O casal de namorados saiu do apartamento de Antônio e pegaram a estrada, deram uma pequena parada para almoçar e chegaram até a pousada que reservaram em Nova Cracóvia.
Quando estacionaram o carro, Arabel viu que a avó lhe passou mais uma mensagem com horário de 2 horas atrás:
“Estou no aeroporto de Brasília aguardando a conexão para Manaus. Por favor não vá a Nova Cracovia, estou com um pressentimento que algo vai acontecer! Essa noite sonhei com a Iryna e com a Helena (a feiticeira)”
Arabel responde apenas:
“Só agora vi a mensagem, não se preocupe vó e apenas curta sua viagem. Se algo acontecer, vai ser coisa boa”
Arabel e Marcos desceram do carro e respiram fundo o ar fresco do campo. Arabel ajeitou a alça da bolsa no ombro, mas não conseguia disfarçar a sensação de formigamento no peito — algo estava para acontecer, e ela sabia que seria marcante.
— Está tudo bem? — perguntou Marcos, observando-a com atenção.
— Sim… só uma intuição. — Ela sorriu de leve, tentando esconder a inquietação. — Acho que essa viagem vai mudar muita coisa pra mim.
Eles caminharam até a recepção da pousada, a porta rangeu suavemente ao se abrir, revelando um ambiente acolhedor, com lareira acesa e móveis rústicos.
Atrás do balcão, estava uma mulher loira, de meia-idade, com olhos azuis intensos e uma postura elegante. Ela parecia esperar por eles.
— Bem-vindos à Pousada Wiedźma — disse a mulher com um sorriso que transmitia calma.
— Obrigada — respondeu com um sorriso cordial. — Temos uma reserva no nome de Arabel Aglaia Nakszynski.
A mulher pediu que assinassem uma ficha e por um breve momento, ficou completamente imóvel. Seus olhos fixaram-se em Arabel com uma intensidade desconcertante — não hostil, mas como se estivesse tentando decifrar algo escondido no rosto dela.
Arabel sustentou o olhar, surpresa, até que o incômodo tomou forma.
— Algum problema? — perguntou, tentando disfarçar a estranheza.
A mulher piscou devagar e recuou levemente, como se só então percebesse o próprio comportamento.
— Ah, me perdoe... não queria te deixar desconfortável. É só que... eu tenho a sensação de já ter te visto antes. Em algum lugar. Você me parece muito familiar.
Arabel respirou fundo e respondeu com um meio sorriso.
— Minha família é daqui, ou pelo menos era. Meus avós nasceram em Nova Cracóvia. Talvez a senhora tenha conhecido algum parente meu.
Houve uma pausa breve. Ela franziu o cenho.
— Hum. Pode ser, sim. A cidade é pequena... e aqui, as famílias acabam se cruzando mais vezes do que se imagina.
Ela entregou a chave do quarto — Uma chave com um pequeno pingente de madeira entalhada com uma flor de wycinanki — e sorriu com gentileza.
— Qualquer coisa que precisar, é só chamar. E... se eu lembrar de onde te conheço, eu aviso.
Arabel agradeceu com um aceno de cabeça, mas à medida que subia a escada estreita com Marcos, o peso do olhar da recepcionista ainda parecia acompanhá-la. Como se, em algum canto da memória daquela pousada, havia algo que insistia em não ser esquecido.
O quarto ficava no segundo andar da pousada, com vista para o pequeno jardim nos fundos. Assim que entraram, Arabel soltou um suspiro aliviado.
— É perfeito... igualzinho às fotos que eu vi na internet — disse, observando os móveis de madeira escura, o edredom bordado com padrões florais poloneses e uma luminária de ferro antigo que lançava uma luz amarelada e acolhedora.
Marcos passou o braço pela cintura dela e se aproximou.
— Mal posso esperar pra gente ficar aqui... a sós, mais tarde — murmurou com um sorriso insinuante, fazendo um leve carinho na bunda dela.
Arabel sorriu e retribuiu com um selinho rápido, os olhos nos dele por um segundo — carinhosos, mas também determinados.
— Eu também. Mas agora não dá pra perder tempo, Marcos. A gente precisa ir logo até a delegacia.
Ele assentiu, ainda com o sorriso nos lábios, e soltou um leve suspiro resignado. Deixaram as malas encostadas ao lado do armário e saíram do quarto com passos apressados. Desceram a escada de madeira, que rangia suavemente sob os pés, e seguiram pelos corredores decorados com quadros antigos e tapeçarias coloridas.
Estavam quase alcançando a porta da frente, já com as chaves do carro na mão, quando Arabel parou subitamente.
Paralisada.
Seu corpo ficou rígido, os olhos arregalados, e a cor escoou de seu rosto como se tivesse visto um fantasma.
Marcos se virou, confuso.
— O que aconteceu Arabel! – diz Marcos assustado
Ela não respondeu de imediato. Apenas levantou um dedo trêmulo e apontou para frente, a voz saindo num sussurro trêmulo, carregada de puro terror:
— Meu Deus... não é possível! fala emocionada, colocando a mão na boca! - É... é a menina que eu vi no rio!
Marcos seguiu a direção do olhar dela, apreensivo. Mas não havia nenhuma menina no corredor.
Apenas um quadro.
Era uma pintura grande, emoldurada em madeira entalhada, pendurada ao lado da janela semiaberta. Representava a figura de uma jovem dentro de um rio, envolta por um cenário de beleza abstrata. Os cabelos longos e sedosos caíam livremente pelas costas até os quadris, entrelaçados com flores silvestres. Musgos e heras adornavam suas mechas, como se a natureza a quisesse como parte de si.
O rosto era de uma beleza sobrenatural — traços finos e simétricos, a pele translúcida e quase luminosa, com um tom pálido que lembrava a morte refletida pela luz da lua. Mas o que mais chamava atenção eram os olhos: verdes, grandes, profundos, expressivos. Eles pareciam vivos. Quase reais.
Marcos se aproximou lentamente, os olhos fixos na figura retratada.
— Fo... foi essa a menina que você viu no rio? — perguntou em voz baixa, hesitante.
Arabel caminhou até ele, ainda com os olhos arregalados. Ficou alguns segundos diante do quadro, estudando cada detalhe, até responder:
— Foi uma figura muito semelhante...
Ambos então olharam para a pequena placa dourada sob a moldura. Nela se lia:
“Mavka” – autora: Patrícia Melnyk.
Seguiu-se um silêncio. Apenas o som distante do relógio antigo da recepção marcava o tempo. Então, como se uma peça de um quebra-cabeça tivesse se encaixado, Arabel exclamou, com uma mistura de espanto e clareza:
— É claro! Eu vi uma Mavka!
Marcos a encarou, confuso.
— Mavka?
Ela assentiu, ainda olhando para a pintura, como se buscasse nela alguma confirmação maior.
— Eu me lembro... Estudei sobre as Mavkas nas aulas de Tradições Eslavas.
Elas fazem parte do folclore da Ucrânia, Polônia, Belarus... — sua voz estava mais firme agora, embora visivelmente perturbada. — São espíritos femininos das florestas e rios. Dizem que são almas de mulheres que morreram jovens, muitas vezes de forma trágica. Algumas lendas falam que elas seduzem os viajantes para afogá-los...
Marcos recuou um passo, a voz embargada pela incredulidade:
— Mas… elas são só mitologia. Não são?
Novamente silêncio! Arabel não respondeu. Não porque duvidasse — mas porque, naquele momento, a palavra "mito" já não parecia suficiente. Algo havia se partido por dentro, e as fronteiras entre realidade e lenda começavam a se dissolver.
Ela voltou a fitar o quadro.
Havia algo ali. Algo antigo, escondido sob camadas de tinta e tempo. Uma presença silenciosa. Arabel se aproximou, sentindo o coração acelerar sem razão aparente. O olhar da Mavka — selvagem, triste, profundo — não era apenas arte: era um espelho. E nela, Arabel via algo que não conseguia nomear. Um reflexo de algo que carregava dentro de si.
Tentou compreender. Tentou alcançar, com a mente e com a alma, aquela figura que parecia chamá-la de algum lugar esquecido. Como se o quadro não estivesse apenas exposto — mas esperando.
E então aconteceu.
Um vento gélido roçou sua nuca. Impossível. Estavam dentro da pousada, janelas trancadas, sem corrente de ar. Mesmo assim, o frio penetrou até os ossos. Seus olhos se fecharam por instinto, e naquele exato instante, o mundo pareceu se afastar.
Por um segundo — ou talvez menos — ela sentiu o corpo leve, como se os pés tivessem deixado o chão. Flutuando. Como se alguma força invisível a envolvesse, suspendendo-a no espaço, arrancando-a do presente.
O ar ao seu redor vibrou com algo que não era som, nem palavra. Uma energia crua, ancestral, que parecia reconhecer sua presença — como se a esperasse. Como se a tocasse por dentro.
E então, do fundo de sua mente, como um sussurro vindo de um outro tempo, ela ouviu uma voz dizer:
— O tempo curvou-se à tua ausência. O vento ainda sussurra o teu nome — Por que voltaste?
Aquela voz cortou o silêncio como uma lâmina fria. Familiar e estranho. Um eco esquecido que fazia sua alma estremecer. Seus olhos se abriram de súbito, e por um momento, não sabia mais quem era — Arabel ou algo mais antigo, algo enterrado sob gerações de silêncio.
Foi Marcos quem a trouxe de volta.
— Arabel… precisamos ir. A delegada não vai esperar. Depois voltamos… e tentamos entender o que é isso.
Ela demorou para responder. Estava ofegante, o corpo trêmulo, como se tivesse retornado de um lugar do qual não sabia ter partido. Desviou os olhos do quadro com esforço, como se se arrancasse de um feitiço.
— Sim… — murmurou, a voz rouca. — Vamos.
Sem mais palavras, os dois caminharam em direção ao estacionamento, a presença da Mavka ainda queimando na memória.
E mesmo quando deixaram a pousada, Arabel ainda sentia. O frio, o vazio no estômago, o peso que ecoava dentro de si como uma profecia.
A Mavka continuava ali — bela, trágica e perigosamente viva. E agora, ela não estava mais apenas dentro do quadro.
Estava dentro dela.
No entanto Arabel procurou voltar a atenção ao peso da missão que tinham naquela viagem. Não era turismo, não era descanso. Estavam ali para abrir as páginas de um passado ainda vivo, ainda pulsante na memória de sua avó.
Quando voltaram ao carro, já havia um ar de seriedade no olhar de ambos. A pousada ficou para trás, a estrada de paralelepípedo que levava ao centro de Nova Cracóvia parecia mais silenciosa do que deveria. Arabel, olhando pela janela, não conseguia se livrar da sensação de que a cidade guardava segredos que esperavam apenas por eles.
— Você está nervosa? — perguntou Marcos, apertando de leve a mão dela.
— Não… quer dizer, um pouco. — ela respirou fundo. — É estranho pensar que vamos mexer em um inquérito de sessenta anos. É como abrir uma porta trancada há tempo demais.
O prédio da delegacia surgiu logo adiante, imponente e gasto pelo tempo. Construído em estilo colonial, as paredes já denunciavam as marcas de décadas, mas ainda transmitiam a solidez. O brasão da polícia, descascado, refletia o sol poente.
Arabel sentiu o coração acelerar. Estava prestes a conhecer oficialmente as linhas de um inquérito que a avó apenas contava em meio a memórias fragmentadas. A morte de Iryna, a jovem que um dia fora o amor proibido da juventude da avó, talvez não fosse apenas uma lembrança dolorida — talvez fosse a chave para entender pressentimentos, sonhos e os fios invisíveis que agora ligavam três gerações.
Marcos estacionou o carro diante da escadaria da delegacia. Eles trocaram um olhar silencioso, como quem se prepara para atravessar um limiar.
— Pronta? — ele perguntou.
— Nunca estive tão pronta. — respondeu Arabel.
Ao subirem os degraus da delegacia, Arabel e Marcos perceberam que não seriam recebidos como estranhos. Logo na entrada, uma funcionária os guiou direto para o andar superior, sem que eles sequer precisassem se identificar.
O corredor cheirava a papel antigo e café recém passado, misturando a rotina policial ao peso de arquivos guardados por décadas. Ao final do corredor, a porta da sala principal estava entreaberta.
Dentro, aguardava uma mulher de presença firme. Era a delegada Sandra. Cabelos pretos, lisos, de olhos atentos e postura ereta, passava a imagem de quem sabia comandar com autoridade, mas também de alguém que sabia ouvir. Ao vê-los, levantou-se de trás da mesa coberta por relatórios e fitas amareladas.
— Arabel! — disse, abrindo um sorriso caloroso. — Finalmente nos conhecemos pessoalmente. Seu avô sempre falou muito de você.
Arabel sentiu um aperto no peito ao ouvir o nome do avô. Ele havia mencionado algumas vezes a amizade com uma jovem estudante de direito que mais tarde seguiria carreira na polícia. Agora, anos depois, essa amizade parecia abrir portas para que ela entendesse um pedaço da história da família.
— É uma honra, delegada Sandra — disse Arabel, um pouco tímida, mas firme no olhar. — Obrigada por nos receber.
— Ora, menina, não precisa agradecer. — Sandra fez um gesto convidando os dois a se sentarem. — Seu avô e eu passamos por tempos difíceis juntos. Quando soube que você queria acesso ao inquérito da Iryna, eu mesma fiz questão de separar tudo.
Sobre a mesa, repousava uma caixa de arquivos antigos, as bordas desgastadas pelo tempo.
Arabel trocou um olhar com Marcos. O coração batia mais rápido. Ali, diante dela, estava a chance de desvendar o mistério que sua avó tanto temia — e talvez de entender por que a memória de Iryna continuava viva em sonhos e pressentimentos.
— Esse caso... ninguém mais procurava por ele. Sorte que ainda estava aqui. A maioria dos arquivos desse período já foi perdida ou extraviada.
Arabel assentiu em silêncio, tocando com mais cuidado cada papel, como quem manuseia relíquias. Era como se ela estivesse abrindo uma cápsula do tempo — mas ao invés de esperança, havia dor e mistério.
O inquérito revelava que Ivan havia procurado a polícia, pouco após o crime. Disse ser namorado de Iryna e alegou ter presenciado seu assassinato. Segundo ele, a autora do crime seria a chamada “Feiticeira de Nova Cracóvia” — uma figura folclórica para muitos, mas com um nome de verdade: Helena Melnyk.
Continua ...
