Eu estava em choque com aquilo. Tentava entender aquela cena, mas era muito surreal para meu cérebro processar. A visita da minha sogra já era algo totalmente inesperado, mas a visita da Ingrid era algo fora de cogitação. Na verdade, ela era a última pessoa que eu esperava ver na porta do meu quarto. O pior era que a Sabrina estava junto, com uma expressão tranquila, como se fosse algo normal para ela; mas para mim, não era, nem um pouco. Para variar, eu não soube como reagir, e foi a própria Ingrid que me fez sair daquele choque inicial.
Ingrid— Posso entrar, Fernanda? Se não puder, tudo bem, eu vou entender se não quiser falar comigo.
Fernanda— Eu sinceramente não sei o que dizer. Mas se quiser entrar, tudo bem.
Sabrina— Amor, fui eu que a convidei. Ela se preocupou com você quando soube do que aconteceu, pediu para o médico ter um cuidado especial com você no hospital e comemorou cada melhora sua. Ela queria te visitar, mas não quis criar um clima ruim com sua mãe. Olha, eu posso ter cometido um erro, mas já se passou muito tempo. Talvez seja hora de vocês conversarem e seguirem em frente sem mágoas.
Fernanda— Como eu disse antes, não sei o que posso dizer, amor. Para mim, isso já era passado, mas parece que para a Ingrid não é. Então, se ela quiser falar algo, eu vou ouvir.
Ingrid— Não precisa dizer nada, Fernanda. Mas se puder me ouvir, eu gostaria de te dizer algo. Talvez não seja tão importante para você, mas para mim seria.
Fernanda— Tudo bem, como eu disse, se quiser falar, eu vou ouvir.
Quando Ingrid entrou, percebi que havia outra garota com ela. Não fazia ideia de quem era, mas imaginei que era uma amiga dela. Todos entraram e se acomodaram. Sabrina sentou ao meu lado na cama, Ingrid sentou do outro lado, a uma distância suficiente para que eu pudesse ouvi-la bem, mas mantendo uma distância que ela provavelmente achou segura. A amiga dela sentou ao seu lado e percebi que, assim que Ingrid respirou fundo para começar a falar, ela segurou a mão da Ingrid, como se quisesse transmitir força para ela.
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Ingrid— Eu não vim aqui para me desculpar pelo que fiz no passado, mas pela forma como fiz. Eu não tinha escolha naquela época; ou melhor, eu tinha, mas a outra não era viável para nenhuma de nós. Penso nisso até hoje, e não mudei de ideia, mesmo sabendo que isso causou muito sofrimento a nós duas. Sei que você pode não acreditar, mas eu sofri muito também. Deixar você foi a pior coisa que já passei na minha vida, e paguei caro por isso. Mas, no fim, vendo onde isso nos levou, parece que fiz a coisa certa.
Dois dias antes de eu sair da sua vida, meu pai me chamou e disse que eu tinha conseguido uma vaga em uma universidade nos Estados Unidos e que era para eu arrumar minhas coisas para viajar. Ele não me perguntou se eu queria; apenas me deu uma ordem, como sempre fazia. Ele era assim com todos ao seu redor: autoritário e não aceitava ser contrariado. Naquele momento, eu tinha duas opções: aceitar calada ou fugir de casa.
Se eu fugisse, não teria para onde ir. Você e sua família eram pobres, e eu não sabia fazer nada além de estudar. Também não podia atrair a ira do meu pai para você e sua família. Meu pai, além de ter muito dinheiro, também era ex-militar; eu tinha medo do que ele poderia fazer com vocês caso eu fugisse para ficar com você.
Durante todo o nosso relacionamento, eu sempre tentei manter tudo em segredo, justamente por causa dele. Sei que isso te incomodava, mas eu tinha muito medo dele descobrir de alguma forma. Eu não te contava muita coisa dele porque eu também tinha medo que se você soubesse como ele era, você me deixaria. Sempre evitava falar da minha família por causa disso; não queria mentir, mas eu tinha muito medo de te perder, se soubesse a verdade.
Bom, após meu pai me dar aquela notícia, eu tinha que fazer uma escolha. Algo que pesou na minha decisão foi o sonho de me tornar médica; eu dependia do dinheiro dele para realizar esse sonho. Se eu fugisse, além de todos os outros problemas, teria que desistir do meu sonho. Então, por mais que me doesse, decidi aceitar em silêncio e ir embora. Pensei em te contar, em pedir que você me esperasse e em várias outras formas de fazer aquilo. No fim, decidi simplesmente não falar nada e aproveitar ao máximo minhas últimas horas ao seu lado. Sabia que isso iria te ferir muito e que provavelmente você iria me odiar, mas achei que isso poderia fazer você me superar mais fácil e, quem sabe, encontrar alguém que pudesse te dar tudo que eu não pude. Eu sei que fui covarde, mas juro que, na época, pensei que era o melhor a se fazer.
Depois que saí do seu apartamento, só consegui chorar, mas consegui disfarçar bem em casa. Minha mãe era praticamente uma escrava do meu pai, não o questionava em nada, só abaixava a cabeça e obedecia. Sabia que ela me amava muito e sempre me deu carinho, mas nunca iria contra meu pai. Então, naquele mesmo dia em que saí, fui embora.
Passei alguns dias esperando você tentar me ligar ou mandar alguma mensagem nas redes sociais, mas isso não aconteceu. Parecia que meu objetivo de fazer você me odiar e seguir em frente tinha sido atingido rapidamente, até demais. Isso me deixou feliz por um lado, mas também me fez questionar muitas coisas que, na verdade, nem vêm ao caso eu dizer agora. Fui eu quem te abandonei; seria injusto eu questionar qualquer coisa. Mas aquilo só aumentou minha dor. Não vou detalhar o quanto sofri, as noites que passei chorando ou as vezes que pensei em desistir de tudo e voltar para o Brasil. Mas, quando lembrava que nem uma simples mensagem você mandou, eu desistia.
O primeiro ano fora foi um verdadeiro inferno. Estava longe do meu país, de tudo que amava e sentia sua falta todos os dias. Não tinha amigos, não dominava a língua completamente e ainda sofria bullying por ser brasileira. Achei que voltaria ao Brasil nas férias, mas meu pai disse que não tinha dinheiro para gastar à toa, que era para eu aproveitar e estudar bastante, porque estava ficando caro me manter. Ele ainda sugeriu que eu arrumasse um trabalho para ganhar meu próprio dinheiro. Minha mãe me ligava direto; eu implorei para que ela me buscasse nas férias, mas ela não quis, por medo do meu pai.
Bom, não consegui arrumar trabalho; não sabia fazer nada, era estrangeira e só tinha visto de estudante. Ouvi muitas críticas do meu pai por causa disso, ouvi calada como sempre, eu não tinha ânimo para discutir. A vida seguiu e lá se foram três anos que eu praticamente vivi sozinha. Ser brasileira lá parecia ser uma doença; ninguém se aproximava de mim. Conversava apenas com alguns professores de vez em quando. Mas, no início do quarto ano, tudo mudou. Chegou outro brasileiro na universidade onde eu estava; ele era mais novo, mas muito gente boa, e acabamos virando grandes amigos. Passávamos o tempo todo juntos quando não estávamos em aula. Foi nessa época que as coisas começaram a melhorar para mim.
Vinicius era de São Paulo, de uma família rica e de pais médicos. O pai era diretor de um grande hospital em São Paulo e a mãe, uma das melhores médicas desse mesmo hospital. Ele era bem diferente de mim: falante, brincalhão, provocava os outros alunos quando tentavam provocá-lo e me protegia quando vinham me provocar. Ele também me incentivou a sair para conhecer pessoas novas. Nessa época, ele já sabia da minha história e me deu o maior apoio. Acabei resolvendo sair com ele, e foi aí que comecei a viver de novo. Passei a me divertir um pouco, a sorrir mais e conheci algumas garotas legais; cheguei até a ficar com algumas. Eu ainda me lembrava de você, mas a dor foi diminuindo e comecei a acreditar que, afinal, eu tinha feito a coisa certa.
No final daquele ano, minha mãe me ligou no meio da madrugada. Eu imaginei que tinha acontecido algo ruim, mesmo antes de ela falar. Meu pai tinha falecido; ele sofreu um infarto fulminante e morreu antes mesmo de chegar ao hospital. Minha mãe disse que iria me enviar o dinheiro da passagem para eu ir me despedir dele. Podem me julgar se quiserem, mas eu não quis. Não queria me despedir dele; na verdade, senti um alívio enorme com aquela notícia. Meu pai nunca demonstrou amor por mim; nunca recebi um gesto sequer de carinho dele. Para ele, eu parecia apenas um soldado que recebia ordens e tinha que obedecer calada. Provavelmente o amei algum dia, mas fazia tempo que só o via como um estorvo na minha vida. Não me sinto feliz em dizer isso, mas é a verdade, e por incrível que pareça, minha mãe me entendeu.
Continuei minha vida, mas agora minha mãe ia me ver nas férias e eu voltava ao Brasil às vezes, só que não para Campinas. Eu ia para São Paulo, onde minha mãe morava; ela se mudou de volta para sua cidade natal para ficar perto da família. Eu ainda lembrava de você, até pensei em vir te ver, mas depois de tantos anos imaginei que não seria bem recebida e então decidi que era melhor me manter longe.
Terminei minha faculdade nos Estados Unidos e voltei ao Brasil no ano passado. Vinicius conseguiu uma vaga temporária para mim no hospital onde seus pais trabalhavam, mas eu sabia que seria apenas por seis meses, um estágio rápido que seu pai arrumou para mim. Nesses meses, me saí muito bem e acabei ficando mais seis. Até achei que seria efetivada, mas o pai do Vinicius tinha outros planos. Há seis meses, ele disse que tinha uma vaga para pediatra no hospital daqui e, como eu era muito boa no que fazia e já tinha morado na cidade, ele me indicou para a vaga. Eu iria recusar na hora, mas ele não deu tempo; disse que eu fui aceita, que o salário era ótimo e que seria a chance de eu me destacar na minha área. Ele disse que eu tinha três dias para decidir se aceitava ou não.
Falei com minha mãe e ela disse que, se eu quisesse, me daria o maior apoio, que eu poderia morar em um dos apartamentos que tínhamos na cidade. Era realmente uma grande chance para mim. No hospital onde eu estava, teria muitas dificuldades de crescer na carreira e nem garantia de que continuaria trabalhando lá. Pesquisei sobre o hospital daqui e tive ótimas referências, por fim, resolvi aceitar. Então, por ironia do destino, voltei a morar aqui, e as lembranças boas e ruins voltaram a fazer parte da minha vida novamente. Cheguei a pensar algumas vezes em te procurar, mas por medo nunca levei a ideia adiante. Achei que você tinha seguido sua vida; talvez já estivesse até casada, já que era algo que você sempre sonhou. Então, achei melhor seguir minha vida no meu canto.
Tudo estava indo bem até mais ou menos um mês atrás. Eu raramente saía, não tinha amigos íntimos aqui, exceto a Joyce, que conheci no hospital e com quem me dei muito bem de cara. No mais, eu até recebia visitas de algumas antigas amigas da minha mãe, mas isso era raro. Um dia, Joyce conseguiu me arrastar até o shopping para ver um filme e nos distrair um pouco. Estávamos conversando e fazendo um lanche na praça de alimentação, quando uma antiga amiga do colégio me reconheceu. Não sei se você se lembra dela, mas o nome dela é Ana Paula. Eu não lembrava dela direito, mas, pelo jeito, ela se lembrava bem de mim.
Ela veio me cumprimentar e por educação, eu a convidei para sentar conosco. Começamos a relembrar da época do colégio e, claro, ela tocou no seu nome. Disse que fazia algum tempo que não te via, mas esperava que você estivesse bem agora. Aquela observação dela me pareceu uma preocupação, e eu perguntei por que ela disse aquilo. Bom, aí ela me contou algo que fez meu achismo sobre você desaparecer.
Ela me contou que estudou na mesma universidade que você, que, mesmo fazendo outro curso, te via sempre lá. Disse que você parecia ter se fechado para o mundo, não falava com ninguém, estava sempre sozinha e com uma expressão triste. Ela disse que até tentou falar com você, mas você não deu muita atenção e logo cortou a conversa. Então ela achou melhor te deixar no seu canto. Ela falou que os anos foram passando, mas você continuava igual, sempre sozinha, com aquele mesmo semblante triste e nunca a viu sorrir uma vez sequer. Ela me contou que estudou cinco anos na mesma universidade que você e a impressão que teve era que você vivia em uma tristeza eterna, a ponto de imaginar que poderia ser depressiva ou algo assim.
Aquilo simplesmente me cortou o coração. Perguntei a ela se sabia mais alguma coisa sobre você, e ela disse que não, que depois que se formou, nunca mais te viu. Conversamos mais um pouco e ela se foi. Não conseguia tirar o que ela tinha dito da cabeça e, quando cheguei em casa, fui olhar suas redes sociais. Achei seu antigo Facebook e seu Instagram, mas não tinha nada de novo; parecia que você tinha morrido depois que fui embora. Não havia nada recente, apenas fotos de quando eu ainda estava aqui. Eu achava que você estava bem, mas pelo que Ana me falou e pelo que vi nas redes sociais, não era nada disso. Eu tinha feito você sofrer, e pelo jeito, muito mais do que eu imaginava.
No dia seguinte, enchi-me de coragem e resolvi te procurar. Fui ao seu apartamento, mas estava vazio. Perguntei ao porteiro sobre você, e ele me disse que você não morava mais ali, que até vinha de vez em quando, mas que tinha se mudado. Perguntei se ele sabia para onde, mas ele disse que não, que era novo ali e provavelmente o outro porteiro saberia, mas que estava de férias. Agradeci e pensei em te mandar uma DM no Instagram, mas provavelmente você nem veria. Então resolvi ir à casa dos seus pais.
Quando chamei e seu pai me atendeu, ele nem falou comigo, simplesmente fez uma cara de raiva e virou as costas. Pensei que ele iria bater a porta na minha cara, mas ouvi ele chamar pela sua mãe. Eu pensei em ir embora, mas arrisquei ficar esperando; talvez ela me dissesse pelo menos onde você estava. Mas sua mãe saiu já me olhando feio. Pediu para eu ir embora e não voltar mais ali. Disse que eu já tinha feito você sofrer demais e que não queria ver a filha sofrer novamente por alguém como eu. Pediu, pelo amor de Deus, para eu voltar de onde tinha vindo e deixar você em paz. Eu só abaixei a cabeça, pedi desculpas e saí quase chorando. Eu não sabia o mal que tinha te causado, mas agora tinha uma ideia. Sua mãe é uma das mulheres mais doces que já conheci; vê-la daquele jeito deixou claro para mim o quanto eu tinha ferido a filha dela.
Então segui o que sua mãe pediu, decidi deixar você em paz e seguir minha vida com a culpa que agora carregava. Mas aquilo foi me fazendo mal a cada dia. Não parava de pensar em você, e aqueles antigos sentimentos que eu sentia pareciam ter voltado. Sinceramente, eu não sabia se era o amor que um dia senti por você ou se era a culpa me corroendo. As coisas foram piorando, e nessa época já tinha contado para a Joyce tudo o que aconteceu. Ela sempre procurava me animar e fazer eu retomar minha vida.
Foi em um final de semana que recebi dois convites para um aniversário. Eu nem conhecia a aniversariante, mas nossos pais eram amigos quando morávamos aqui. Nem dei importância, mas no domingo, Joyce viu os convites na minha mesa de centro e disse que muita gente estava se matando para ir a essa festa, que era o evento do momento da cidade. Eu disse que, se ela quisesse, podia pegar os dois convites e ir com quem quisesse. Ela disse que iria pegar um, mas que o outro era para eu ir com ela. Isso gerou algumas discussões, mas na última hora, ela me convenceu a ir.
Bom, eu não estava bem e achei que beber alguns copos de gin poderia melhorar meu ânimo. Grande erro! Acabei ficando meio bêbada e, quando aconteceu nosso encontro por acidente, agi por impulso. Eu realmente não sabia o que estava fazendo, mas fiz. Só percebi meu erro quando você voltou chorando, depois de ir atrás da Sabrina. Tentei te chamar, tentei ir atrás de você para me desculpar, mas não consegui.
Passei o resto da noite chorando no ombro da Joyce e só soube o que aconteceu no dia seguinte, quando vi a Sabrina no hospital. Já me desculpei com ela e expliquei que você não fez nada de errado. Porém, queria me desculpar com você, pelo modo covarde como te deixei naquele dia, por não ter te procurado todos esses anos para pedir desculpas e tentar explicar o que houve, e principalmente por ter te causado tanto mal novamente, por ser culpada por suas lágrimas e suas dores. Eu realmente sinto muito, Fernanda.
{...}
Quando ela terminou de falar, eu realmente não sabia o que dizer, nem o que sentir. Acho que tenho esse problema: travo quando sinto emoções conflitantes. Olhava para ela ali, chorando, e dava vontade de dar um abraço e dizer que estava tudo bem, mas também tinha vontade de dar um tapa nela e dizer que ela acabou com alguns anos da minha vida, onde eu praticamente só vegetei.
Acho que ela viu minha dúvida, limpou o rosto com as mãos e se levantou. Com alguma dificuldade, pediu perdão mais uma vez, disse que precisava ir e foi saindo do quarto. Eu não sabia se a chamava ou a deixava ir embora de vez da minha vida. Olhei para a Sabrina por uns instantes, ela estava enxugando as lágrimas, foi então que entre vários pensamentos e dúvidas, decidi agir.
Continua...
Criação: Forrest_gump
Revisão: Whisper