Três semanas. Vinte e um dias desde que Lucas Gabriel começou a trabalhar no Louds. Quinhentas e quatro horas desde que nossos olhares se cruzaram pela primeira vez naquela sala de treinamento, e eu percebi que o corpo que havia tocado no escuro do Cinema Rex agora usava uniforme azul-marinho e organizava prateleiras sob luz fluorescente. Eu tinha virado contador de tempo. Não de forma romântica, daquelas que poetas escrevem sobre, mas de forma obsessiva, daquelas que psiquiatras anotam em prontuários.
Toda quinta-feira às 14h37, Lucas passava pelo corredor de bebidas para repor as garrafas de refrigerante. Sextas, às 10h15, ele ia ao depósito buscar caixas de produtos de limpeza. Terças e quintas, no intervalo das 15h, ele comia no refeitório sentado sempre na mesma mesa do canto, de costas para a janela, mexendo no celular enquanto mastigava devagar.
Eu sabia disso tudo porque tinha acesso às câmeras. Cinquenta telas. Cinquenta ângulos diferentes do supermercado. E nos últimos vinte e um dias, pelo menos quarenta dessas telas estavam focadas em Lucas Gabriel, não era amor. Amor precisa de reciprocidade, de conversas, de construção. Aquilo era outra coisa. Aquilo era fome disfarçada de interesse. Desejo travestido de curiosidade. Obsessão com o disfarce frágil de "estou apenas observando meus funcionários".
Billy me pegou duas vezes olhando para as câmeras com aquele olhar que ele chamava de "tiozão do Grindr stalkeando novinho". Na primeira vez, ele riu. Na segunda, ficou preocupado. Hoje era quinta-feira. 14h35.
Lucas ainda não tinha passado pelo corredor de bebidas, meus dedos tamborilavam na mesa. Meu celular vibrou. Mensagem do RH sobre não sei o quê de relatório. Ignorei. A tela do monitor mostrava o corredor vazio. Produtos alinhados. Chão brilhando. Nenhum Lucas.
[14h36.]
Meu estômago fez aquele nó que faz quando você está esperando alguém que não prometeu aparecer. Quando você criou uma expectativa sozinho e agora está pagando o preço por isso, deu 14h37 e ele apareceu, empurrando o carrinho de reposição, camiseta do uniforme um pouco justa demais no peitoral, calça cargo azul-marinho que descia no quadril de um jeito que não deveria ser permitido em ambiente corporativo. Cabelo bagunçado. Olheiras leves. Aquele ar de quem tinha dormido pouco ou transado muito.
Ele parou na frente da prateleira de Coca-Cola, pegou uma caixa, levantou os braços para colocar as garrafas na prateleira superior. A camiseta subiu. Um pedaço de pele. A linha do abdômen. O elástico da cueca, eu estava sozinho no escritório, mas mesmo assim senti vergonha, não da excitação, essa eu já tinha aprendido a carregar como algo inevitável. Mas da matemática cruel: eu tinha trinta e oito anos, cento e vinte quilos, e estava trancado num escritório assistindo um garoto de dezenove anos através de uma câmera de segurança como se fosse pornografia gratuita. Lucas terminou de repor as garrafas, ajeitou a camiseta, pegou o carrinho e saiu do enquadramento da câmera, desliguei o monitor e então respirei fundo.
Abri a gaveta, peguei a garrafa de água que estava ali desde a manhã, bebi metade num gole só, meu reflexo apareceu na tela preta do computador desligado. Barba por fazer. Olheiras. Cabelo cortado no estilo militar porque era prático, não porque ficava bonito. Camisa social amarrotada mesmo sendo quinta-feira de manhã. Billy tinha razão. Eu estava largado.
Mas o que Billy não entendia — o que ninguém entendia — é que se arrumar exige esperança. Exige acreditar que alguém vai olhar. E quando você passa três anos sendo invisível em aplicativos de pegação, em bares, em baladas, você para de acreditar, você para de tentar, você engorda mais, porque a comida não exige que você esteja arrumado. A comida não swipe pra esquerda. A comida não te rejeita. E então você vira isso: um homem de trinta e oito anos trancado num escritório, assistindo garotos que nunca vão te querer através de uma tela.
***
Quinta-feira à noite. 21h30. Eu estava no Cinema Rex, não tinha planejado ir. Ou talvez tivesse. Talvez o dia inteiro tivesse sido uma longa preparação para esse momento, desde a hora que acordei até a hora que saí do supermercado, dirigi até em casa, tomei banho, troquei de roupa e dirigi até o centro da cidade. O Rex ficava numa rua lateral do centro, perto daquela praça que virou ponto de ônibus e nunca mais foi praça de verdade. A fachada era discreta: letreiro apagado pela metade, porta de vidro espelhado, aquele tipo de lugar que você só entra se souber o que vai encontrar lá dentro. Paguei os doze reais na bilheteria. O atendente nem olhou pra mim, entrei, o cheiro era sempre o mesmo: desinfetante de pinho barato misturado com suor velho e desespero recente. As luzes eram fracas, de propósito, porque ninguém vai ao Cinema Rex pra ver. A gente vai pra não ser visto.
Tinha uns dez homens espalhados pela sala principal. Velhos, na maioria. Um ou outro da minha idade. Alguns assistindo o filme pornô que passava na televisão de tubo. Outros apenas circulando, olhando, negociando silenciosamente, eu me sentei numa cadeira do fundo. Fingi assistir o filme. Era algo envolvendo um entregador de pizza e uma dona de casa entediada. Actuação horrível. Diálogos piores ainda. Mas ninguém ali estava prestando atenção no roteiro, eu estava procurando Lucas, sabia que era patético. Sabia que era errado. Sabia que se alguém do trabalho me visse ali, seria o fim da minha carreira. Mas o cérebro obsessivo não funciona com lógica. O cérebro obsessivo funciona com necessidade, e eu tinha necessidade de ver. De tocar. De confirmar que aquela pessoa existe fora da sua cabeça, fiquei ali por quarenta minutos. Lucas não apareceu, mas outras pessoas apareceram. Um senhor de uns sessenta anos se sentou ao meu lado. Colocou a mão no meu joelho. Eu tirei. Ele insistiu. Eu me levantei e fui para outra cadeira.
Cinco minutos depois, um rapaz mais novo — devia ter uns vinte e cinco — se aproximou. Bonito. Corpo atlético debaixo da camiseta regata. Tatuagem no braço direito. Ele se sentou na cadeira ao lado da minha.
— E aí — disse ele, voz baixa.
— Oi — respondi, sem olhar.
— Primeira vez aqui?
— Não.
— Quer ir pra cabine?
Olhei pra ele pela primeira vez. Rosto simétrico. Olhos claros. Sorriso fácil. O tipo de cara que, em outra vida, eu teria achado atraente. O tipo de cara que provavelmente me achava atraente agora, aqui, neste lugar onde os padrões eram diferentes.
— Quanto? — perguntei, porque era mais fácil do que explicar que eu não estava interessado.
— Nada — ele disse, e pareceu genuíno. — Só estou afim de gozar – ele disse pegando em seu pau com a mão cheia.
Companhia. Aquela palavra soou estranha ali. Companhia era coisa que pessoas normais procuravam em bares, em aplicativos, em festas. No Cinema Rex, a gente procurava corpos. Transações. Alívio rápido.
— Não, obrigado — eu disse.
— Tem certeza? — ele insistiu, colocando a mão no meu pau. — Você é bonito. Gosto de cara com seu tipo.
"Com seu tipo." Ele quis dizer gordo. Ele quis dizer mais velho. Ele quis dizer o tipo de cara que, em qualquer outro lugar, seria invisível, mas aqui poderia ser desejado se abaixasse os padrões o suficiente.
— Tenho certeza — repeti, e me levantei.
Saí do cinema sem olhar pra trás.
No carro, sentado no estacionamento vazio, eu fiquei pensando nisso, um cara tinha me oferecido sexo. De graça. Sem transação. Sem mentira. Apenas... interesse. E eu tinha recusado, por quê? Porque ele não era Lucas Gabriel. E ali estava o paradoxo: eu queria alguém que não me queria, e rejeitava quem estava disponível.
Era como aquelas mensagens do Grindr que eu ignorava. Aqueles caras que mandavam "oi", "tudo bem?", "você é gato", e eu deixava no vácuo porque não eram o perfil que eu tinha clicado. Porque não eram a foto que tinha me chamado atenção. Porque não eram o impossível que eu tinha decidido perseguir.
Ou como Instagram. Quantas vezes eu tinha visto stories de caras que me seguiam, que curtiam minhas fotos, que claramente estavam interessados, e eu fingia não ver? Quantas vezes eu ignorei DMs porque o cara não era "meu tipo", enquanto eu ficava obcecado por alguém que nem sabia que eu existia?
O ser humano — especialmente o ser humano gay — tem uma habilidade impressionante de autossabotagem. A gente quer o difícil. A gente romantiza a rejeição. A gente transforma indiferença em desafio, e disponibilidade em desinteresse.
Talvez seja porque fomos ensinados que amor tem que doer. Que se não dói, não é real. Que se ele responde rápido demais, demonstra interesse demais, está disponível demais, então não vale a pena.
Ou talvez seja porque, no fundo, a gente não acredita que merece ser desejado. Então quando alguém nos deseja de verdade, a gente desconfia. A gente rejeita. Porque deve ter algo de errado com essa pessoa se ela gosta de algo tão errado quanto nós. Liguei o carro e então dirigi pra casa, com mais uma frustração na conta. Aquela noite, dormi mal, sonhei com Lucas Gabriel. Não era um sonho erótico. Era um sonho onde eu o via de longe, tentava me aproximar, e ele simplesmente desaparecia. Como fumaça. Como promessa que nunca foi feita.
***
Sexta-feira de manhã, Billy me encontrou no corredor de laticinios. Ele chegou patinando, como sempre, com aquele sorriso que parecia pintado no rosto mesmo quando o dia estava uma merda.
— Chefinho! — ele cantarolou, parando ao meu lado com uma gracinha calculada.
— Oi, Billy.
— Você tá com uma cara... — ele fez uma pausa dramática, estudando meu rosto. — ...de quem comeu um salgado requentado e tá com azia.
Eu ri. Impossível não rir quando Billy estava por perto.
— Dormi mal — eu disse.
— Amor, você tá dormindo mal faz três semanas — Billy cruzou os braços, aquele jeitinho afeminado que ele nunca escondia. — E não me venha com essa de que é estresse do trabalho, porque eu te conheço. Você tá obcecado pelo novinho, admite logo.
Olhei ao redor. O corredor estava vazio, mas mesmo assim...
— Billy, para com isso.
— Para nada! — ele retrucou, balançando a cabeça. — Chefe, vou ser sincera com você: você é bonito.
Eu pisquei, surpreso.
— Sério. Você tem um rostinho bonito, altura boa, olho verde que é um crime. Mas miga... — ele me olhou de cima a baixo. — ...você tá largado.
— Eu não tô—
— Tá sim! — ele me cortou. — Quando foi a última vez que você comprou uma roupa nova? Que foi num barbeiro de verdade, não nesse açougueiro que te deixa com cara de recruta? Que foi numa academia? Que comeu uma salada?
Eu não respondi.
— Pois é — Billy continuou. — Você desistiu de você. E aí fica aí sofrendo porque o novinho de 19 anos não olha pra você? Óbvio que não vai olhar! Ele tá na flor da juventude, chefe. Ele quer alguém que tá na luta, não alguém que já desistiu.
As palavras dele doeram. Não porque eram cruéis, mas porque eram verdadeiras.
— Eu não desisti — eu disse, fraco.
— Desistiu sim. Desde que você se separou — Billy encostou na prateleira de iogurtes, seu tom ficando mais suave. — Olha, eu entendo. Divórcio é uma merda. Sair do armário depois de velho é mais difícil ainda. Mas chefe, se você não se cuidar, ninguém vai cuidar de você. E não é sobre chamar atenção de novinho. É sobre você se olhar no espelho e não sentir vergonha.
Silêncio.
Billy tinha aquele dom: falar as maiores verdades com a maior leveza. Como se estivesse te esfaqueando, mas com uma faca de plástico colorida.
— Procura um personal — ele sugeriu. — Começa uma dieta. Compra umas roupas. Vai num dermatologista. Sei lá, faz alguma coisa por você. Porque desse jeito, amor, você vai terminar sozinho comendo miojo e assistindo série ruim.
Eu ri. Um riso meio triste, meio aliviado.
— Você tá certa, Billy.
— Eu sei que eu tô — ele respondeu, piscando. — E outra: para de ficar stalkeando o Lucas nas câmeras, tá bizarro. Se quer falar com ele, fala. Se não quer, esquece. Mas essa de ficar de voyeur é muito creepy, chefe. Tipo Ted Bundy raiz.
— Não é tão—
— É sim! — Billy se afastou, já patinando de costas. — Bora trabalhar, Rodrigo! E marca esse personal hoje ainda. Conheço um ótimo, vou te passar o contato!
E ele saiu, cantarolando alguma música pop que eu não conhecia, deixando um rastro de bom humor e verdades inconvenientes. Fiquei ali, parado, olhando para os iogurtes Danone alinhados como soldadinhos obedientes, Billy tinha razão. Em tudo, eu tinha desistido de mim mesmo. Tinha me deixado engolir pela rotina, pelo fracasso do casamento, pela rejeição dos aplicativos. Tinha enterrado qualquer esperança de ser desejado de verdade debaixo de quilos de comida e camadas de autopiedade.
E o pior: eu estava usando Lucas Gabriel como desculpa. Como fantasia. Como algo inalcançável que justificava minha inação, porque enquanto eu estivesse obcecado por alguém impossível, eu não precisava tentar com alguém real.
Peguei o celular. Abri o Google. Digitei: "personal trainer Natal RN".
Vários resultados apareceram. Academias. Perfis de Instagram. Anúncios.
Cliquei em um. Lucas Maia Personal Trainer. Cinco estrelas no Google. Foto de perfil mostrando um cara forte, sorriso simpático, aquele ar de quem leva o trabalho a sério mas não é babaca, salvei o contato, não liguei ainda. Mas salvei, era um começo.
Segunda-feira, três dias depois, eu estava no depósito conferindo estoque quando vi Lucas Gabriel pela primeira vez fora das câmeras, ele estava carregando caixas de detergente, empilhando numa estante alta. Sozinho. Suado. A camiseta grudada nas costas.
Eu deveria ter passado reto. Deveria ter fingido que estava ocupado e saído dali.
Mas fiquei.
— Precisa de ajuda? — perguntei, e minha voz saiu mais alta do que eu pretendia.
Lucas virou. Nossos olhos se encontraram, pela primeira vez em três semanas, estávamos frente a frente. Sem câmeras. Sem telas. Apenas dois corpos no mesmo espaço.
— Não, tá tranquilo — ele respondeu, e sua voz tinha aquele tom neutro de funcionário falando com chefe.
— Tem certeza? São muitas caixas.
— Eu aguento — ele disse, e havia algo no jeito que ele falou. Não era grosseria. Era... afirmação. Como se estivesse dizendo "eu sei me virar sozinho".
Eu deveria ter ido embora. Mas fiquei ali, parado, igual idiota.
— Você tá gostando de trabalhar aqui? — perguntei, porque não consegui pensar em outra coisa.
— Tô — ele respondeu, pegando outra caixa. — É melhor que os bicos que eu fazia antes.
— Que tipo de bico?
Ele me olhou. Direto nos olhos. E por um segundo — um segundo minúsculo — eu vi reconhecimento. Ou imaginei ver.
— Garçom — ele disse. — Algumas outras coisas.
Algumas outras coisas.
Senti meu estômago revirar.
— Legal — eu disse, estúpido. — Qualquer coisa, se precisar de algo, é só falar.
— Valeu, chefe.
Chefe. Não Rodrigo, saí de lá sentindo-me menor do que quando entrei.
***
O resto da semana passou devagar. Eu liguei pro Lucas Maia Personal Trainer. Marquei uma avaliação. Comecei a prestar atenção no que comia. Comprei duas camisas novas. Fui num barbeiro de verdade, não eram grandes mudanças. Mas eram mudanças. Billy percebeu. Me elogiou. Disse que eu estava "no caminho".
E durante toda aquela semana, eu tentei — juro que tentei — parar de olhar pra Lucas Gabriel, mas então, na sexta-feira, apareceu o Felipe.
Felipe era o novo funcionário. Devia ter uns vinte e três anos. Bonito de um jeito malandro: sorriso fácil, jeito de quem sabia exatamente o efeito que causava. Cabelo com topete, barba bem-feita, corpo atlético debaixo do uniforme, ele era tudo que eu queria ser aos vinte e três anos. E tudo que Lucas Gabriel aparentemente queria ter por perto agora.
Eu os vi juntos pela primeira vez na terça de manhã. Lucas e Felipe no refeitório, sentados na mesma mesa, rindo de algo no celular. O tipo de riso fácil que vem de intimidade recente. O tipo de riso que pessoas atraentes trocam entre si, porque sabem que pertencem ao mesmo clube. Senti algo atravessar meu peito. Não era tristeza. Era mais pesado. Era ciúme. Ciúme de quê? Lucas não era meu. Nunca seria. Eu não tinha direito nenhum sobre ele. Mas o cérebro obcecado não funciona com direitos. O cérebro obcecado funciona com posse imaginária. Nos dias seguintes, eu os vi juntos várias vezes. Felipe ensinando Lucas a usar o leitor de código de barras portátil. Lucas ajudando Felipe a organizar as prateleiras de produtos de limpeza. Os dois saindo juntos no intervalo pra conversar na área externa.
Então fiquei no meu escritório. Olhando as câmeras. Vendo os dois rirem. Conversarem. Existirem no mesmo espaço de forma leve, descomplicada, do jeito que eu nunca existiria.
Billy me pegou olhando de novo.
— Chefe, isso já passou de stalking. Isso é caso de polícia — ele disse, mas não estava rindo.
— Eu só tô conferindo se tá tudo certo—
— Tá nada — ele me cortou. — Você tá consumido. E não é por causa do Lucas. É por causa de você. Você precisa de terapia, amor. Sério.
Talvez ele tivesse razão, mas eu não parei de olhar.
Na quinta à noite, meu celular tocou. Era o Luan, meu cunhado.
— Rodrigo! Como você tá, mano?
— Bem. E vocês?
— Tudo certo por aqui. Olha, to ligando porque o Bernardo tá querendo passar um tempo aí em Natal. Fazer umas entrevistas de emprego, essas coisas. Você se importa se ele ficar uns dias aí com você?
Bernardo. Meu sobrinho. Dezenove anos. O filho da minha irmã que eu mal tinha contato, porque depois do divórcio eu tinha me afastado de toda a família.
— Ah, Luan, não sei se é uma boa ideia...
— Cara, seria uma mão na roda. A Jéssica tá preocupada com ele. Acha que ele precisa de uma figura masculina por perto. E você mora na capital, tem estrutura...
Figura masculina. Estrutura. Como se eu fosse exemplo de alguma coisa.
— Quando seria?
— Final de semana que vem. Só uns cinco dias. Ele é tranquilo, não dá trabalho.
Eu não queria. Não queria ter que fingir que minha vida estava bem. Não queria ter que esconder quem eu era. Não queria ter um adolescente no meu apartamento bagunçado, testemunhando minha solidão. Mas como eu ia explicar isso pro Luan?
— Tá bom — eu disse. — Pode mandar.
— Valeu, mano! Vou passar teu número pra ele. Qualquer coisa, vocês se falam.
Desligamos, fiquei olhando pro celular, sentindo aquele peso que vem quando você concorda com algo que não quer, mas não tem coragem de recusar. Mais uma pessoa pra assistir minha vida desmoronar em câmera lenta.
***
Sexta-feira, 18h30. Fim do expediente.
Eu estava saindo do supermercado quando vi, Lucas Gabriel no estacionamento. Entrando num carro, não era Uber. Não era ônibus. Era um carro particular. Um Fiat Palio prata, velho, com adesivo de time de futebol no vidro traseiro, e o motorista...Eu conhecia aquele cara, não pessoalmente. Mas das câmeras, ele era cliente. Vinha ao supermercado todo sábado de manhã com a esposa e os dois filhos pequenos. Comprava sempre as mesmas coisas: carne, cerveja, fraldas. Um homem comum. Pai de família. Evangélico, provavelmente, pela camiseta de igreja que ele usava às vezes, e também era frequentador assíduo do banheiro masculino do supermercado.
Eu sabia disso porque, como gerente, eu tinha acesso às câmeras de segurança. E porque, como gerente enrustido tentando viver através de telas, eu tinha percebido padrões. Todo sábado, aquele homem deixava a esposa nas compras e ia ao banheiro. Ficava lá dentro por quinze, vinte minutos. Sempre que outro homem entrava, eles demoravam ainda mais.
Banheirão. Aquela prática antiga, perigosa, desesperada, existia desde os anos 80, talvez antes. Banheiros públicos, rodoviárias, shopping centers, supermercados — qualquer lugar onde homens enrustidos pudessem encontrar outros homens enrustidos e, por alguns minutos roubados, serem quem realmente eram, era crime. Ato obsceno. Passível de prisão.
Mas também era válvula de escape. Era o único lugar onde homens casados, pais de família, membros de igreja, podiam experimentar o desejo que passavam a vida inteira negando, eu nunca tinha participado. Não porque achasse errado, mas porque tinha medo. Medo de perder o emprego. Medo de ser exposto. Medo de virar manchete: "Gerente de supermercado preso em flagrante".
Então eu era telespectador. Voyeur involuntário. Eu via nas câmeras, fingia não ver, e sentia aquela mistura estranha de pena e inveja, pena porque aqueles homens estavam presos. Presos em casamentos heterossexuais. Presos em expectativas familiares. Presos em armários trancados com cadeado de igreja e chave de hipocrisia.
E inveja porque, pelo menos, eles tinham coragem de buscar aquilo. Mesmo que fosse errado. Mesmo que fosse perigoso. Eles agiam, eu só assistia e deixava minha imaginação trabalhar, e pensava em vários detalhes sórdidos, que eles poderiam estar fazendo ali dentro, infelizmente não tinha câmera de segurança dentro do banheiro.
E agora, Lucas Gabriel estava entrando no carro daquele homem, senti o ciúme explodir no meu peito como bomba. Ciúme irracional. Ciúme doentio. Ciúme sem direito, sem base, sem lógica, Lucas não era meu. Nunca foi. Eu tinha transado com ele uma vez, num cinema pornô, pagando quarenta reais. Isso não criava vínculo. Isso não criava posse. Isso não criava nada além de uma transação comercial esquecível. Mas meu cérebro obsessivo não entendia isso, meu cérebro obsessivo tinha transformado aquele encontro de dez minutos numa história. Numa possibilidade. Num futuro que nunca existiu.
E agora, vendo Lucas entrar naquele carro, sorrindo pro homem casado que provavelmente ia levá-lo pra algum motel barato, eu percebi a verdade:
Eu estava obcecado por alguém que mal sabia que eu existia, eu tinha construído uma fantasia inteira em cima de um corpo que eu tinha tocado no escuro. Eu tinha passado três semanas assistindo ele nas câmeras, criando narrativas, imaginando conversas, projetando sentimentos que nunca foram correspondidos, e tudo isso estava me consumindo, estava me fazendo pior. Estava me fazendo menor. Estava me fazendo doente.
Entrei no meu carro. Liguei o ar-condicionado. Encostei a cabeça no volante. E pela primeira vez em três semanas, eu chorei. Não de tristeza. Mas de exaustão. Exaustão de carregar um desejo que não tinha futuro. Exaustão de querer alguém que não me queria. Exaustão de ser invisível enquanto fingia que estava vivo. O carro do homem casado saiu do estacionamento com Lucas dentro. E eu fiquei ali, sozinho, no escuro, percebendo que talvez Billy estivesse certa. Talvez eu realmente precisasse de terapia. Porque aquilo não era amor. Não era desejo saudável. Não era atração normal. Aquilo era obsessão. E obsessão, no final, sempre destrói quem obsessiona. Não o objeto, não osujeito, e sim eu.
