— É impressionante que você consiga ler esse texto em tão pouco tempo de familiaridade com a língua. — Disse a Eric enquanto sentada de frente para ele na mesa redonda que ficava no canto mais afastado da biblioteca. Constatava um fato e não tentava ser elogiosa. Em suas mãos, havia um livro antigo e amarelado. O objeto fedia a poeira, mostrando claras marcas do desgaste. Eu sequer sabia que tal material tinha mesmo sido publicado antes de Eric o apresentar a mim, mesmo que se referisse à minha própria cultura. O garoto de uniforme escolar, camiseta cinza puxada para azul amarrotada e olhos serenos sequer levantou a cabeça para se dirigir a mim.
— Não é tão difícil. Você mesmo me mostrou que o autor é bem medíocre. Os erros de tradução que ele comete explicam porque esse material não foi reimpresso. — Disse ele com a suavidade na voz de quem nem parecia fazer uma crítica tão dura. Devo admitir, Eric tinha razão. Seja lá quem fosse aquele escritor europeu irrelevante do século 19, sua obra era bastante imprecisa na análise dos fonemas do Parãdiyahóe. Ao menos ele se deu ao trabalho de desenhar com o mínimo de fidelidade os artefatos que tipicamente via em minha aldeia antes de vir para tão longe estudar naquele colégio. — Como foi no treino de arquearia? — Ele mudou de assunto e, eu sabia, não deveria ser por interesse, mas porque aquilo fazia parte de nosso acordo.
— Foi bom como sempre. Atingi o centro do alvo 9 vezes seguidas. — Respondi. Eu tinha ido à biblioteca após guardar o arco composto em meu armário, para descansar e trocar algumas palavras com Eric antes de voltar para casa. Quando cheguei, ele me mostrou uma tradução de próprio punho de uma das pedras com inscrições que pertencia ao meu povo. Seu trabalho era bem mais preciso que o do autor que ele estava lendo agora, mas não perfeito, como reparei. O corrigi em algumas questões de concordância antes que ele enfiasse novamente a cabeça naquela literatura antiga.
Era estranha a relação que tínhamos. Raramente conversavamos, no máximo, três vezes por semana e por alguns poucos minutos. O assunto ou era Parãdiyahóe ou trivialidades para atualizar um ao outro sobre nossas vidas. Não sabia se Eric gostava de minha companhia ou se apenas me via como instrutora de línguas. Ele não demonstrava muito suas emoções com sorrisos ou coisas do tipo e eu também não tinha certeza sobre mim. Certamente era um garoto peculiar, sério e bastante objetivo, embora novo, ou, ao menos, era assim que aparentava. Eric tinha feições jovens muito delicadas, sem qualquer resquício de barba no rosto e cabelos cacheados e bagunçados sem um corte muito bem definido. Um rapaz bonito, entretanto, tinha de admitir. Era peculiar como parecia imerso na leitura, embora atento aos seus arredores como sempre. Gostava de observá-lo daquela forma, sereno e silencioso. Sua presença e aquele local me traziam uma sensação de tranquilidade que deixava o dia cheio e cansativo mais leve.
— Parabéns pelo desempenho. — Ele disse sem tirar os olhos daquele livro ou esboçar qualquer reação. Aquela conversa era só protocolo. Eu o olhava com o canto dos olhos, provavelmente sem mais nada para fazer naquele momento de descanso. Aquele rapaz tinha sempre um olhar meio caído, como aquela expressão no rosto de quem não dormiu bem de noite. Suas pálpebras inferiores eram levemente escurecidas quando comparadas à sua pele acobreada. Todavia, ele até que tinha olhos bonitos, castanhos bem claros que brilhavam um tom que misturava cor de avelã com dourado sempre que um raio de sol lhe atingia o rosto.
— Ouvi um boato sobre você e Rivel terem ajudado o presidente a ganhar a última eleição. — Disse a ele de supetão, tal qual era corriqueiro em nossa relação. Eric era bastante direto comigo sempre que podia. No início de nossa relação, aquilo chegava a fazer meu coração acelerar, hoje, já estava mais acostumada com seu comportamento, chegando a replicá-lo sem querer às vezes. Gostava de sua sinceridade para lidar com as pessoas. Ele era tão verdadeiro que chegava a ser curioso como, ainda assim, conseguia ser tão misterioso. Fofocas desse tipo atestavam sua reputação. Eric podia não ser o garoto mais popular em nossa escola, mas, certamente, seu comportamento atípico o tornava em um dos mais comentados.
— E você acha crível? — Ele questionou com naturalidade, ainda lendo aquele livro. Era impressionante como conseguia engajar em uma conversa enquanto fazia algo que demandava tanta atenção, bem como endereçar de forma tão calma algo tão sério. Eu não sabia se sua falta de espanto se devia ao fato do boato proceder, a ele já saber sobre tal fofoca que circulava pelos corredores ou sua atitude estoica de sempre, praticamente inabalável.
— Não. Rivel é um idiota. — Disse-lhe sem poupar minha opinião. Eric deixou escapar um meio sorriso, como se concordasse. — Mas o que eu acho não importa, certo? — Ressaltei, como se o imitasse de forma a tornar meu argumento mais forte. Eric costumava dizer que não tinha opiniões, tamanho seu desdém pelo subjetivo e compromisso com os fatos. Meu comentário demandava dele uma resposta mais contundente a aquela questão sobre a qual possuía certa curiosidade e preocupação.
Tomei um pequeno susto quando Eric fechou aquele livro e me olhou bem no fundo dos olhos. Desviei o olhar em reflexo. Espera, ele sorriu? Reparei atônita.
— E eu não sou também? — Questionou. Estava fugindo do assunto! Percebi em choque, mas porque? Era porque os boatos eram verdadeiros ou porque queria me confundir?
— Você não é idiota Eric. Pare de agir como tal. — Reclamei, pudera, iniciar a conversa por esse assunto tinha a intenção de alertá-lo. Se tal rumor se espalhasse mais, Eric teria um alvo pintado nas costas. Impossível que sua reação calma e indiferente fosse legítima. Ele deixou escapar uma risada abafada, raridade mesmo entre nós dois. Eu nem acreditava que mal conhecia aquele garoto e já tivesse liberdade de falar esse tipo de coisa para ele. — Eu te conheço tem apenas 3 meses e nesse pouco tempo já dá para perceber que você está em outra categoria quando comparado com Rivel e os outros. — Admiti e era verdade. O que mais me irritava naqueles boatos nem era seu tom ressentido e conspiracionista, mas sim o quanto as pessoas eram maldosas com Eric. Rivel era uma figura bastante detestável e de inteligência certamente acima da média, há de se dar a César o que lhe é devido. Por Eric ser também um cara culto e reservado, as pessoas inventaram toda sorte de coisas ao seu respeito, inclusive sobre ele ter tramado um plano maligno junto daquele perdedor.
Antes de conhecer Eric, ouvia muitas suposições infundadas a seu respeito: que ele tinha alguma deficiência mental, que era gay, satanista, comunista, psicopata, um tarado ou coisas ainda piores. Ouvi até algumas coisas tristes e igualmente pouco críveis, sobre sua família inteira ter morrido em um acidente, sobre sua mãe ser uma prostituta viciada em drogas, sobre ele ter apanhado do pai na infância; enfim, qualquer coisa que justificasse sua personalidade séria e isolada. Nunca tive coragem para questioná-lo sobre esses assuntos, uma vez que ele, felizmente, também não perguntava sobre meu passado. Simplesmente não achava justo que as pessoas tivessem tanto preconceito contra uma pessoa que tinha a capacidade de aprender um idioma inteiro em apenas 3 meses! Além disso, Eric era simplesmente a primeira pessoa que, sentia, verdadeiramente me respeitou naquela escola. Ele não se importava com minha origem, não fazia suposições errôneas, mas se interessava e muito pela cultura que vivia 24h do meu dia.
— Obrigado pela estima. — Ele disse ao se levantar, livro guardado em sua mochila com a alça apoiada em seu ombro. Corei quando olhei para seu rosto. Ele portava um meio sorriso, lábios curvados e olhos que não iam de encontro aos meus. Tímido? Eu nunca vi ele ficar assim antes e não sabia como lidar. Meu coração disparou e fiquei em silêncio por longos poucos segundos, até que o sinal tocou.
Ele estava indo embora, dirigindo-se a porta a passos largos. Se seu objetivo era me deixar chocada, me enrolar até que os sinos soassem e nosso tempo juntos terminasse sem que ele me desse uma resposta clara para a questão que levantei, então foi bem sucedido. Se aquela coisa sobre a eleição que ouvi era verdade, não sabia se queria saber como Eric foi capaz de fazer tudo aquilo, embora suas motivações fossem claras: Marcos era um cuzão. Ele merecia perder e ser expurgado de qualquer possibilidade de ter algum poder naquela escola. Se Eric tinha mesmo feito Edward ganhar por vingança, estava feliz por ele ter alcançado seu objetivo.
O vi sair pela porta da biblioteca. Quem diria, realmente gostava de sua companhia. Pensei, me levantei e corri em sua direção. Talvez assim, conversássemos mais andando pela escola antes de abandonarmos o prédio. Todavia, quando olhei para o corredor imenso e cercado por portas trancadas que levavam a salas de aula de uso indisponível, percebi que ele não estava mais lá. Ele correu? Não, como poderia cruzar um caminho tão grande até as escadas em tão poucos segundos? Eric não era um corredor como Guilherme, afinal.
Cara, que garoto estranho. Disse a mim mesma confusa. A vida naquele colégio era uma loucura, tinham pessoas legais, como Eric, Adrian, Edward e Thais, mas, em outros aspectos, era como uma selva cheia de víboras prontas para te atacar para conseguir o que querem. Isso eu sabia bem desde que cheguei naquele local.
Eu não gosto de dar informações sobre minha vida pessoal para as pessoas, mas isso não as impediu de descobrir alguns detalhes desconexos e espalhar suas fofocas sobre mim mesmo assim. Meu nome é Taywan e eu sou uma garota indígena pertencente à tribo Parãdiyhó. Meu povo reside em uma área afastada da Amazônia legal, onde, cerca de 200 indivíduos vivem livremente em contato com a natureza. Antes da invasão portuguesa ao território, estima-se que éramos mais de 50 mil. Hoje, os poucos de nós que restam foram, em partes, aculturados pela dominação colonial, sendo que alguns, como eu, fomos morar em outras regiões do mundo. Isso determinou a sobrevivência de meu povo que, diante de um genocídio, se adaptou ao uso de tecnologias e, inclusive, aprendeu a língua do homem branco.
Eu já vi muitas coisas horríveis nessa vida, embora jovem e ainda tentando desbravar o mundo. Mesmo que meu tamanho possa enganar, sabia, era mais forte tanto física quanto mentalmente que a maior parte dos garotos. Sobre as meninas, mesmo após alguns meses naquela escola, era evidente que eu não era uma garota normal. Pertencer a uma etnia praticamente dizimada tinha suas consequências. Eu era uma sobrevivente.
Em busca de oportunidades na vida, deixei a escola precária que ficava perto de nosso assentamento e vim morar nessa cidade com minha guardiã legal. Minha genitora continua morando na tribo com os outros. Ela gerou mais três crianças que alguns considerariam meus irmãos. Nós não temos muito bem o conceito de maternidade da forma como os brancos possuem. Geralmente, quando uma mulher tem um filho lá na aldeia, entende-se que a tribo toda o pariu, logo, a criança é cuidada por todos os Parãdiyhó.
Uma das razões que justificava a existência do meu povo eram nossas habilidades ancestrais, passadas de geração em geração como heranças sagradas. Os Parãdiyhó são mestres em armadilhas e exímios arqueiros, dons que me foram ensinados desde pequena com rigor e orgulho. Antes mesmo de completar doze anos, eu já manejava o arco com precisão e construía armadilhas como os meus irmãos de aldeia. De onde vim, violência fazia parte do cotidiano.
Mas, ao contrário de muitos da minha idade, que se encantavam com o conforto dos saberes herdados, eu sentia algo diferente queimando dentro de mim. Eu conhecia pouco sobre os mesmos povos que compartilhavam a mata conosco e ainda menos sobre o universo escondido fora dela.
Desde que aprendi a andar pela floresta, comecei a sentir que ela era pequena demais para os meus pés inquietos. Olhava o horizonte e imaginava o que havia além das árvores, além dos rios, além das montanhas que mal podíamos ver. Nunca desprezei minha terra, ao contrário, eu a reverenciava, tanto que quis experienciar todo o resto dela. Meu povo acredita que a mata se estende sobre tudo o que existe, existiu ou existirá, que um dia desfrutaremos do solo que, no momento, ainda não tinha sido consumido pelas raízes e árvores que nos assegurava a existência, que por enquanto, grande parte do que há para se explorar não era seguro para nós. Mas meu espírito ansiava por mais. Havia uma ambição silenciosa em mim, um desejo de conhecer o mundo, para ampliar quem eu era e abrandar tamanha angústia.
Foi essa inquietação que me aproximou da antropóloga que visitava nossa tribo com frequência. Ela via em mim algo que nem todos compreendiam, um brilho nos olhos que denunciava minha fome de mundo. Quando falei que queria partir, ela não me dissuadiu. Ao contrário, me ofereceu abrigo e aprendizado. E assim, com o consentimento dos meus, deixei a aldeia para viver na selva de pedra.
A cidade era brutal. Aprendi, com dificuldade, a sobreviver em um lugar onde as cobras usavam gravatas e as armadilhas eram feitas de palavras. Mas eu aprendi. Porque carregar o sangue dos Parãdiyhó é também saber adaptar-se e resistir, como a natureza, que mesmo depois de queimada e salgada, finca raízes novas, desabrochando a morte em vida novamente. Nunca deixei para trás minhas raízes, apenas as plantei em solo novo.
Quando cheguei nessa escola, percebi de imediato os olhares de estranhamento lançados em minha direção. Pudera, eu era uma garota indígena, pele morena, olhos puxados e cabelos escuros e lisos, não mais uma garota branca que compunha comumente a paisagem dos corredores daquele local. Academicamente, eu era bastante razoável, uma boa aluna, estudiosa e interessada. Extracurricularmente, assustei a todos do clube da arquearia assim que cheguei, me tornando, devido às habilidades bem mais sofisticadas, rapidamente na líder daquele clube, trazendo medalhas e mais medalhas para a escola em competições intermunicipais e interestaduais.
Os boatos sobre mim começaram a se multiplicar de forma proporcional à atenção que chamava. As pessoas me xingavam de índia em tom pejorativo, questionavam se eu andava pelada no meio da floresta e até chegavam a supor que meu povo praticava antropofagia. Mais recentemente, alguns já começavam a zoar dizendo que eu era namorada do Eric. Ninguém verdadeiramente acreditava nisso, mas, é claro, as provocações não cessaram devido a isso.
No primeiro dia de aula, uma garota da nossa sala chamada Thais me abordou de supetão durante o intervalo. Ela era alta, bonita, pele negra e olhos escuros como os cabelos em tranças longas que desciam por suas costas até a altura das coxas. Ela foi simpática, embora de postura imponente e forte, se apresentando como chefia do clube de jornalismo da escola. Em seu monólogo eufórico, rapido, mas carregado de palavras, Thais, a jornalista, como gostava de ser chamada, me falou sobre como nós duas, mulheres de cor, tinhamos de nos unir naquela escola patriarcalista em que a hetero-cis-branquitude dominava cada espaço. Embora um pouco militante agressiva demais, gostei dela que me levou de imediato para perto de um rapaz. Era Guilherme, que até assustou quando chegamos perto dele. Ele não parava de nos olhar, levemente envergonhado mas tentando estufar o peito e falar com voz grossa para tentar nos impressionar.
Thais repetiu tudo o que disse a mim para ele, excetuando a parte sobre mulheres negras livres e homens héteros opressores. Guilherme só balançava a cabeça em afirmativo, fingindo concordar com a ideia de se montar um clube ou algo assim para pessoas de cor na escola. Óliver, outro rapaz negro seria cooptado no dia seguinte. Naquele dia, não o conhecia pois ele faltou.
Eu olhei para o lado no meio do monólogo de Thais e vi um garoto sentado em uma das carteiras da sala de aula. Magro e com olhar tranquilo, ele com calma folheava um livro enorme, como se vivesse dentro de seu próprio mundo. Foi a primeira vez que notei a presença de Eric e, vendo que Thais estava realmente empolgada com a ideia, sugeri apontando discretamente com o dedo:
— Mas e aquele garoto ali?
Os dois fecharam a cara. Não entendi o porquê, afinal, ele era diferente dos demais meninos. Sua pele não era tão retinta como a de Guilherme, mas ele certamente não era branco também, talvez pardo, no mínimo. Thais me explicou com um sorriso de desconforto que Eric era uma pessoa complicada de lidar. Guilherme, mais uma vez, só acenava com a cabeça em concordância.
Ouvi de outras pessoas que era melhor evitar contato com Eric. Uma semana se passou e o plano de Thais pareceu não ter vingado. Eu permaneci curiosa para saber o que aquele garoto tinha de tão detestável, mas apenas segui com minha vida, deixando que o destino, se quisesse, me revelasse.
Certo dia, final de tarde, tinha praticado o arco e flecha por horas a fio. Eu fui ao vestiário e me tranquei em uma cabine onde me despi. Estava cansada e refleti enquanto passava o sabonete sob minha pele morena. Eu certamente gostava de estudar em um local como aquele, um colégio de elite em que as mais diversas habilidades eram capazes de florescer, mas ainda tinha o sentimento próprio de uma pessoa trânsfuga em meu coração. Semanas tinham se passado e, até então, não consegui estabelecer muitas conexões com as pessoas.
Eu tentava ser forte, orgulhar meus ancestrais, mas as mudanças da adolescência começavam a me afetar além do que conseguia controlar. No fundo, me sentia insegura, isolada e sem ter alguém com quem contar. Olhei para meu corpo nú alvejado pelos fios de água quente que desciam do chuveiro. Eu era magra, não muito alta, com seios pequenos e cintura fina. As outras garotas eram mais bonitas, pensava e, portanto, tinham mais facilidade para se enturmar. Ali embaixo, em meu sexo, possuía lábios delicados onde, em volta, não desenvolvi nenhum pelo sequer. Além do rosto, era diferente ali também, o que adicionava mais uma camada de insegurança. Eu via garotas bonitas chamarem bastante mais atenção que eu, Carol e Maria, por exemplo, eram loiras e de olhos claros, ambas garotas populares.
Eu não deveria perder tempo pensando nessas coisas e sim focar nos estudos e esporte como já andava fazendo, mas as distrações eram constantes. Pelos corredores, via muitos garotos, alguns os quais achava muito atraentes. Eu me interessava mais pelos rapazes que fossem altos e fortes, como Óliver, Daniel e até Marcos, apesar dele ser um babaca. Todavia, aquele tipo de rapaz não tinha olhos para mim. Ouvia outras garotas comentarem sobre os meninos, compartilharem experiências e até via casais se pegando em becos pelo enorme colégio. Eram essas experiências que nunca tive até então.
Pensar sobre essas coisas durante o banho acabou mexendo comigo. Senti um arrepio me percorrer o corpo todo quando a ponta de meus dedos esbarrou no bico do meu seio. Objetivando encerrar tais pensamentos intrusivos, diminui a temperatura da água do banho, me enxaguei na ducha gelada, me sequei e vesti minhas roupas.
Ao sair do vestiário, retornei cansada para meu armário onde guardei o material escolar e esportivo. O corredor não aparentava ter ninguém enquanto fazia isso, mas, foi só olhar para trás e me deparei com Eric. Ele olhava para mim, duas órbitas curiosas apontadas para meu rosto. Foi a primeira vez que o vi levantar a cabeça e havia um livro fechado em uma de suas mãos. Me perguntei como ele aparecera ali tão de repente, o que virou rotina depois que nos conhecemos. Eric tinha o hábito de brotar silenciosamente do nada, bem como sumir quando não tinha ninguém olhando. Nunca entendi como ele fazia aquilo.
— Oi Taywan. — Ele comprimentou depois de me encarar por alguns segundos.
— Oi… Eric, certo? — Respondi com um pouco de nervosismo. Era estranho ouvir meu nome sair de sua boca.
— Sim. — Ele disse abrindo bem os olhos, como se me analisasse ainda mais profusamente. — Demorei para identificar, mas você é Parãdiyhó, não é? — Questionou. Tomei um susto. O que? Como ele sabia disso? Me questionei em pânico. Era certo que as pessoas do meu povo possuíam algumas sutis características faciais, mas nada que alguém que foi criado em uma cidade a vida inteira pudesse reconhecer e diferenciar de demais povos indígenas do Brasil. O que ele queria com aquilo? Se esse moleque achava que iria me intimidar, estava muito enganado.
— Se vai fazer alguma piadinha sobre como venho de uma tribo canibal, cuidado, estou com fome. — Retruquei com cara de poucos amigos. Eric pareceu confuso por um momento.
— Não entendi. Seu povo não pratica antropofagia. Você sabe disso. — Disse com a mesma calma de antes. Aquilo me desarmou, deixando-me até vulnerável demais quando Eric me jogou o pequeno livro que carregava.
O segurei no ar em um reflexo e, quando olhei para a capa, tomei um susto ainda maior. Eram as inscrições! Percebi na hora e comecei a folhear o objeto. Aquele autor tinha escrito um livro sobre meu povo! Eu nem sabia que algo assim existia.
— Ei! Onde arrumou isso?
— É surpreendente o que se pode encontrar em bibliotecas velhas, trocando livros e comprando-os até colocar as mãos em uma raridade. — Eric disse, parecendo nem falar mais comigo, mas consigo mesmo. Era a primeira vez que via algum brilho nos olhos frios daquele garoto.
— E porque está me mostrando isso? — Perguntei desconfiada. Por mais que aquele estranho rapaz não tivesse me mostrado hostilidade, sabia que tinha de ser cautelosa.
— Me ensine sua língua. — Disse subitamente, ostentando aquela calma e frieza de sempre. Aquilo me pegou de surpresa. Ele não pediu, não sugeriu, mas pareceu ordenar.
— Porque esse interesse em um idioma quase morto falado por apenas duas centenas de pessoas? — O questionei. Não gostei de seu tom, não gostava de sua fala mansa e também não gostei da forma como ele parecia fingir interesse em algo tão caro para mim. O que diabos aquele moleque planejava? Ele podia até ser bonitinho, mas sua personalidade era demasiadamente direta e ousada. Se ele realmente achava que conseguiria me conquistar com todo aquele teatro depois de ter provavelmente me stalkeado e revirado minha vida para saber de tais coisas ao meu respeito, estava muito enganado.
Esperei uma resposta ensaboada, falsa e cheia de segundas intenções, de um garoto com medo de ser rejeitado e que, devido a isso, mudaria a forma como se dirigia a mim, mas me surpreendi novamente com Eric.
— Para ler o maldito livro, não é óbvio? — Ele falou naturalmente, jeito presunçoso como de costume. Se suas intenções eram outras, estranho me tratar com tanta grosseria.
— E porque isso seria importante para você? — Questionei naturalmente. Ele só podia estar mentindo. Era definitivamente difícil de acreditar que um garoto criado em cidade grande estaria realmente interessado nesse tipo de coisa. Se ele não gostava de mim, então só poderia estar tramando algum tipo de piada ou coisa assim. Eric, pelo que ouvia pelos corredores, não era a figura mais popular daquela escola, na verdade, sua reputação o precedia bastante. Talvez tentar pregar uma peça na garota indígena nova fosse sua forma de tentar ascender socialmente naquele contexto.
Eu olhei para seu rosto novamente, tentando analisar cada detalhe. Meu povo tem um dizer que afirma que a melhor forma de se saber o que está no coração de um homem é analisando o que ele esconde em seus olhos. Eric era só um garoto, isso era evidente, mas fiquei curiosa para saber o que ele estava escondendo. Analisei seus olhos castanhos profundos e me assustei novamente.
Vi ódio.
— O que está dizendo? — Questionou, parecendo se conter, mas transparecendo, apenas no olhar, a ira mais flamejante que jamais vislumbrei em alguém. — Esse cara escreveu algo que não consigo entender… — Disse, como notei, cerrando os punhos. Eric se interrompeu, desviou o olhar, como quem mostra mais de si do que quer e que agora necessita disfarçar-se. — É revoltante! — Exclamou. Sua voz era calma, mas, tão sutilmente quanto possível, parecia mal se conter, tamanha era sua raiva.
Meu coração acelerou. Fiquei nervosa, como se, a qualquer momento, fosse perder a compostura e me embaraçar na frente dele. Não queria que isso acontecesse! Minhas bochechas esquentaram e, involuntariamente, desviei o olhar quando fitei novamente aquele rapaz.
Estava insatisfeito e não era apenas sobre um maldito livro velho. Para ele, o mundo parecia pequeno também!
— Tudo bem. Eu te ensino. — Disse a ele, reconhecendo seu potencial. Meu coração palpitava no peito. Confiaria em Eric uma vez. Era bom que ele não me fizesse ter arrependimentos por isso.
Passamos mais um tempo discutindo termos perto daqueles armários. Eu o visitaria na biblioteca ou em sua sala de estudos 3 vezes por semana, mas, adicionei algo que me permitiria conhecer o rapaz melhor, uma vez que achei a figura tão misteriosa estranhamente interessante: Não falariamos apenas sobre Parãdiyahóe, mas queria que também tratassemos de outros assuntos corriqueiros, sobre nossas vidas, o que fizemos na semana etc. Assim, forcei Eric a fazer perguntas sobre mim e responder as que direcionava a ele no meio das aulas que lhe dava.
Era estranho, eu sei. Podia ser que estivesse apenas um pouco carente por uma nova amizade naquela escola em que não conhecia ninguém, ou quem sabe só curiosidade para saber o que havia por trás daquele rapaz tão difamado pelos corredores daquele local.
Talvez nosso encontro não passasse de uma troca de olhares curiosos. Ou dois estranhos, inquietos demais para aceitar o quanto o mundo lhes devia, tivessem se esbarrado na hora exata. Eu não sabia aonde aquilo levaria, mas, pela primeira vez, não parecia mais que eu caminhava sozinha pela floresta.
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-Não se esqueça de comentar e avaliar o capítulo :D -
Olá leitores(as). Como avisado, estou bem e de volta do hiato.
Obrigado a todos(as) que continuaram engajando na história enquanto resolvia minha vida e aos que desejaram que estivesse bem. Em especial, foi uma alegria imensa receber mensagens de leitores que me tranquilizaram e lembraram da importância de respeitar o tempo do meu processo criativo. Por ora, posso dizer que retornaremos ao ritmo normal de publicação dos próximos capítulos. Qualquer parte da história postada de forma adiantada será avisada para vocês.
Um abraço a todos(as)!