisado de uma escola parecia ganhar vida própria. As carteiras alinhadas, os cartazes coloridos colados às paredes e o quadro cheio de fórmulas matemáticas completavam a ilusão. No centro de tudo, Narciso, interpretando Karlos, lia a carta que a personagem Dianah havia deixado antes de morrer, vítima de uma bala perdida. Sua voz embargada se misturava ao silêncio absoluto do estúdio, quebrado apenas pelo clique das câmeras.
— No fim, os amores adolescentes não são apenas histórias de juventude. São capítulos que permanecem vivos na memória, lembranças que, anos depois, ainda fazem sorrir ou suspirar. Talvez não sejam eternos, mas são inesquecíveis, e é isso que os torna tão especiais. — disse Narciso, a lágrima descendo pelo rosto.
A câmera se aproximou dele, captando cada detalhe da dor que parecia real, cada tremor da respiração. O elenco que fazia seus colegas de escola e professores mantinha a concentração, sustentando a cena com olhares pesados e expressões sinceras. Era o clímax da série Anjos da Estrada, e todos sabiam disso.
— Corta! — gritou o diretor.
De imediato, o silêncio foi quebrado. Técnicos soltaram o ar, atores se abraçaram, e a equipe correu para reorganizar o espaço. Narciso enxugou rapidamente as lágrimas, ainda imerso no turbilhão de emoções, e foi recebido com aplausos.
— Obrigado, Narciso. Você deu a Karlos aquilo que eu sempre imaginei. — disse Eugênio, o diretor, com brilho nos olhos.
— Eu que agradeço pela oportunidade, Eugênio. Aprendi muito com o seu texto e, principalmente, com o Karlos. Nunca fiz um personagem tão profundo, com tantas camadas. — respondeu Narciso, sorrindo emocionado antes de receber um abraço forte do diretor.
Fotos. Vídeos para as redes sociais para lançamento de Anjos das Estradas. Sorrisos forçados, comemorações ao lado dos colegas de elenco. Por quase quinze dias, aquela equipe trabalhou intensamente para transformar uma história de dor em algo palpável. Narciso era grato por tudo aquilo, mas o cansaço pesava. Em certos momentos, tinha a sensação de estar atuando também fora das câmeras: o garoto de ouro, sempre solícito, sempre de cabeça baixa, sempre dizendo sim.
Depois de retirar a maquiagem e devolver o figurino, Narciso caminhou até o camarim improvisado. Helena, sua mãe, já o esperava ali, ocupada em ligações e anotações sobre futuros projetos.
— Querido, ainda tem uns dias. Você quer ir para a Europa? — perguntou ela, prática, sem levantar os olhos do celular.
— Não sei, mãe. Acho que vou para São Paulo. Os meus amigos estão pensando em fazer uma festinha para comemorar o retorno às aulas. — disse ele, guardando as coisas em sua mochila.
— Deixa eu ver, João Paulo. — soltou Helena, seca.
Narciso a encarou por um instante.
— O que tem o João Paulo, mãe?
— Eu não sei, filho. Isso você que deveria me responder. Tem algo para me contar?
Ele suspirou, tentando parecer despreocupado.
— Claro que não, mãe. Que viagem... A senhora se passa às vezes. Eu só quero curtir com meus amigos. Vamos?
Helena não respondeu de imediato. Apenas comentou, enquanto fechava sua bolsa:
— Inclusive, já tem uma série que vai ser gravada em São Paulo. Dessa forma, você não precisa faltar aulas.
Saindo pelos corredores, Narciso parecia cansado. Mas, ao chegar no carro, antes mesmo de abrir a porta, foi surpreendido por um grupo de fãs que o reconheceu. Em segundos, estava cercado. Celulares erguidos, pedidos de fotos, vozes chamando seu nome. Ele manteve o sorriso no rosto, distribuiu abraços, gravou vídeos, posou para selfies.
No fundo, porém, tudo acontecia no piloto automático. Ele já não distinguia os rostos. Eram borrões sorridentes, vultos que lhe pediam pedaços de si enquanto ele se dividia entre ser Narciso e ser Karlos.
Naquela noite, voltando ao apartamento alugado, pensou nos amigos. Valentim, João Paulo e Joana estavam juntos, rindo em alguma casa de família. Ele não tinha isso. Para Narciso, o lar sempre fora os aeroportos, as salas de embarque, os quartos de hotéis. Ainda assim, talvez, pela primeira vez, pensava em fazer a sua própria vontade.
INTERIOR DE SÃO PAULO
O interior de São Paulo parecia mais frio naquela noite, mas o coração de Valentim estava aquecido pelas mensagens trocadas com Noah.
No celular, a conversa transbordava afeto:
Valentim <3: NOOOOOAAAAAAAAAAAAAAAAH! TÔ COM SAUDADES! (FOTO)
Noahzito: EU TBM!!! SAUDADES DOS DOIS.
Valentim <3: Amanhã vou fazer o teste no Detran. Me deseja sorte.
Noahzito: Boa sorte, amor da minha vida. Vou ter aquilo que todos os boys querem: um namorado milionário e habilitado. Eu sei que você vai fazer o seu melhor. Sabe que eu tenho muito orgulho, né?
Valentim <3: Eu sei. O meu maior prazer é te dar orgulho. Já disse que te amo hoje?
Noahzito: 185 vezes, mas ontem disse 250, então tá me amando menos.
Valentim <3: te amo, te amo, te amo... (uma enxurrada de declarações infinitas).
Noah riu, digitando a última resposta:
Noahzito: Valentim. Vai praticar. Foco!
Valentim <3: (meme fofo) Eu vou, amor, mas lembra que eu te amo!
Ele largou o celular no criado-mudo, ainda sorrindo, quando uma voz abafada ecoou de dentro das cobertas.
— Amor adolescente é um nojo. — reclamou Evelyn, deixando à mostra apenas os olhos.
— A inveja também é. — retrucou Noah, mostrando a língua antes de se jogar em cima da prima.
— O cara é milionário, bonito, gente boa e motorizado. Eu não estou com inveja, eu juro. — disse Evelyn, fingindo chorar.
As risadas ficaram presas entre os cobertores, aquecendo-os contra o frio cortante do interior paulista. Horas se passaram em meio a lembranças de infância e conversas sobre os desafios da vida adulta. Mas a calmaria se quebrou quando Raphael, o pai de Noah, entrou no quarto apressado:
— Doce de Leite está parindo.
Noah não pensou duas vezes. Saiu correndo e chegou ao estábulo, onde um veterinário já atendia a égua. As contrações a fizeram deitar, e dois funcionários tentavam garantir seu conforto, forrando o chão com edredons grossos.
— Senhor — o veterinário olhou para Raphael, que chegava acompanhado de Evelyn — o potro não está vindo. Vou precisar realizar uma episiotomia.
— Episiotomia? — Noah repetiu, o peito apertado.
— É um procedimento controlado para ampliar a dilatação vulvar. Assim, a Doce de Leite conseguirá ter o filhote. — explicou o homem com calma, pegando os instrumentos.
Noah olhou para o pai, aflito.
— Pai?
— Não se preocupe, filho. — Raphael pousou a mão em seu ombro e o puxou para um semiabraço. — A Doce de Leite vai ficar bem.
O garoto tremia. Não sabia se por causa do frio ou do medo de perder a égua que o acompanhava desde a infância. Evelyn, percebendo sua angústia, o abraçou de lado, compartilhando a preocupação.
O procedimento foi rápido. Em poucos instantes, um potro veio ao mundo, ainda envolto por uma película que se rompeu aos poucos. O veterinário sorriu satisfeito.
— A partir daqui, é com ele.
Alguns minutos se arrastaram até que o pequeno animal, trêmulo e cambaleante, conseguiu ficar em pé ao lado da mãe. Doce de Leite, apesar do cansaço, o observava com instinto atento e protetor.
— Isso... isso é normal? — perguntou Noah, a voz embargada.
— Completamente. — respondeu o veterinário.
Noah sorriu, percebendo só então que chorava. Limpou as lágrimas, orgulhoso da força de Doce de Leite, que mesmo depois da dor cuidava com carinho do recém-nascido.
— Vou dar alguns pontos nela e voltarei dia sim, dia não para acompanhar a recuperação. — explicou o veterinário.
Noah não se conteve: abraçou-o apertado.
— Obrigado, doutor. — agradeceu, a voz embargada pela emoção.
— E já decidiu o nome do potro? — Perguntou Evelyn, que estava abraçada a um edredon quase como se fosse um casaco.
— Leite Condensado. — Respondeu Noah com um sorriso. — Ele vai se chamar Leite Condensado.
— É, tio Raphael, do jeito que vai, o Noah logo abre uma fábrica de laticínios. Qual será o próximo, brigadeiro? — brincou Evelyn.
— Pois é, filhão. Agora você tem um neto. A responsabilidade aumentou. — Disse Raphael com seu jeito político de sempre.
SÃO PAULO
Valentim pensava em tudo o que tinha vivido até chegar ali. As dificuldades no ensino, a falta de foco, a instabilidade emocional que tantas vezes o paralisou. Depois de muito esforço, acompanhamento médico e apoio da família, finalmente conseguira tratar o TDAH de forma adequada. Agora estava prestes a realizar um dos maiores sonhos da sua vida: conquistar a habilitação.
Durante as férias, havia treinado intensamente com Raphael, o motorista da família. Além disso, fez aulas extras com seu instrutor, o divertido Mirosmar, um carioca que havia se mudado recentemente para São Paulo e já tinha mais de vinte anos de experiência. Com paciência e carisma, Mirosmar ensinou todos os macetes. Treinaram de dia, de noite, no calor e na chuva. Valentim percorreu os trajetos repetidas vezes, determinado a não cometer falhas. Passar de primeira era uma questão de honra.
— Papo reto, Val — disse Mirosmar, com a intimidade de quem já o conhecia bem. — Não fica bolado, faz tudo o que a gente praticou, tá ligado?
— Sim. Eu treinei muito para esse dia. Vou deixar o Noah orgulhoso. — respondeu Valentim, enquanto aguardava na fila, dentro do carro.
Mirosmar repassou calmamente os passos da prova. Primeiro, estacionar o veículo na área demarcada por balizadores. Depois, seguir o percurso em via pública, enfrentando aclives, declives, cruzamentos, sinalizações e até a prova de parada em subida, com o uso do freio de mão. Cada detalhe seria observado pelo fiscal.
Quando foi autorizado a entrar, o coração de Valentim disparou. Baliza! Suas mãos suavam, mas ele se concentrou. Em poucos movimentos, completou a manobra com perfeição. Seguiu para os aclives, descidas e sinalizações. Tudo correu sem erros. Minutos tensos depois, o fiscal liberou sua entrada na segunda etapa.
— É isso aí, moleque! — comemorou Mirosmar.
— Eu posso desmaiar? — perguntou Valentim, colado ao volante.
— Relaxa, esse teste já é teu. — garantiu o instrutor.
A segunda parte da prova parecia simples: apenas uma volta em um quarteirão. Mas qualquer detalhe poderia custar caro. Valentim respirou fundo e partiu. Pensava em Noah e em seu pai. Victor demorara mais para aceitar a reprovação escolar do filho do que o namoro dele com outro garoto. E aquilo doía.
Atento como um radar, Valentim percebia cada irregularidade dos motoristas à sua volta. Do lado, Mirosmar fazia anotações numa prancheta, sério. Com foco e disciplina, Valentim completou o percurso sem cometer grandes falhas.
Não recebeu o resultado na hora — chegaria por e-mail em até três dias. Agradeceu ao instrutor pela paciência e dedicação e seguiu para casa.
Quando entrou, encontrou Victor e Frida juntos na cozinha, o que não era comum. Estavam preparando uma macarronada de camarão, seu prato favorito. O ambiente era moderno e iluminado, com bancadas de mármore claras, armários embutidos de tom cinza suave e uma ilha central elegante. Três banquetas de estofado claro e base dourada estavam alinhadas no balcão. Valentim se aproximou e se entou em uma delas, observando os pais. Victor, de roupa casual, estava especialmente bonito. Valentim pensou que queria envelhecer como ele. Já Frida usava um vestido branco esvoaçante, sua marca registrada.
— Qual o motivo da festa? — perguntou, desconfiado.
— Você. — respondeu Frida, sem tirar os olhos da panela.
— Recebemos a ligação do seu instrutor. É quase certeza que você passou, filho. — disse Victor, aproximando-se para abraçá-lo. — Estou muito orgulhoso de você. Sei que não falo isso com frequência, mas às vezes você não dá motivo...
— Victor! — interrompeu Frida, o repreendendo.
— Um dia você vai ser pai, Valentim, e vai entender. Muitas vezes tomamos decisões duras porque acreditamos que é o melhor.
— Eu sei, pai. E quero provar que posso ser um filho melhor.
— Você já é, Valentim. É um filho perfeito. — Victor o abraçou com força e beijou-lhe o rosto. — Eu tenho orgulho de ser seu pai. Me desculpa se às vezes coloco uma pressão exagerada sobre você. É que eu não aprendi de outro jeito.
As lágrimas escorreram dos olhos de Valentim. Por muito tempo, sentira-se incompleto, como se faltasse uma peça dentro dele. Mas agora tinha Noah, o tratamento para o TDAH e, sobretudo, a aceitação de seus pais. Estava completo.
— Ei, filho...
— Não se preocupa, pai. É de felicidade. Tive tanto medo de não ser o suficiente para vocês. — confessou Valentim, enxugando as lágrimas.
— Oh, querido... — Frida deixou a panela de lado e correu para abraçá-lo. — Somos os pais mais orgulhosos de São Paulo. E quem deveria pedir desculpas somos nós. — disse, também chorando.
— Vocês dois não têm jeito, né? — murmurou Victor, sentindo algo úmido em seu rosto. Olhou para cima. — Tem alguma goteira nessa casa? — Mas logo percebeu que era apenas uma lágrima escorrendo dele próprio.
FORTALEZA
As férias de Karla haviam sido destroçadas por uma notícia que mudou todo o rumo de seus dias. O pai descobrira sua relação com Breno, mas, ao contrário do que ela esperava, não falou nada. Apenas passou a agir em silêncio, cortando os cartões dela e controlando cada um de seus passos à distância. A mãe, em contrapartida, tentava suavizar a situação. Mandava dinheiro de forma escondida, usando contas de terceiros para não levantar suspeitas. A cada dia, Karla se sentia mais sufocada por aquela situação.
Certa tarde, após uma sessão de massagem, Breno percebeu que a namorada estava diferente. O rapaz, que não suportava ver a tristeza nos olhos dela, decidiu preparar margaritas com limão — uma das bebidas favoritas de Karla.
— Você está diferente — comentou ele, sem rodeios, como sempre fazia.
— Não é nada, amor... — respondeu ela, desviando o olhar.
— Karla, eu fiz alguma coisa? Ou alguém te fez algo? Se a Bárbara...
— É o meu pai, Breno. Ele descobriu sobre nós. A mamãe está tentando apagar o incêndio, mas...
Breno suspirou fundo. — Entendi. Você quer que eu fale com ele?
— Não. O meu pai é um homem velho e conservador, mas não é uma pessoa ruim — disse ela, mais revoltada do que triste.
— Sinto muito por isso, Karla.
— Nem toda família é igual a tua ou a do Valentim. — O lamento saiu como um peso da garganta. — Eu só quero esquecer. Quer saber? Vamos nos divertir?
— Você quer voltar para São Paulo?
— Eu só quero esquecer, Breno! — exclamou ela, antes de desabar em lágrimas nos braços do namorado.
Durante o resto das férias, Karla se manteve afastada da família de Breno. Ele justificou à irmã, Bárbara, que a namorada estava chateada com os pais, mas preferiu não revelar o verdadeiro motivo. Breno odiava vê-la naquele estado. Por isso, a chamou para uma conversa séria.
Disse que não queria ser motivo de briga entre Karla e o pai, que se sentia desconfortável nesse papel. Contou também que estava cansado de ter que se provar o tempo todo, de justificar sua própria existência.
— Breno, você quer terminar comigo? — perguntou Karla, já com lágrimas nos olhos.
— Eu acho que precisamos de um tempo, Karla. Não quero terminar, só quero que você se resolva com o teu pai. Pensa comigo: sem mim na equação, o teu pai vai te deixar em paz. Depois, a gente pode se encontrar em outro momento na vida e...
Karla não o deixou terminar.
— Sabe de uma coisa, Breno? Eu odeio pessoas covardes. Por muito tempo, eu fui uma pessoa covarde, mas não vou terminar contigo por causa de um luxo do meu pai.
Irada, juntou todas as roupas e pediu que o namorado a levasse até o aeroporto. Enquanto isso, em São Paulo, seu pai organizava uma festa para alguns convidados da alta sociedade paulista. Seus dois filhos, Kevin e Konstantino, estavam lá com as esposas, cumprindo o papel de agradar ao patriarca, dono de um dos maiores bancos do país — herança de diversas gerações.
Após mais de oito horas entre voo e escala, Karla se arrumou durante o trajeto. Ao desembarcar, pediu um carro por aplicativo e seguiu diretamente para casa. Durante o caminho, pensava em todas as formas possíveis de enfrentar o pai. Queria destruí-lo com palavras, liberar as verdades que estavam presas na garganta.
Mas, ao chegar, de longe, notou a barraca montada no jardim para a festa. A tenda branca, iluminada por fios de pequenas luzes amareladas, brilhava contra o céu escuro, como um palco elegante para os convidados. Porém, algo destoava da cena: uma ambulância estacionada ao lado.
O coração de Karla acelerou. Ela se aproximou e, ao romper a multidão curiosa, viu o pai sendo atendido por dois paramédicos. O corpo dele estava estendido, e a mãe, desesperada, chorava ao lado.
— Karla! — a mulher gritou ao vê-la e correu para abraçá-la.
— O seu pai infartou, filha.
— O quê? Como assim?
— Ele está lutando pela vida — lamentou, quase sem forças.
A caminho do hospital, Karla relembrou diversos momentos que viveu ao lado do pai. Ele nunca fora um homem afetuoso, mas também nunca a tratara com crueldade. Sempre fez seus caprichos, nunca negou nada material. Mas, quando ela terminou com Valentim, algo mudou. Ele a olhava de forma diferente, mais distante, como se tivesse descoberto um segredo que não podia aceitar.
São Paulo
As férias geralmente eram um período de celebração, mas, naquele início de ano letivo, a festa que estava marcada para abrir o calendário escolar se transformou, de forma dolorosa, em um enterro. O Cemitério do Morumbi, com sua vasta área verde, o gramado bem cuidado e as lápides discretas alinhadas no chão, recebia um cortejo solene.
Entre flores coloridas depositadas sobre a grama e árvores que balançavam ao vento, o silêncio só era quebrado pelo som abafado dos motores das limusines pretas que chegavam uma após a outra, trazendo personalidades da alta sociedade.
A morte de Conrado Barros de Souza, patriarca de uma das famílias mais influentes do país, repercutira internacionalmente. Jornais da Europa e da América do Norte estampavam sua foto nas capas, destacando a importância do banqueiro no cenário econômico. Até mesmo a presidente do país, Ana Tereza, fez menção pública à sua trajetória, reconhecendo-o como "um homem que marcou a história financeira do Brasil".
Agora, diante da última despedida, a família Barros de Souza se reunia em torno do caixão. Karla, Kevin e Konstantino desempenhavam seus papéis de filhos e herdeiros, cada um com expressões diferentes, mas unidos pelo luto. Karina, a viúva, não escondia as lágrimas nem os soluços, agarrada à lembrança do homem com quem compartilhara tantos anos de vida.
Amigos próximos também compareceram. Valentim, Noah, João Paulo e Narciso estavam ali, silenciosos, prestando apoio a Karla em um momento tão delicado. Seus pais também marcaram presença, entendendo que aquela jovem era mais do que colega de seus filhos — era parte de suas histórias.
Joana, mãe de João Paulo, se aproximou de Helena, mãe de Narciso, e as duas se cumprimentaram com respeito, trocando palavras baixas de consolo. Raphael e Gabrielle, pais de Noah, se encontraram novamente com Victor e Frida, pais de Valentim. Já haviam se esbarrado em outros eventos da Discere, mas, naquele instante de dor, decidiram que era hora de estreitar os laços. Ficou combinado um jantar em breve, afinal, seus filhos já namoravam havia quase um ano.
Breno também apareceu. O rapaz, ciente do peso de sua presença, preferiu se manter mais distante, observando à margem. Mesmo com os amigos afirmando que não havia problema algum, ele respeitou o espaço da família. Mas quando percebeu Karla afastando-se da mãe por um instante, não resistiu. Aproximou-se e a envolveu em um abraço firme.
— Eu sinto muito que tenha sido desse jeito, amor — lamentou ele, segurando-a com força.
— Eu sei... mas eu me sinto culpada, sabe... — murmurou Karla, com a voz embargada.
— Você não tem culpa de nada, filha. — A voz de Karina surgiu inesperada, surpreendendo o casal. A mãe enxugava o rosto com um lenço, ainda abalada. — O seu pai era um homem de temperamento difícil, mas te amava.
— Meus pêsames, dona Karina — disse Breno, cumprimentando-a com respeito. — Eu entendo se a senhora...
— Não se preocupe, Breno. — Karina interrompeu, segurando a mão dele. — Quando a Karla namorava o menino Cardoso, eu sentia que ela não era 100% feliz. O sorriso estava no rosto, mas eu não conseguia sentir a verdade daquela alegria. Quando ela terminou, parecia que uma nova Karla havia nascido. Mais firme, mais altiva. Obrigada por cuidar da minha menina. — Abraçou-o com força. — E desculpe por qualquer coisa que tenha escutado de nós.
— Tudo bem, dona Karina. O importante é vocês se unirem em um momento de tanta dor — respondeu Breno, emocionado.
Karina deixou o casal a sós para conversar com outros convidados. Breno não perdeu tempo: abraçou Karla e a beijou sem qualquer cerimônia. Já não se importava mais com comentários maldosos ou olhares atravessados.
— Você vai ficar bem, viu? Eu vou estar contigo. E desculpa se em algum momento eu fraquejei.
— Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço, Breno. Quando eu falei que odiava covardes, estava falando de mim. Desde o início, eu deveria ter sido verdadeira com o meu pai. Olha o Valentim... — disse, voltando o olhar para o colega que conversava com os pais de Noah. — Olha tudo o que ele conquistou só sendo verdadeiro consigo mesmo. Você e ele me deram o empurrão que eu precisava. — Ela o abraçou com força.
Após o enterro, Breno seguiu com a família de Karla para a mansão. Enquanto isso, Valentim e Noah decidiram ir com seus pais a um restaurante próximo ao cemitério. Helena, por sua vez, deixou Narciso sozinho, já que tinha uma reunião importante com uma produtora que poderia lançar sua marca de roupas. O ator acabou se juntando a João Paulo e Joana, que não conseguiam pedir um carro por aplicativo.
Enxerido, Narciso pediu a Joana para ficar na casa dela, já que a mãe estaria ocupada o resto do dia. A mulher prontamente aceitou, mas João Paulo não gostou da ideia. Para ele, Narciso, com sua fama e dinheiro, só poderia estar acostumado a mansões. A simplicidade de sua vida não parecia ter nada a ver com a do colega.
No carro, Joana e Narciso conversaram animadamente sobre diversos assuntos — desde moda até viagens que o ator já havia feito. João Paulo, em contraste, ficou quieto a maior parte do tempo, observando a rua pela janela.
Ao chegarem ao endereço, Narciso desceu e olhou em volta. A rua era simples, com pequenos comércios de esquina, vendas antigas e casas modestas. Nada de luxo, nada de ostentação. Apenas o cotidiano comum de famílias trabalhadoras.
Dentro de casa, Joana fez questão de comentar sobre as reformas recentes que conseguiu realizar graças ao emprego conquistado na empresa da família de Valentim. A cozinha refletia seu esforço e carinho: apesar das paredes de cimento cru, tudo era cuidadosamente decorado em tons de rosa. Panelas metálicas brilhavam alinhadas na prateleira, colheres coloridas pendiam organizadas na parede, o fogão estava coberto com um pano vermelho estampado com Mickey e Minnie, e a mesa de vidro recebia uma toalha rendada cor-de-rosa, adornada por um pequeno vaso de flores. No chão, tapetes de crochê rosa davam aconchego ao ambiente simples, mas cheio de personalidade.
Narciso percebeu que o incômodo de João Paulo crescia. O rapaz sumiu, e Joana, percebendo a tensão, brincou:
— Narciso, fica à vontade. Eu vou trocar de roupa e preparar um almoço digno de uma estrela. O quarto do João Paulo fica naquela porta ali.
Curioso, Narciso se aproximou, bateu três vezes, mas a porta acabou se abrindo sozinha. Lá dentro, encontrou João Paulo arrumando o quarto, mas com os olhos marejados.
— Ei, tá tudo bem? — perguntou o ator, entrando devagar.
Narciso estava vestido de forma impecável para o velório, assim como os demais convidados: um terno preto ajustado, camisa branca e gravata escura, o rosto sério e os cabelos arrumados com perfeição. João Paulo, em contraste, usava apenas um moletom preto com capuz, calça jeans e tênis All Star gastos.
— Por que você insistiu em vir? — perguntou João Paulo, em voz baixa.
— Você tem algum problema por eu estar aqui?
— Você ainda pergunta? — João Paulo suspirou, diminuindo ainda mais o tom para não chamar atenção da mãe. — Antes da Discere, eu nunca me importei com roupa ou com onde eu morava, porque todos ao meu redor viviam da mesma forma. Mas vocês... vocês vivem em mansões, têm empregos legais. Eu não pertenço a esse mundo.
— O Valentim passou quase as férias todas aqui.
— Ele é diferente. A nossa amizade começou de um jeito diferente. Eu moro em um lugar simples, Narciso. Você é famoso, tem dinheiro. Eu tô com vergonha, ok?
Narciso respirou fundo.
— Viver em um lugar simples não te faz pior ou melhor que ninguém. Sabe de onde a gente veio agora? De um velório. O pai da Karla era um dos homens mais ricos do país. E onde ele tá agora? A sete palmos do chão. No fim, João Paulo, com dinheiro ou sem, a gente vai pro mesmo lugar.
Ele começou a andar de um lado para o outro, nervoso.
— Você se compara tanto aos outros que esquece quem você é: um cara lindo, inteligente, com amigos que gostam de você por ser você. — A voz de Narciso embargou. — Eu daria tudo para ter o que você tem. Eu daria tudo para ter você.
Ele se aproximou e tocou o rosto de João Paulo.
— Narciso... — murmurou o rapaz, hesitante.
Um beijo foi inevitável. Narciso, o menino que dizia "sim" para tudo, deixava essa máscara para trás. Beijou João Paulo como se sua vida dependesse daquilo. Mas o momento foi interrompido pelo barulho de uma colher caindo no chão.
Viraram e viram Joana parada na porta, boquiaberta.
— Eu... eu não vi nada — disse ela, recolhendo a colher e saindo rápido.
Os dois se entreolharam e começaram a rir.
— Ela deve estar surtando, né? — disse Narciso.
— Provavelmente — respondeu João Paulo, ainda rindo.
Narciso segurou o rosto dele de novo. — Ei, mas eu falei a verdade. Você é o cara mais incrível que eu conheço. Não deixa as coisas supérfluas fazerem você pensar o contrário.
E o beijou mais uma vez, sem medo.