Depois da tempestade que foi o acidente com meu filho, as coisas pareciam que estavam se normalizando aos poucos, e tudo que eu queria era paz.
Passei o restante do dia ali com Rodrigo, cuidando dele enquanto ainda era permitido as visitas. Coloquei o lençol por cima dele, enquanto o observei tentar fechar os olhos para descansar, mas vez e outra reclamar com um pouco de dor.
— Tá doendo muito, meu amor? — perguntei, passando os dedos em seu cabelo.
— Um pouquinho… — ele respondeu, franzindo o rosto. — Principalmente o bumbum.
Apertei a mão dele, tentando passar alguma segurança que nem eu sentia. — Vai passar, tá? Foi só um susto. — Beijei a testa dele, sentindo o calor da pele. — Tudo vai ficar bem.
Por um instante, fiquei apenas olhando pra ele. Era difícil imaginar que, há poucas horas, eu estava preocupada com reuniões, contratos, números… e agora tudo que me importava era na minha preciosidade ali, deitada na cama.
A porta se abriu devagar, e uma enfermeira entrou. Uma moça simpática, de olhar calmo.
— Boa noite, senhora. Só vim dar isso aqui pra ele não ficar sentindo dor. . — Ela então o medicou, e verificou sua temperatura e ficou e olhando o curativo na testa de Rodrigo.
— Ele vai precisar ficar muito tempo internado? — perguntei, sem disfarçar a ansiedade.
Ela sorriu. — Acredito que até amanhã já possa ir pra casa. Ele só está sentindo dores da pancada, mas não há fratura.
Soltei o ar que nem percebi que estava prendendo. — Graças a Deus…
Olhei para Rodrigo, e ele me encarava com um sorriso preguiçoso. — Eu tô doido pra ir pra casa comer a comida da tia Célia!
— Vai voltar sim pra casa meu amor, amanhã mesmo. — Falei, tentando brincar, mas a voz saiu trêmula. — Promete pra mim que vai tomar mais cuidado quando for montar num cavalo de novo?
— Prometo. — Ele respondeu, com aquele jeito doce que sempre desmontava minha braveza. — Eu não queria te preocupar.
— Eu sei. — Apertei a mão dele de novo. — Agora descansa. Amanhã você vai estar ótimo.
A enfermeira terminou os procedimentos e saiu, deixando o quarto em silêncio. O único som do lado de fora do quarto e a respiração leve de Rodrigo. Peguei o celular pra avisar Amanda que não voltaria pro escritório naquela noite, mas antes que eu digitasse qualquer coisa, a tela acendeu com uma nova mensagem.
“Minhas mensagens de solidariedade a você e ao seu filho. Soube do que aconteceu. Se precisar de alguma coisa, sabe que tem em mim um grande amigo.
Mário.”
Fiquei olhando praquilo por alguns segundos. O coração acelerou. Não sabia como ele tinha ficado sabendo, mas havia sentido algo com a mensagem. Senti uma mistura estranha de surpresa, curiosidade, felicidade, e… algo que eu não queria nomear. Bloqueei a tela e guardei o celular no bolso.
— Quem era, mãe? — perguntou Rodrigo, sonolento.
Sorri e dei um leve tapinha em sua mão. — Ninguém, filho. Só uma mensagem de trabalho.
Ele assentiu devagar, já cedendo ao cansaço. Esperei até ele adormecer completamente antes de levantar da cadeira. Dei um último beijo em sua testa e saí do quarto em silêncio.
Lá fora, o ar noturno estava morno, pesado. Eu seguia pelo corredor do hospital pensando em como aquele dia parecia ter durado uma semana inteira. Tudo que eu queria era um banho e um pouco de silêncio. Mas quando empurrei a porta principal e saí para o estacionamento, parei no mesmo instante.
Ali, encostado em um carro preto reluzente, estava alguém que eu não esperava, me esperando, com um sorriso no rosto como sempre. Era Mário Cassilas.
Meu coração deu um salto. Ele estava de terno escuro, a gravata um pouco afrouxada, as mãos nos bolsos, como se estivesse completamente à vontade. Quando me viu, abriu um sorriso leve — aquele sorriso que parecia conhecer meus pensamentos antes mesmo de eu tê-los.
— Mário? — perguntei, surpresa. — O que está fazendo aqui a essa hora?
Ele se afastou do carro e caminhou em minha direção, com passos tranquilos. — Não poderia deixar de vir. — Respondeu, a voz baixa, firme. — Soube do que aconteceu com o seu filho. Quis desejar melhoras pessoalmente. Falar isso por mensagem foi um pouco rude de minha parte.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele abriu a porta do carro e tirou um buquê enorme de flores — rosas e lírios misturados, delicadamente envoltos em papel branco. Estendeu o arranjo para mim.
— Achei que precisasse de algo bonito hoje. Então, aceita?
Por um instante, fiquei muda. Peguei o buquê devagar, sentindo o perfume das flores se misturar ao cheiro do perfume dele.
— Não precisava ter se incomodado… — murmurei, sem saber bem onde colocar as mãos.
Ele inclinou o rosto, o olhar cravado no meu. — Me incomodar? — Deu um leve sorriso. — Você realmente é uma mulher de fibra, Solange. Forte, decidida… mas hoje, aqui, eu vejo algo além disso. — Fez uma breve pausa, e sua voz ficou mais suave. — Uma mulher sensível. E apaixonante.
Desviei o olhar, sentindo o rosto corar. — Mário… não diga essas coisas. Não é apropriado.
— Talvez. — Ele respondeu, erguendo as sobrancelhas. — Mas é a verdade.
Fiquei sem palavras. Ele parecia se divertir com meu desconforto, mas não de um jeito arrogante — era como se tentasse me ler, entender o que eu não dizia.
— Eu adoraria te convidar pra jantar — continuou, recuando um passo —, mas imagino que tudo que queira agora é voltar pra casa e descansar.
Assenti, aliviada por ele ter dito o que eu mesma não conseguia. — É… foi um dia longo.
Ele olhou por um instante para o chão, depois voltou o olhar pra mim. — Tudo bem. Mas não vou embora sem conseguir pelo menos um sorriso seu.
Aquela frase me pegou desprevenida. Tentei resistir, mas um riso pequeno escapou, leve.
— Pronto. Conseguiu. — Falei.
Ele sorriu, satisfeito. — Então posso dormir em paz.
Por alguns segundos ficamos em silêncio, apenas nos olhando. Aquele tipo de silêncio que fala mais do que qualquer palavra. Porém, quando fui agradece-lo pela gentileza, apareceu ele. Meu ainda marido, Renato.
— Que porra é essa Solange? E essas flores?
Olhei pra ele, com um olhar de desgosto. Mário se virou, e olhou-o diretamente, apontando seu dedo indicador para ele, e se virando para ele em seguida, e perguntou.
— Esse ai é o seu marido, não é?
— EX marido. — indaguei. — Ainda não no papel, mas logo seremos.
— Sol, que sujeito é esse ai? — Ele perguntou.
— Não é ninguém que lhe interesse. Vai embora, não temos nada pra falar. Se quiser ir ficar com o seu filho, pode, mas não me venha dirigir a palavra.
— Olha aqui. — Ele então se aproximou, e pegou meu pulso, onde eu segurava as flores. — Que porra é essa, Solange? Já tá aceitando flores de um vagab— Naquele momento, Mário se aproximou, pegando seu pulso, e o fazendo deixar de tocar o meu.
— Você não está vendo que está sendo inconveniente aqui? — Mário perguntou, soltando o pulso dele. Renato então voltou a sua raiva para ele em seguida.
— Olha o que você faz seu playboy de merda. Vai ficar talaricando a mulher dos outros?
— Mulher de quem, Renato? — Perguntei. — Primeiro que ele não está talaricando ninguém, ele veio ser gentil. Segundo, que eu não sou mais sua mulher, não entendeu isso ainda?
— Sol. — Ele dizia. — Por favor, deixa essa porra ai e vamos conversar em casa. Como duas pessoas civilizadas.
— Eu já disse que não tenho nada pra falar com você. — Respondi. Ele tentou se aproximar, mas Mário entrou entre nós e o encarou.
— Você, preste atenção. Ela disse que não quer conversar, estamos no meio de um hospital renomado. Não comece a causar confusão, tenha um pouco mais de classe, e vá embora. Ou eu mesmo lido com você.
Renato, levou aquilo para o pessoal demais, e assim fechou seu punho, e acertou apenas um soco em Mário. Seu punho foi contra o lado direito do rosto dele e o acertou em cheio, e Mário deu alguns poucos passos para trás. Vi ele fechar o pulso em seguida e pensar em revidar, mas desistiu.
— Você não devia ter feito isso, rapaz. Já falei que estamos em um ambiente inapropriado pra brigas.
— Foda-se você e essa vadia. Eu vou ver meu filho. — Ele em seguida entrou, e eu vi Mário olha-lo naquele momento. Ele fixou por alguns instantes seu olhar nele, para em seguida se virar para mim. Levou em seguida suas mãos em meu rosto, e acariciou devagar.
— Seu ex marido é bem rude, não é mesmo? — Ele disse. — Acho melhor te escoltar até o seu carro.
— Não precisa. — Respondi. — Me desculpe, por ter lhe causado tudo isso.
— Não se preocupe, Solange. — Respondeu ele, enquanto me encarou. — Você merece sempre ser defendida. Mas posso perguntar uma coisa?
— Pode. — Respondi.
— Porque estão terminando?
Naquele momento, baixei meu olhar, e respondi, com uma certa tristeza.
— Porque eu descobri que ele vinha me traindo. Primeiro com a minha sobrinha, depois com uma qualquer. Me propôs até relacionamento aberto. É um absurdo, sabe? Anos de casamento jogados fora.
Mário então me olhou, voltando a acariciar meu rosto, passando os dedos ali. — Você merece muito mais do que essas migalhas. Imagina, querer outras ou até dividi-la, quando se pode se sentir completo com você?
— Não devia falar essas coisas. — Falei, depois num impulso, eu o encarei. — Preciso ir.
— Então vamos. — ele então me levou até meu carro. Abriu a porta do motorista, e como um cavalheiro, me esperou entrar no carro, fechando em seguida.
— Você é linda, Solange. Lembre-se, não precisa ser maltratada, precisa ser amada.
— Boa noite. — respondi.
Estava já no carro meio atordoada, tentando ignorar tudo que aconteceu até ali. Liguei o motor e dei partida, olhando pelo retrovisor. Ele ainda estava lá, me observando, até desaparecer na curva.
Em casa, dispensei o jantar. Célia até insistiu pra eu comer alguma coisa, mas não consegui. Subi direto pro quarto, ainda com o buquê nas mãos, e com a marca no pulso onde Renato segurou. Coloquei as flores sobre a cômoda e fiquei olhando pra elas. Eram lindas, vivas, perfumadas… e me lembravam de um gesto de carinho e nobreza, enquanto também me lembravam de um lado possessivo de um homem que eu pensei que conhecia bem.
Deitei na cama sem trocar de roupa. O corpo doía, a cabeça latejava. Fechei os olhos e, por alguns minutos, pensei em Rodrigo, em como era grata por ele estar bem. Mas logo, inevitavelmente, a situação anterior inundou meus pensamentos.
Mais tarde, ouvi os gritos antes mesmo de sair do quarto. A voz de Renato ecoava pelo andar de baixo, furiosa, exigindo que eu aparecesse. Meu coração disparou, não por medo, mas por exaustão. Aquela cena já se tornara comum demais.
Desci devagar, tentando manter a compostura, enquanto um dos seguranças da casa o impedia de avançar além da sala. Eu havia sido clara: Renato não entrava mais aqui. Essa casa não era mais dele.
— O que você está fazendo aqui, Renato? — perguntei, cruzando os braços e o encarando.
— Eu preciso conversar com você, Solange! — respondeu, visivelmente alterado, e parecia até mesmo levemente embriagado. — É importante!
— Nós não temos mais nada para conversar. Eu já fui bem clara quanto a isso.
— Temos sim! — ele insistiu, avançando um passo antes que o segurança o segurasse. — Eu quero saber quem é aquele homem!
— Que homem? — perguntei, tentando manter o controle, mas minha voz saiu mais fria do que eu esperava.
Ele então olhou ao redor da sala e seus olhos pararam nas rosas. As flores estavam em um vaso sobre a mesa, exalando um perfume suave que contrastava com o veneno que ele trazia na voz.
— Quer dizer então que você me julga por ter amantes… e agora tem um também? — disse, com um sorriso de escárnio.
Eu senti o sangue subir à cabeça. Caminhei até ele e, sem pensar, minha mão foi certeira contra o seu rosto. O som do tapa ecoou pela sala, cortando o ar pesado.
— Você não sabe o que está dizendo! — gritei, com os olhos marejados de raiva.
Renato virou o rosto devagar, a marca da minha mão já começando a se formar em sua pele. Ele me olhou com raiva, e também com medo.
— Eu sei muito bem o que estou dizendo. Você é uma hipócrita, Solange. Me julga, mas já está fodendo com outro homem, que filha da mãe você é!
— Quem você pensa que é pra falar assim comigo? Eu jamais desceria ao seu nível — retruquei, a voz firme. — Aquelas flores foram um presente de um amigo. Um amigo que demonstrou mais generosidade e humanidade comigo do que o meu próprio marido foi capaz em anos.
Renato deu uma risada seca, balançando a cabeça.
— Acha mesmo que eu vou acreditar nisso? Eu conheço você, Solange. Você é intensa, impulsiva… Não me engana.
— Chega! — interrompi. — Você não tem mais o direito de vir aqui me acusar de nada.
— Nós temos um filho! — ele gritou. — Não podemos acabar um casamento assim!
Por um instante, senti o peso dessas palavras. Mas logo lembrei de tudo o que vivi ao lado dele — as traições, as mentiras, e todas as vezes em que pensei que eu é quem tinha algo de errado. Nunca foi.
— Você não pensou no seu filho quando estava destruindo nosso casamento, Renato. — Minha voz saiu baixa, mas cada palavra carregava uma força que eu mesma não esperava. — Agora é tarde demais pra tentar bancar o pai exemplar.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. O olhar dele oscilava entre raiva e arrependimento, mas eu sabia que era só mais uma das máscaras que ele usava quando percebia que estava perdendo o controle.
— Tá bom, Solange. Eu vou embora, se é isso que você quer, mas não vou assinar porra de divórcio nenhum! Isso não vai ficar assim — murmurou, por fim.
Fez menção de se virar, mas o segurança se aproximou para escoltá-lo até o portão. Renato ergueu a mão, recusando a ajuda.
— Eu sei muito bem o caminho da saída — disse, e foi embora sem olhar para trás.
Assim que o portão se fechou, senti minhas pernas fraquejarem. Apoiei as mãos na mesa e respirei fundo. As flores de Mário estavam ali, serenas, como se nada tivesse acontecido. O contraste era quase cruel.
Subi para o quarto, mas o sono não veio. Fiquei olhando para o teto, lembrando de cada palavra, de cada expressão de Renato. A raiva misturada com frustração latejava dentro de mim.
Na manhã seguinte, acordei com uma dor de cabeça insuportável. Era como se a discussão ainda ecoasse dentro da minha mente. Desci as escadas arrastando os pés, e lá estavam elas — as rosas. Ainda frescas, firmes, lindas. O simples fato de vê-las ali trouxe um pequeno alívio. Por alguns segundos, o caos pareceu se dissipar.
Peguei uma delas entre os dedos. O toque das pétalas era suave, quase um lembrete de que ainda existia ternura no mundo.
Foi então que o celular vibrou sobre o balcão. Peguei o aparelho e vi o nome dele na tela. Mário Cassilas.
Abri a mensagem e li em silêncio:
“Precisamos nos ver hoje. O assunto é um pouco delicado.”
Meu coração acelerou. Mário sempre fora direto, mas o tom sério daquela mensagem me deixou inquieta.
Apesar da curiosidade, eu já tinha compromissos para o dia. Meu dia seria apenas do meu filho Rodrigo. Respondi com os dedos um pouco trêmulos:
“Hoje estarei indisponível. Meu filho receberá alta.”
Demorou pouco para a resposta chegar.
“Entendo. Desejo melhoras a ele. Mas é algo que precisa ser tratado pessoalmente.”
Suspirei, apoiando o celular sobre a mesa.
“Podemos conversar na segunda-feira”, escrevi. “O fim de semana será apenas do meu filho.”
Ele respondeu logo em seguida:
“Combinado. Segunda-feira, então.”
Meu filho havia recebido alta e estava bem. Ficou de repouso pela sexta, mas sábado já podia caminhar um pouco. Eu o levei para comer no fim de semana, e fomos no cinema assistir um filme, enquanto tirei um dias da minha empresa. Por causa de todo o processo de divórcio, senti que meu filho precisava de todo apoio do mundo.
Por fim, segunda feira havia chegado. Mário não me mandou mais nada nos últimos dias, tudo para me deixar sozinha com meu filho. Meu ex marido também não apareceu me cheateando. Parecia tudo tão... Normal.
Eu estava a caminho do trabalho quando a curiosidade começou a me corroer. A mensagem de Mário ainda se fazia presente, um misto de curiosidade e também preocupação passavam pela minha cabeça. “Um assunto delicado.” Que tipo de assunto ele poderia querer tratar comigo, e justamente de forma pessoal?
Olhei para o relógio do carro, respirei fundo e, antes que mudasse de ideia, disquei o número dele direto do telefone que tinha em meu carro, e pelo viva voz, resolvi falar com ele, enquanto encarava o trânsito.
Ele atendeu na segunda chamada, com aquele tom sereno e uma leve risada que quase dava pra sentir o sorriso por trás da voz.
— Bom dia, Solange.
— Bom dia — respondi, tentando não parecer tão ansiosa quanto estava.
— Enfim, segunda. — Ele respondeu.
— Eu estava pensando... se você tiver um tempo hoje, posso agendar a sala de reuniões. Assim conversamos sobre o que precisa me dizer.
Ele fez uma breve pausa. E logo respondeu.
— Já tratei disso, na verdade — respondeu. — Reservei uma mesa num restaurante, meio-dia.
— Um restaurante? — perguntei, surpresa. — Por que justamente um almoço?
— Porque o que eu tenho pra dizer não cabe entre paredes de vidro e formalidades — respondeu calmamente. — É algo pesado, e eu achei melhor um lugar mais tranquilo, além do mais, me deve um almoço.
O jeito como ele falava me deixava desconcertada. Sempre tão firme, mas com uma gentileza estranha, quase envolvente.
— Posso saber do que se trata? — perguntei, com um aperto no estômago.
— É sobre a sua empresa, Solange — ele disse, sem rodeios. — Tem algo acontecendo e eu gostaria de dividir com você.
Meu coração gelou.
— Sobre a empresa? O que tem ela?
— Prefiro explicar pessoalmente. Você vai entender quando vir.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. A tensão que as últimas semanas já me traziam parecia se multiplicar dentro de mim.
— Está bem — respondi, por fim. — Nos vemos ao meio-dia, então.
— Estarei te esperando — disse ele, e desligou.
O dia na empresa foi bastante comum. Caio, acabou vindo trabalhar no dia, e sempre prestativo, ajudou a organizar alguns papeis. Como iriamos fechar a compra do terreno para a construção do resort, eu mesma incumbi o mesmo de viajar até lá para verificar melhor como estava tudo. Queria dar mais experiência a ele, era alguém que eu tinha um grande carinho. Ele me contou também que a mãe estava melhorando, isso me deixou mais aliviada. Mas meu coração seguia apertado com a notícia que Mário poderia me dar mais tarde. Quando o relógio marcou 11h40, peguei minha bolsa e fui direto ao restaurante indicado.
Era um lugar refinado, discreto, o tipo de ambiente que transpirava elegância sem esforço. Assim que entrei, fui recebida por um anfitrião de terno impecável.
— Boa tarde, senhora Solange — disse ele, com um leve sorriso. — O senhor Mário já a aguarda.
Assenti e o segui até o salão. Mário estava lá, sentado à mesa perto da janela. Ele logo me notou, e sorriu diante de mim, afastando uma das cadeiras para que eu me sentasse, voltando a sua novamente. Ele parecia completamente à vontade, consultando o relógio de pulso com um ar tranquilo.
— Senhorita Solange — disse, com um leve sorriso. — Que bom que veio.
— Não costumo recusar convites intrigantes — respondi, tentando manter a leveza, embora minha mente estivesse um turbilhão.
Ele me convidou a sentar e fez um gesto discreto para o garçom se aproximar.
— Antes de falarmos sobre o que me trouxe aqui, que tal comermos? — sugeriu. — Não é bom discutir negócios de estômago vazio.
Assenti, ainda tentando decifrar o que se escondia por trás daquele olhar calmo. Fiz meu pedido — salmão grelhado com aspargos e purê de batatas —, enquanto ele optou por um bife ao molho madeira com salada.
— Tem bom gosto — comentei, tentando quebrar o gelo.
— Aprendi que simplicidade às vezes é o que mais satisfaz — respondeu, sorrindo de leve.
Os pratos chegaram pouco tempo depois. Eu mal sentia fome, mas tentei disfarçar. Mário, por outro lado, parecia tranquilo, cortando a carne com precisão.
— Agora que já estamos acomodados — comecei, encostando o garfo no prato —, acho que pode me dizer o que realmente deseja.
Ele limpou os lábios com o guardanapo, depois se inclinou levemente e puxou uma pasta de couro ao seu lado.
— Quero que veja isto — disse, colocando a pasta diante de mim. — Com atenção.
Olhei para ele, hesitante, e então abri a pasta. O que encontrei ali me tirou o ar.
Dentro havia uma pilha de documentos, extratos bancários, relatórios de movimentações financeiras e assinaturas. No topo, o nome de Renato aparecia repetidas vezes. Tinha assinaturas dele, e... Minhas. Mas eu não reconhecia nenhum desses documentos.
Fui folheando com as mãos trêmulas, sentindo o estômago revirar a cada página. As evidências eram claras — ele estava desviando dinheiro da empresa. A empresa que eu construí. A empresa pela qual sacrifiquei noites, fins de semana, até meu próprio casamento.
Meu olhar subiu lentamente para Mário.
— De onde você conseguiu isso? Isso... isso é real? — minha voz saiu quase como um sussurro.
Ele me encarou com seriedade.
— Seu marido por uma coincidência do destino estava querendo fazer negócio com a minha empresa tempos atrás, e eu costumo levantar a ficha de todos os que tentam entrar no meu círculo de negócios, e encontrei tudo isso dele. — fez uma pausa curta. — Sinto muito, Solange.
Afundei as costas na cadeira, tentando processar o que acabara de ver. O barulho dos talheres, as vozes suaves das outras mesas, tudo ficou distante.
—Mas ele nem te reconheceu quando te viu no hospital. Como isso? — Perguntei.
— Bom, na verdade ele nunca me viu pessoalmente. Eu tenho uma sócia, a senhorita Aldama. Ele tratou diretamente com ela. Queria uma oportunidade pra salvar a empresa falida dele.
— Isso não pode ser verdade...
Renato não era apenas o homem que havia me traído. Ele era o homem que roubava de mim. Que roubava da nossa própria casa, do nosso futuro, dos nossos funcionários.
— Eu... não acredito — murmurei, passando a mão pelos cabelos. — Como ele pôde...
— Ele vinha fazendo isso há meses — disse Mário. — Usando o controle parcial que ainda tem sobre algumas ações. Os desvios são pequenos em valores isolados, mas constantes. O suficiente pra não chamar atenção, até agora. Pode ver tudo aí.
Balancei a cabeça, sentindo os olhos arderem.
— E tem até mesmo as minhas assinaturas...
— Mas conseguir isso, na posição dele, não é difícil. — respondeu. — Ele foi casado com você por anos, possuem até um filho. Ele pode ter falsificado a sua assinatura, hoje no mercado negro você encontra gente capaz de fazer isso. Mas nada que um perito não possa comprovar a fraude.
Fechei a pasta devagar, tentando controlar as lágrimas.
— Eu não sei se te agradeço ou se desabo — confessei, com um riso fraco e sem humor.
Mário me observava em silêncio, sem invadir meu espaço, apenas presente.
— Você é forte, senhorita Solange — disse, com a voz baixa. — Eu sabia que não seria fácil pra você ouvir isso, mas... era necessário.
— Sim — sussurrei. — Eu precisava saber.
O silêncio que se seguiu foi pesado, mas não desconfortável. Era o tipo de silêncio que vem quando a verdade enfim se impõe — dura, fria, mas libertadora.
— Você tem agora o que precisa para tomar a melhor decisão sobre tudo isso. — Mário respondeu.
— E você quer que eu faça o quê, Mário? — perguntei. — Colocar o pai do meu filho na cadeia? Rodrigo ficaria arrasado. Mas sinceramente, ele merece. Mas não sei o que pensar.
— Senhorita Solange... — Mário então levou uma de suas mãos até meu rosto. — Você sabe que você pode contar comigo para tudo, não? Independente de sua posição, não estará indefesa. Eu vou cuidar de você.
— Você tem se mostrado um grande amigo até agora. Mário. Muito obrigada por isso.
Minha fragilidade e todo aquele conforto, estavam sendo completamente traiçoeiros diante de toda aquela situação. Eu senti meus lábios arderem como chamas, prestes a avançarem até os dele, mas não o fiz. Acabamos por almoçar normalmente, até que na saída, ele me acompanhou até a porta do restaurante, onde ambos nos encaramos uma vez mais.
— Eu espero que você seja forte com tudo isso, Senhorita Sol. — O interrompi naquele momento, levando meu indicador até os lábios dele.
— Solange, Mário. Não precisa me chamar de senhorita.
— Está bem... Solange. — Ele me respondeu, tocando o meu rosto com suas mãos, envolvendo a maça do meu rosto com elas. Deslizou seus dedos em meu rosto, enquanto me olhava com carinho.
Diante de mim, Mário foi se aproximando e logo seus lábios estavam praticamente envoltos dos meus. Comecei a sentir seus lábios quentes e macios praticamente tocarem os meus ali e logo trocamos um primeiro beijo. Foi breve, mas carregado de algo que eu não conseguia compreender. Afastei-me dele quando me recobrei, e assim o encarei e disse.
— Me desculpe, não deveria ter feito isso!
— Não precisa se desculpar Solange, isso é algo que eu também quero. — Respondeu, enquanto foi aos poucos tirando suas mãos de meu rosto, mas não sem antes acariciar uma última vez.
Nos despedimos e acabei pegando o meu carro e indo para casa. Comuniquei a Amanda que não voltaria para a empresa hoje, ainda tinha que processar tudo o que eu havia acabado de descobrir sobre meu marido. Ainda tinha muitas coisas para resolver, e principalmente o que eu iria fazer com toda aquela informação.
Assim que cheguei em casa acabei tendo uma desagradável surpresa. O carro dele estava estacionado na vaga, o segurança veio até mim e disse que ele pediu para entrar pois gostaria de ver seu filho e ele não sabia o que fazer.
Eu o agradeci por ter me alertado, e disse que não tem problema. Não posso afinal de contas impedir que Renato queira visitar seu próprio filho, então entrei discretamente na casa e ele estava ali, sentado na sala com o menino.
— Olá Solange — ele disse.
— Olá Renato. Oi meu filho. Mamãe vai subir, estou exausta por hoje. Depois quer ir para algum lugar?
— Não mamãe, o papai perguntou se eu queria sair com ele hoje. Eu posso não é?
— Pode sim meu amor, eu já fiquei esse fim de semana todo com você, eu acho justo você ficar um pouco com seu pai.
— Trago ele à noite, Solange. — disse Renato.
— Muito bem. — Respondi
Quando estava subindo para meu quarto, Renato me interrompeu.
— Solange, será que podemos conversar?
Agora não Renato. Mas sim, tem uma coisa que eu quero conversar com você.
Acabei então subindo para o meu quarto e joguei a pasta preta em cima da cama. Fiquei olhando ela por alguns minutos até que da janela ouço o Rodrigo indo com entusiasmo até o carro do pai. Resolvi descer para falar com ele, no entanto, ouço Renato falar no fundo com alguém. Parecia descontraído, mas também discreto.
— Eu só preciso de mais um pouco de grana, ela não desconfia de nada. É uma otária.
Ouvindo aquilo eu só podia ter certeza de uma coisa: ele estava falando de mim. Fiquei quieta na minha, escondida, enquanto ouço ele falar.
— Não, eu não vou dar para trás! Se ela pensa que vai se divorciar de mim e me deixar de mãos vazias ela tá enganada. Eu vou pegar o máximo de dinheiro que eu conseguir dela, podemos depois disso passar uma semana toda no Caribe, trepando o dia inteiro. O que você acha?
Era Renato, combinando com alguma sirigaita alguma forma de me enganar e de me roubar. Mas se ele pensava que iria se dar bem, estava muito enganado. Uma mulher traída pode ser muito mais perigosa do que ele pensa. E Mário iria me ajudar em um plano.