Meus pais diziam que a natureza havia sido generosa comigo e acredito que falavam a verdade. Minha mãe teve enjoos horríveis durante a minha gestação e o resultado apareceu quando nasci, com longos cabelos loiros, brilhantes como fios de ouro derretido. Aos meus treze anos, eu já sabia o que era ser devorada por olhares, alguns de inveja pelos meus cabelos que agora caíam em ondas suaves até a minha cintura, capturando o sol escaldante de Primavera do Leste, no coração do Mato Grosso, outros de um desejo que eu negava acreditar. Meus olhos eram de um azul tão claro que minha mãe, Maria, filha de Francisca, dizia parecerem pedaços do céu, guardando uma inocência que só podia ser obra de Deus. Minha pele era branca como leite; eu até a achava pálida, translúcida mesmo, sempre atraindo algum comentário de vizinhos ou estranhos, como se eu fosse uma boneca exposta para venda. Mas meu corpo... esse sim era o meu verdadeiro fardo: precoce, com seios que despontavam sob as blusas de algodão e um quadril que desenhava curvas que não combinavam com minha idade, ele parecia gritar por atenção, mesmo quando eu só queria desaparecer para brincar de boneca com alguma amiga.
Eu quase nunca saía sozinha, ou minha mãe estava comigo, ou alguma colega, mas quando acontecia de eu precisar sair sozinha, sentia os olhos dos homens na minha nuca, nos meus ombros, nas minhas pernas. Eu não entendia o peso daqueles olhares, desconfiava, e ainda assim sentia o calor deles. E dentre eles, um começou a se destacar, Fabiano, filho de Seu Geraldo, o maior fazendeiro de soja da região, que havia chegado há pouco da capital para passar férias na casa do pai.
Fabiano era uma tempestade ambulante. Alto, com ombros largos que carregavam a força de quem cresceu domando novilhos e dirigindo tratores. Ele tinha a pele queimada pelo sol inclemente das fazendas. Seus cabelos castanhos, levemente cacheados, caíam sobre a testa, emoldurando olhos verdes que brilhavam uma mistura de charme e perigo. Seu sorriso era uma arma, afiado como uma faca, mas doce o suficiente para desarmar qualquer coração ingênuo. Vez ou outra, eu o via dirigindo sua caminhonete prateada, reluzente como um troféu, com a arrogância de quem sabia que a cidade pertencia à sua família. Lembro que o vi pela primeira vez na feira, enquanto ajudava meu pai, José, mais conhecido como Seu Zé Padeiro, filho de um velho comerciante de grãos, a carregar os pães quentinhos da nossa padaria. Fabiano estava encostado na barraca de frutas, com um chapéu de cowboy de couro inclinado sobre a testa, o corpo relaxado, mas os olhos fixos em mim, como se eu fosse a única pessoa no meio da multidão barulhenta:
- Oi, loirinha. Conheço tu não, né? Qual é o seu nome? - Perguntou, a voz grave, com um tom que fez meu coração pular, como se eu tivesse sido pega roubando algo.
- É... Eu... É... Helena... - Gaguejei , sentindo o rosto queimar, os olhos fixos no chão de terra vermelha, onde o pó grudava nos meus sapatos gastos.
- Helena, Helena... É nome de princesa, sabia? Helena de Tróia... Já leu A Ilíada? - Disse ele, com um sorriso que parecia prometer o mundo, enquanto se aproximava, o cheiro de colônia cara misturado ao suor fresco invadindo meu espaço.
- Acho que não... É um romance?
Ele riu da minha ingenuidade, talvez da minha falta de cultura, mas antes que respondesse, meu pai surgiu. Eles se cumprimentaram, mas meu pai pediu que eu continuasse na lida, praticamente convidando Fabiano a se retirar. Ele se foi, despedindo-se com um meneio de cabeça e abano de chapéu, sorrindo, mas o que eu não sabia era que aquele sorriso era uma armadilha, e eu já havia caído feito uma patinha.
Fabiano também era filho de Dona Clara, uma mulher tão rígida quanto o marido era poderoso, mas uma mulher correta. Ele pode até ter se impressionado comigo, mas ele não queria uma companheira naquele momento, não senhor, ele queria posse, um troféu para exibir e se descartar ainda mais na comunidade. Eu, uma menina simples de um bairro simples, filha de um padeiro e de uma professora primária que às vezes virava a noite corrigindo cadernos, não tinha defesas contra ele. Meu coração, ainda tão jovem, acreditava em palavras doces, em olhares que pareciam sinceros. Em poucas semanas, eu estava apaixonada, cega pelo que achava ser amor à primeira vista.
Ele me cortejou como se eu fosse o centro do universo. Sempre arrumava um jeito de me encontrar sozinha. Foram várias as vezes em que foi me encontrar na saída da escola, com flores que, mais tarde, descobri que roubava do jardim de Dona Clara. Imagino o tanto que ela o xingava, afinal, dizia-se que eram rosas premiadas, únicas no mundo. Além disso, Fabiano sabia dizer coisas que faziam meu peito vibrar, promessas de um futuro que eu nunca ousara sonhar:
- Tu é diferente, Helena. Não é como essas meninas daqui. - Sussurrava ele, enquanto segurava minha mão, seus dedos fortes contrastando com a suavidade da minha pele.
E eu? Acreditava, ué! Cada toque trazia uma nova palavra; cada palavra, uma nova promessa; cada promessa, um novo sonho. Não lembro direito quando, mas numa noite de festa em que ele havia convencido a minha mãe a autorizar-nos a darmos uma volta pela praça, me levou a um motel na periferia, um lugar com paredes vermelhas, cheiro de jasmim e lençóis de seda se destacavam. Ali, entreguei a ele minha virgindade, achando que era a prova de meus sentimentos para o início de algo que nos uniria eternamente. Meu coração batia tão rápido que eu mal respirava, meus olhos procurando nos dele a certeza de que aquilo era amor:
- Você é minha, Helena! - Disse ele, enquanto traçava linhas no meu corpo com os dedos, sua voz tão doce que escondia a frieza por trás de suas verdadeiras intenções.
Os encontros se multiplicaram, quase sempre às escondidas. Nos fundos da igreja, onde o cheiro de incenso se misturava ao da terra úmida, em becos escuros onde o luar mal chegava, em qualquer canto onde ninguém pudesse nos ver. Eu me entregava, achando que cada momento era uma prova de que ele me amava. Mas, no fundo, uma vozinha que eu ignorava sussurrava que algo estava errado. Fabiano nunca falava de futuro, nunca me apresentava formalmente a sua família. Aliás, ele nunca me deixou apresenta-lo formalmente à minha! Ele me queria, isso eu tinha certeza, mas só depois fui entender que era enquanto fosse interessante.
O mundo desabou meses depois quando percebi que meu corpo estava mudando. Tinha acabado de completar catorze anos e me vi tomada por um cansaço que não se explicava, enjoos que vinham com o amanhecer, a barriga que começava ficar diferente. Minha mãe desconfiou de imediato e me levou a doutor Lindomar que primeiramente atestou que eu não era mais virgem e depois que eu estava grávida. Senti o chão sumir sob meus pés. Quando olhei para minha mãe, ela estava branca, mais do que eu. Mas meu coração, que ainda acreditava em Fabiano, me levou até ele, com lágrimas escorrendo pelo rosto, esperando que ele me abraçasse, que dissesse que tudo ficaria bem:
- Como é que é, Helena? Tu tá o quê!? - Berrou ele e depois, com um riso cruel que cortou minha alma como uma lâmina ainda disse: - Resolve isso aí. Tenha nada a ver com isso não! Nem sei se você era mesmo virgem...
Ele virou as costas, o som das botas ecoando na terra seca, e sumiu. Alguns dizem que voltou à capital, outros que foi engolido pelas fazendas de Seu Geraldo, outros que viajou para conhecer o mundo e um verdadeiro amor. Fiquei sozinha, com um bebê crescendo dentro de mim e uma vergonha que não era minha, mas que todos ao meu redor pareciam querer que eu carregasse. Meu peito doía, não só pela traição a meu coração, mas pela solidão que se abria como um abismo à minha frente.
Meus pais, José e Maria, não sabiam como lidar comigo. Pensei que fossem falar com Seu Geraldo e Dona Clara para tentarem convencer Fabiano a voltar, mas que nada... Meu pai, um homem de mãos calejadas e olhos gentis, que sempre me chamava de “minha princesinha”, agora mal conseguia me encarar sem ficar com os olhos marejados. Sua decepção era silenciosa, mas cortava mais que qualquer palavra. Minha mãe, uma mulher de moral rígida, chorava escondida na cozinha, como se suas lágrimas pudessem apagar o que acontecera. A cidade inteira parecia saber e os sussurros me seguiam como sombras. Na padaria, no mercado, na igreja, eu sentia os olhares, as conversas que paravam quando eu passava. A solução deles foi me mandar para a casa da minha avó, Dona Chica, filha de uma antiga lavadeira que sobrevivera à custa de força e fé, ainda mais no interior do Mato Grosso:
- Você vai pra casa da sua avó. Lá ninguém vai te julgar. - Disse minha mãe, com a voz embargada, enquanto arrumava minha mala, os dedos trêmulos dobrando minhas roupas com cuidado demais, como se quisesse postergar aquele momento.
- Mas eu não quero ir, mãe! Por favor! - Implorei, as lágrimas queimando meu rosto, mas ela apenas balançou a cabeça, incapaz de me olhar nos olhos.
- Você vai! Não aguento mais ver fuxico a seu respeito. Teu pai ontem quase travou contenda com Juarez da farmácia. Isso não pode continuar, Helena.
A casa da vovó era um casebre de tijolos aparentes, cercado por milharais que pareciam engolir o horizonte. O cheiro de terra molhada grudava nas roupas, no cabelo, nos pensamentos... Dona Chica era uma mulher de ferro, magra e encurvada pelo tempo, com cabelos grisalhos presos num coque tão apertado que parecia refletir sua alma. Seus olhos, castanhos e duros como pedras, atravessavam a alma, e sua voz era afiada, carregada de uma moral que não admitia falhas. Nossa primeira conversa não foi fácil:
- Você trouxe vergonha pra família, Helena. Agora precisamos dar tempo ao tempo, deixar o mingau esfriar... - Disse ela, apontando para o quartinho onde eu dormiria, com uma cama de ferro e um colchão fino que rangia a cada movimento.
Os dias seguintes não foram diferentes. Cada palavra era um golpe; cada olhar, uma acusação. Eu passava os dias em silêncio, com a barriga crescendo e o coração encolhendo. Olhava-me no espelho e não reconhecia a menina que já tinha sido. Meus cabelos, antes tão brilhantes, pareciam opacos, pesados pela poeira e pela culpa. Meus olhos, que outrora refletiam o céu, agora carregavam uma nuvem que nublava tudo ao meu redor. Onde estava a Helena que ria na praça, que sonhava com um futuro cheio de luz? Ela parecia ter ficado em Primavera do Leste, junto com a inocência que Fabiano roubara.
Meu filho nasceu numa noite de tempestade, com trovões que sacudiam as janelas do casebre. O parto foi doloroso, não só pelo corpo, mas pela solidão que me engolia. Minha avó estava lá, mas não para me consolar. Ela segurava minha mão com força, como se quisesse me punir até o último segundo. Quando ouvi o choro do bebê, fraco mas vivo, senti uma faísca de esperança acender no meu peito. Ele era loiro, com fios finos que brilhavam mesmo na luz fraca do quarto. Seus olhos, de um azul profundo iguais os meus em minha tenra idade, pareciam carregar um pedaço do meu próprio coração. Queria chama-lo Miguel, um nome bíblico de significado forte: “Quem é como Deus?”, porque só a fé poderia me manter em pé:
- É um menino forte! - Disse a parteira, dando um tapa em sua bunda e fazendo-o chorar alto.
Ela o embrulhou numa manta branquinha mandada por minha mãe, toda bordada e o colocou no meu colo:
- Ele é lindo, vovó! - Sussurrei, com lágrimas nos olhos, esperando que ela visse o que eu via.
Mas Dona Chica o encarou com um semblante que me gelou a alma. Sua resposta não foi nada melhor:
- Não se apegue, Helena... - Respondeu ela, com uma frieza desumana: - Ele não é seu pra ficar.
- Como é que é!? Como assim?
Sem me consultar, Dona Chica, filha de uma mulher que nunca cedeu à fraqueza, arrancou Miguel dos meus braços antes da primeira mamada. Disse que o entregaria para adoção, que era o melhor para ele, para a família, para todos. Gritei até minha voz falhar. Tentei me levantar, mas não consegui. Chorei até não restarem lágrimas, implorando até minha alma se esgotar:
- Ele vai ter uma vida melhor sem você. Você é jovem, vai arrumar bom marido ainda e vai... esquecer... - Disse ela, enquanto eu me desfazia em pedaços.
A parteira ficou comigo enquanto ela sumia na escuridão. Nunca soube o que fora feito do meu filho. Minha mãe chegou uma semana depois e ficou horrorizada quando lhe contei sobre o destino de Miguel. Foi a primeira vez que a vi discutir e destratar minha avó, falando nomes e desejando destinos que eu não desejaria a meu pior inimigo.
Voltei para a casa dos meus pais, mas eu já não era mais eu. A luz que todos diziam que eu tinha, aquela que fazia as pessoas pararem para me olhar, havia se apagado. E, como se o destino quisesse selar minha tragédia, após um dor abdominal e uma nova consulta em Doutor Lindomar, descobriu-se que eu nunca mais poderia engravidar. Eu nunca mais poderia ser mãe. Cheguei a pensar em dar cabo de minha vida, mas a fé, somente ela poderia e me deu forçar para carregar essa dor como a cruz que Cristo carregou. Miguel agora era um lembrete vivo de tudo o que perdera: minha inocência, meu filho, minha chance de ser inteira.
Vinte e cinco anos se passaram como se fossem um. Eu me tornei uma mulher de 39 anos, com uma beleza madura intensa, mas marcada por uma melancolia que o tempo não apagou. Meus cabelos, ainda mais longos, agora eram presos em coques práticos, e meus olhos azuis, embora ainda brilhassem, carregavam uma sombra que ninguém parecia notar. Casei-me com Evaristo Teodoro, filho de um antigo comerciante de remédios, um farmacêutico de 45 anos que comandava uma farmácia modesta na cidade. Evaristo era um homem bom, com cabelos grisalhos começando a aparecer nas têmporas, olhos castanhos cheios de uma bondade quase ingênua, e um sorriso tímido que parecia pedir permissão para existir. Ele me amava com uma devoção que às vezes me sufocava, como se eu fosse uma relíquia que ele precisava proteger. Sabia da minha história, do bebê que perdi, da vergonha que carreguei, mas nunca me julgou. Pelo contrário, foi forte por mim e me ensinou a ver uma força em mim que eu mesma não reconhecia:
- Você tá linda hoje, Helena. - Dizia sempre ele, pela manhã, enquanto tomávamos café, sua voz suave contrastando com o barulho da xícara contra o pires.
- Obrigada, amor. - Respondia, forçando um sorriso, tentando não transparecer o peso que existia em meu coração.
Eu não sentia paixão por Evaristo, mas o respeitava profundamente. Acho até que o amava a meu jeito. Ele me oferecia estabilidade, um lar com paredes brancas e móveis simples, uma vida sem sobressaltos. Era o suficiente, ou pelo menos era o que eu me convenci de que merecia. Nossa rotina era previsível: café da manhã juntos, com o rádio tocando músicas sertanejas antigas; ele na farmácia, eu cuidando da casa e ajudando na contabilidade do negócio; à noite, assistíamos novelas, ele rindo das piadas bobas, eu perdida em pensamentos, mas que acabavam submetidos aos seus olhares divertidos. Entretanto, esses meus olhos, mesmo nos momentos de silêncio, pareciam procurar algo que nem eu sabia nomear:
- Tu tá bem, Helena? - Perguntava ele às vezes, com aqueles olhos castanhos cheios de preocupação, as rugas na testa se aprofundando.
- Tô, amor. Só cansada. - Mentia, desviando o olhar para a janela, onde o céu de Primavera do Leste parecia se pintar de laranja num fim de tarde.
E foi num fim de tarde que meu mundo viraria de ponta cabeça, pois foi em um desses que Edson chegou à cidade.
Edson era o de um casal de Cuiabá. Tinha 25 anos e uma presença que fazia o ar parecer mais leve. Alto, com ombros largos que sugeriam força sem esforço, cabelos castanhos bem claros, quase loiros, que brilhavam como um comercial de xampu e olhos de um azul tão intenso que pareciam atravessar a alma. Sua pele, levemente bronzeada, contrastava com o sorriso fácil, que escondia uma inteligência afiada e uma perspicácia que desarmava qualquer um. Ele assumira o cargo de gerente do banco local, trazendo consigo um ar de sofisticação que não combinava com a simplicidade de Primavera do Leste. As mulheres da cidade falavam dele com suspiros; os homens, com inveja muito mal disfarçada. Mas Edson parecia alheio a tudo isso, focado em seu trabalho, com uma energia que parecia iluminar qualquer ambiente.
Eu o conheci numa tarde abafada, quando fui ao banco fazer um depósito para a farmácia. O ar condicionado zumbia, mas não aliviava o calor que subiu pelo meu corpo quando ele me olhou. Estava atrás de sua mesa, com uma camisa social impecável, o cabelo penteado para o lado, mas foi eu chegar ao caixa que seus os olhos se fixaram em mim como se me reconhecessem. Levantou-se então e veio se apresentar formalmente:
- Boa tarde, senhora. Acho que não nos conhecemos, não é? Sou Edson, o novo gerente e seu criado. - Disse ele, a voz firme, mas com uma suavidade que fez meu coração pular.
- É... Pra-Prazer! Eu sou... sou Helena, filha do Seu Zé Padeiro e Dona Clara, esposa Evaristo Teodoro, da farmácia...
- Ah sim!? Já ouvi falar muito bem de seu marido. E... como posso ajudar?
- Só... Só vim... fazer um depósito. - Respondi, sentindo o rosto queimar, como se eu fosse novamente aquela menina de treze anos, pega desprevenida pelo olhar de Fabiano.
- Ah, claro! Joãozinho, faça o procedimento. Enquanto acompanho Dona Helena até minha mesa para lhe servir um café.
Fui. Não sei como, mas fui. Só me dei conta disso, quando uma xícara de café já fumegava à minha frente. Edson falava com entusiasmo de sua impressão sobre nossa cidadezinha, mas havia algo naquele olhar... algo que me desconcertou. Era como se ele me conhecesse, como se nossos olhos compartilhassem uma coisa de alma, algo que eu não entendia. Saí do banco com o coração acelerado, as mãos trêmulas segurando o recibo, uma sensação que eu pensava ter enterrado para sempre.
Depois daquele dia, o destino pareceu trabalhar, eu só não sabia se a nosso favor ou contra, pois nossos encontros se tornaram frequentes. Começaram com conversas casuais no banco, sorrisos trocados enquanto ele me entregava papéis, pequenos gestos que cresciam em significado. Ele me fazia rir, algo que eu não fazia espontaneamente há anos. Ele me fazia sentir vista, não como a esposa de Evaristo, não como a filha de José e Maria, mas como Helena, a mulher que eu havia esquecido que era:
- Você já sentiu que conhece alguém, mas não sabe de onde? - Perguntou ele certa vez, enquanto tomávamos café em sua mesa.
- Já... - Murmurei, olhando acanhada para o fundo da xícara, sem ousar dizer mais, meu coração disparado com uma mistura de desejo e medo.
Em poucas semanas, o que começou como um nada, virou um flerte, que virou um improvável caso ardente, uma paixão que me consumia como fogo. Nossa primeira vez foi numa pracinha pouco iluminada, dentro de seu carro. O meu recato deu lugar a uma safadeza que eu não sabia ter. Foi ali que eu chupei o seu pau até fazê-lo gozar e bebi o seu sêmen como se fosse o néctar dos deuses do Olimpo. Não paramos por aí, pois ele me queria demais e eu me entreguei, primeiro cavalgando-o e depois deixando que ele me montasse:
- Onde quer que eu goze, Helena? - Perguntou, arfando, quase em desespero por se aproximar do clímax.
- Onde quiser! Pode ser na minha... aí na minha... você sabe. Eu... não posso engravidar mesmo, então use-a a seu bel prazer.
Ele urrou feito um animal ferido e despejou uma quantidade que eu imaginava impossível depois da primeira gozada. Ficamos os dois abraçados, gozados, vazando, mas leves e felizes, eu pelo menos, de uma forma que não sabia ser possível novamente.
Passamos também a nos encontrar em motéis baratos, com lençóis que cheiravam a sabão em pó e paredes que guardavam segredos de outros amantes. Foi inclusive numa dessas vezes que ele me tomou o cu, dizendo que era uma prática prazerosa demais. Eu nunca havia imaginado usá-lo para tanto. Fabiano não pedira e Evaristo não ousara, mas Edson o tomou para si. Gritei a plenos pulmões, primeiro de dor, depois de angústia, por fim de um prazer que eu não imaginava ser possível. Eu sentia o meu cu pulsar ao redor do seu pau e também sentia o seu pau pulsar, inundando minhas profundezas com seu sêmen.
Também ousávamos em público. Nos beijávamos em ruas desertas, onde o único som era o canto dos grilos e o bater dos nossos corações. Cada toque dele era como uma faísca, reacendendo uma chama dentro de mim que eu pensava estar morta. Mas cada beijo momento, me trazia uma sombra de culpa. Eu entendi que amava realmente Evaristo, e o traía ao fazer aquilo, justo ao homem que me dera tudo, que me amava mesmo com minhas cicatrizes. E ainda assim, eu não conseguia parar. Tentei me convencer que cada novo encontro seria o último, mas Edson era um vício, uma necessidade que eu não sabia explicar.
Certo dia, após uma transa em que ambos ficamos de pernas bambas, enquanto ainda nos recuperávamos, Edson me surpreendeu:
- Helena, você já pensou em deixar tudo pra trás? Começar de novo?
- Edson, eu... eu... não posso. Eu... Eu tenho uma vida. - Respondi, mas minha voz tremia, porque, pela primeira vez, eu queria acreditar naquilo.
- Mas... você não sente algo especial por mim? Eu... Poxa! Quando estou com você, eu sinto que posso tudo! Sinto... Não! Eu tenho certeza de que você é a minha cara metade, quem eu procurei a minha vida toda.
A culpa por trair Evaristo, que já me fazia chorar escondida, me fez chorar à sua frente, copiosamente. Ele se desculpou pela ousadia, mas não pelo convite. Ele me queria e fazia questão de deixar isso claro.
Minha mãe que acabara se reconciliando aos trancos com minha avó, a trouxe para passar uns dias em sua casa. Dona Chica, aquela mesma que eu prometera nunca mais olhar, veio me procurar, querendo o meu perdão, falando palavras doces, ideias religiosas, trechos bíblicos, e eu cedi. Ela se tornou uma presença quase diária em minha casa e foi ela que começou a notar minha mudança. Eu estava mais distraída, mais viva, mas também mais inquieta. Quando conheceram Edson, numa tarde em que ele passou na farmácia para entregar um documento qualquer a Evaristo, vi algo estranho nos olhares que elas trocaram. Minha mãe, com seus cabelos castanhos agora salpicados de grisalho, parecia inquieta, os dedos apertando a bolsa com força. Minha avó, com seu coque apertado e o rosto marcado por rugas profundas, olhou para Edson com uma desconfiança que me fez estremecer:
- Esse rapaz... Vem de onde mesmo?
- De Cuiabá, Dona Chica. É o novo gerente local. - Respondeu meu marido.
- Uhum. Sei... - Resmungou minha avó, olhando-o desconfiada: - Ele me lembra alguém.
- É só um forasteiro, mamãe. - Retrucou minha mãe, mas seus olhos também não tentavam descobrir algo que ela própria não entendia bem o que é.
Eu, cega pela paixão, não percebia os sinais. Não via que elas estavam desconfiando de algo, que a semelhança entre mim e Edson, os cabelos aloirados, os olhos azuis, o jeito de inclinar a cabeça ao sorrir e o sorriso meio torto, era mais que coincidência. Minha mãe e minha avó se uniram, buscando ajuda junto de Jair Penteado, um investigador das antigas que ainda morava em nossa cidadezinha. A verdade da origem de Edson veio rápida, em não mais do que uma semana: descobriram que ele era adotado, fato que ele próprio desconhecia, e que o bebê havia sido levado à capital por duas irmãzinhas do Sagrado Coração, tendo ficado num convento até ser finalmente adotado. As dúvidas ainda existiam, mas uma certeza ainda maior agora as unia. Minha avó convenceu minha mãe a não me contar, temerosa do que isso poderia desencadear na minha cabeça. Mas a verdade, como sempre, encontrou um jeito de se revelar.
A tragédia veio numa tarde quente de setembro. Edson havia dado uma fugida da agência e veio me encontrar em minha casa. Normalmente, eu não o receberia, mas calhou de Evaristo estar na capital, tratando com fornecedores. Imaginei que o risco seria mínimo, inexistente. Errei... feio...
Edson chegou e como de costume nos entregamos a paixão. Roupas sendo lançadas ao léu enquanto eu tomava seu corpo com paixão e ele me devorava com o costumeiro tesão de sempre. Lembro bem que gozei enquanto estávamos num “69” e para abafar meus gritos, afinal, meus vizinhos não poderiam suspeitar o que acontecia dentro daquelas quatro paredes, mordi a coxa dele, fazendo ele gemer alto. A partir daí, ele me tomou num papai-e-mamãe, tradicional, mas não tão romântico, porque ele gostava de ser intenso nas penetrações, alternando a profundidade de modo a ampliar as nossas sensações. Depois disso, me colocou de quatro e montou em mim como se eu fosse uma cadela. Seu hálito quente contra meu pescoço, fazia eu me perder nele, como se nada mais importasse. Nosso mundo era perfeito, enquanto o de fora seguia esquecido. Foi o nosso erro!
Não ouvimos a porta abrir. Não vimos minha avó entrar. Ela já tinha se tornado tão habitual que não me dei conta de que ela já sabia onde eu guardava uma chave extra, embaixo de um vaso de acácia na minha varanda. Quando a vi, parada na porta, com os olhos arregalados e o rosto contorcido de choque, senti o sangue gelar nas veias:
- Mas... que... Que pouca vergonha é essa, Helena!? E... E... você!? - Ela gritou, a voz estridente, as mãos tremendo enquanto apontava para nós.
Ela levou a mão ao peito e depois à cabeça, o rosto ficando vermelho, e desabou no chão como uma boneca quebrada. Eu e Edson nos separamos e corremos até ela. Eu a chamava, mas seus olhos estavam vidrados, a respiração falhando e nada me respondia. Edson, em pânico, chamou uma ambulância, que não tardou a chegar. Socorrida, Dona Chica, filha de uma mulher que nunca cedeu, foi levada ao hospital, onde diagnosticaram um AVC. Ela entrou em coma naquele mesmo dia e nunca mais saiu.
Eu agora me afogava em culpa. O pânico me dominava. Minha mãe, chamada às pressas, exigiu saber o que acontecera. Estávamos na sala de espera, eu e Edson, sozinhos, o ar pesado com o cheiro de desinfetante do hospital, que parecia querer grudar na alma. Eu, desesperada, seguia a máxima de que “só a verdade liberta”:
- Mãe, eu... a gente... nós estávamos... juntos... - Confessei, as lágrimas queimando meu rosto, a voz quebrada:
Minha mãe arregalou os olhos e tapou a boca. Certamente, nem em seus piores pesadelos, ela imaginaria aquilo. Eu tentava justificar:
- Eu sei que errei. O Evaristo... Ele não merece, mas... mas, mãe, eu amo o Edson e ele me ama.
Ela seguia nos olhando com uma dor que cortava mais que qualquer faca em brasa. Seus olhos castanhos, tão parecidos com os da minha avó, estavam cheios de lágrimas, mas havia algo mais, um segredo que ela não podia mais segurar:
- Você não pode ficar com ela, Edson, não como homem e mulher. - Disse ela, a voz tremendo, cada palavra um peso que caía sobre nós: - Você é a mãe dele, Helena. Ele é o seu filho, o Miguel.
O mundo parou por um instante e senti como se levitasse. Senti o chão sumir, meu coração se despedaçar em mil pedaços. Edson, atônito, balançou a cabeça, os olhos arregalados, as mãos tremendo, negando veementemente:
- Desculpa, Dona Maria, mas isso é impossível! Eu sei quem são os meus pais! Eu sou filho do Antônio e da Lúcia, lá de Cuiabá! - Falou ele, a voz carregada de descrença, o rosto contorcido, talvez imaginando uma tentativa de nos separar: - A senhora só pode estar mentindo, ou muito enganada...
- Meu filho, eu não queria contar isso assim para vocês, mas... - Minha mãe chorava, as mãos apertadas uma contra a outra: - Mas eu sei a verdade. Eu e minha mãe desconfiamos de você assim que te vimos. Um conhecido nosso, investigador de polícia, procurou informações e descobriu a verdade. Você é o Miguel, o filho da Helena. A minha mãe... ela tomou você dela e te deu pra adoção. Sinto muito!
- Não! - Gritou ele, batendo a mão na mesa, o som ecoando na sala como um trovão: - Não pode ser verdade! E eu vou provar que você tá errada.
Ele pegou o celular, os dedos tremendo enquanto discava. Eu fiquei parada, o corpo gelado, a mente uma confusão girando como um redemoinho de dor. Não conseguia respirar, não conseguia pensar. A conexão que sentia com Edson, o vazio que ele preenchia, o jeito como seus olhos pareciam espelhar os meus, tudo fazia sentido agora. O que deveria ser um momento de felicidade único agora tinha se tornado horrível, insuportável. Enquanto Edson falava ao telefone, a voz alta e desesperada, eu me agarrava à borda do sofá, as unhas cravadas no tecido, tentando não desabar, sonhando que minha mãe estivesse errada:
- Mãe, mas... Então, é verdade!? - Ouvi ele dizer, a voz falhando, como se o mundo dele também estivesse ruindo: - Vocês me adotaram? Por que nunca me falaram nada?
O silêncio do outro lado da linha parecia eterno. Logo ele novamente falou:
- Por quê? Porque eu encontrei a minha mãe e não foi de um jeito bom...
Conversaram mais um pouco, mas quando ele desligou, seus olhos estavam cheios de lágrimas, o rosto pálido, os ombros curvados como se carregasse o peso do mundo. Ele olhou para mim e o que vi ali não era mais o homem confiante que me fazia rir, mas um menino perdido, destruído pela verdade:
- Minha mãe... ela confirmou. - Sussurrou ele, a voz tão baixa que mal ouvi: - Eu fui adotado. Mas... como? Como isso pode ser verdade?
Eu não precisava de mais provas. No fundo da minha alma, eu sabia. Caí de joelhos, um grito preso na garganta, enquanto a culpa, o nojo, a dor me engoliam. Eu havia perdido Miguel uma vez, arrancado dos meus braços pela minha avó. Agora, eu o perdera novamente, de uma forma que nenhuma mãe deveria conhecer:
- Não me toque! Não, não, não assim! Nunca mais! - Gritei, quando ele tentou se aproximar, o calor de sua proximidade queimando minha pele como ácido.
- Eu... Eu...
- Calma! Fiquem calmos. Vocês não tem culpa de nada. Aliás, você tem, Helena, é culpada de trair o seu marido, mas quanto a você Miguel, Edson... - Minha mãe pigarreou: - Não tinham como imaginar.
Edson saiu, destruído, sem dizer uma única palavra, o som dos seus passos ecoando na minha mente como um adeus. Minha mãe tentou me abraçar, mas eu a afastei, o corpo tremendo, a mente ainda girando em um redemoinho de dor. Como eu podia ter feito isso? Como podia ter me apaixonado pelo meu próprio filho, ter me entregado a ele, sem saber? A culpa de trair Evaristo agora me massacrava impiedosamente, lembrando que se eu tivesse resistido, nada disso teria acontecido. Ela era um monstro, devorando-me por dentro, enquanto as memórias de Miguel, seu choro, seu rostinho, seus olhos, se misturavam ao rosto de Edson, ao seu toque, ao seu amor.
Mas a dor não parou ali. Naquela mesma noite, Evaristo chegou em casa mais cedo do que o esperado. Eu estava na sala, ainda em choque, os olhos inchados de tanto chorar. Ele, com seus olhos castanhos cheios de preocupação, percebeu imediatamente que algo estava errado. Falei de minha avó, mas não tive coragem de contar toda a verdade. Não era o momento, mas esse momento chegaria.
Os dias seguintes foram um inferno silencioso. Eu não conseguia olhar para Evaristo sem sentir o peso da traição e da verdade que agora carregava. Ele, com sua bondade ingênua, percebia minha tristeza, mas não sabia a causa. Até que, naquela noite, ele chegou em casa mais cedo do que o esperado. Eu estava na sala, os olhos inchados de tanto chorar, o cabelo loiro solto e emaranhado, como se refletisse o caos dentro de mim. Olhava para uma foto do Edson. Evaristo parou na porta sem que eu percebesse e me olhou em silêncio por segundos, minutos talvez. Sua voz me trouxe à realidade:
- Helena, o que tá acontecendo? - Perguntou ele, a voz firme, mas com um tremor que denunciava sua insegurança: - Ouvi fofocas infames. Ouvi de Dona Rosa que disse ter ouvido de Carminha que ouvi de Juracéia que ouviu de Jascineide que te viram saindo de um motel... com aquele gerente novo lá do banco...
Honrado e respeitoso que é, nem chegou a concluir, me perguntando se aquilo era verdade. Nem precisaria. O ar fugiu dos meus pulmões. Até pensei em mentir, dizer que era um engano, mas o peso que recaía sobre mim já era demais. As lágrimas voltaram, quentes e pesadas, enquanto eu abaixava a cabeça, incapaz de encará-lo, minhas mãos tremendo no colo:
- É verdade... - Murmurei, a voz tão fraca que mal saía: - Eu... Eu me envolvi com ele. Mas, Evaristo, eu... eu juro que eu não sabia...
- Não sabia do quê, Helena? - Ele gritou pela primeira vez comigo, interrompendo-me, o rosto vermelho, as mãos fechadas em punhos, as rugas na testa se aprofundando: - Que tu tava traindo o teu marido, o homem que te ama? Que tava jogando fora tudo o que construímos?
- Não é só isso! - Gritei de volta, o desespero tomando conta, meu peito apertado como se fosse explodir: - Ele... o Edson... ele é meu filho, Evaristo! O Edson... ele é o Miguel, o filho que a minha avó me tomou!
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Seu semblante mudou da água para o vinho. Evaristo me olhou como se eu fosse a quarta besta do apocalipse, os olhos arregalados, a boca entreaberta. Ele deu um passo para trás, como se minha presença o queimasse, os ombros curvados sob o peso da dupla revelação. Seus olhos castanhos, que sempre foram meu refúgio, agora estavam cheios de uma dor que eu causara, mas ainda assim ele quis entender antes de reagir:
- Como... Como isso é possível? - Perguntou ele, a voz agora um sussurro, cheia de incredulidade, as mãos caindo ao lado do corpo como se não soubesse o que fazer com elas: - Você tá me dizendo que... que você se envolveu com seu próprio filho?
Eu não conseguia responder. Apenas chorei, o corpo tremendo, convulsionando, as unhas cravadas nas palmas das mãos, enquanto as memórias de Miguel se fundiam novamente ao rosto de Edson. Evaristo ficou paralisado, o rosto pálido, os olhos fixos em mim, como se tentasse entender o abismo que se abrira entre nós. Pensei que ele iria embora, que me deixaria ali, sozinha com minha culpa, mas ele não se moveu:
- Helena, eu não sei como processar isso. Não sei como olhar pra você sem sentir uma dor imensa pelo que você me fez, mas... - Ele se calou, emocionado, olhos brilhando com lágrimas que não caiam: - Não consigo imaginar o que você está sentindo.
Eu chorava sem parar. A culpa que me massacrava agora era uma dor ainda maior por ver o que eu causara ao único homem digno e honrado de verdade que soube me acolher e levantar:
- Eu... Eu te amo. Sempre te amei, mesmo com suas cicatrizes. E não vou te abandonar agora, não até entendermos direito essa situação para resolvê-la.
As palavras dele foram como uma faca e um bálsamo ao mesmo tempo. Eu acreditava nelas, queria me agarrar à sua bondade, mas a culpa me sufocava. Como ele podia me amar depois disso? Como podia ficar ao meu lado, sabendo que eu o traíra, que eu havia cometido um pecado que nem o tempo poderia apagar?
- Evaristo, eu não te mereço. - Sussurrei, as lágrimas escorrendo pelo rosto, o cabelo caindo sobre os olhos como uma cortina: - Eu destruí tudo. Como você ainda pode querer ficar comigo?
- Porque eu fiz um voto, Helena. Eu prometi estar com você na alegria e na tristeza. E isso... isso é mais do que tristeza, é uma chaga que ninguém deveria carregar. - Disse ele, aproximando-se, os olhos castanhos brilhando com lágrimas contidas: - Mas vamos carregar juntos. Eu vou te ajudar...
Ele se sentou ao meu lado, hesitante, como se temesse me tocar. Sua mão, calejada de anos mexendo com frascos e papéis na farmácia, pairou sobre a minha antes de finalmente segurá-la. O calor daquele toque era quase insuportável, porque eu não me sentia digna dele. Mas Evaristo, filho de um homem que sempre honrou sua palavra, não desistiu de mim. Ele ficou, mesmo quando eu não conseguia me perdoar.
Minha mãe, consumida pela culpa de ter escondido a verdade, passava as noites rezando, o rosário apertado entre os dedos, o rosto marcado por rugas que pareciam mais profundas a cada dia. Edson, incapaz de suportar a cidade, pediu transferência para uma agência em outra cidade, mas não desapareceu de vez. Timidamente, entrou em contato com meu marido, se identificando, talvez querendo saber se seria escorraçado, mas Evaristo o atendeu com hombridade e retidão. Havia mágoa? Sim, havia. Mas meu marido deu um exemplo que por gerações seria ensinado aos filhos que Miguel tivesse.
Minha avó, Dona Chica, nunca saiu do coma e faleceu semanas depois, levando para o túmulo a culpa de ter separado uma mãe de seu filho. Eu a havia perdoado, mas caberia a Deus dar-lhe o perdão e o descanso eterno. Se ela era merecedora ou não, não me caberia julgá-la.
Evaristo convidou Miguel a retornar e começar uma história da forma correta, como deveria ter sido desde o início. Ele titubeou, mas aceitou. Quando nos reencontramos, o amor que nos unia e ameaçava excluir Evaristo, agora tinha uma face bem delimitada e que o incluiria afinal. Edson, o meu Miguel, seria agora o meu filho e Evaristo elevado a mais alta condição de padrasto. Era justo, havia honra demais naquele homem para não passar às próximas gerações.
Ainda assim, os meses que se seguiram foram uma luta silenciosa. Evaristo e eu continuamos casados, mas a casa parecia maior, mais vazia, mesmo com ele ao meu lado. Ele tentava reconstruir o que tínhamos, com gestos pequenos, um café servido pela manhã, um toque leve no ombro, outro na minha cintura, uma conversa sobre o clima. Mas eu via uma certa dor nos seus olhos, a luta para superar a traição, para aceitar a verdade que quase nos destruíra. Meus cabelos, que outrora brilhavam como ouro, agora pareciam opacos, sem vida, presos em coques frouxos que eu mal me importava em arrumar. Meus olhos, que já foram comparados ao céu, agora eram apenas espelhos de uma dor que não explicava:
- Vamos superar isso, Helena. - Disse Evaristo, uma noite, enquanto estávamos sentados na varanda, o céu estrelado acima de nós. - Não vai ser fácil, mas eu não vou desistir de você. Além do mais, Edson agora também faz parte da nossa vida. Do jeito certo...
- Eu não sei se consigo, Evaristo. - Confessei, a voz embargada, as mãos apertando a saia: - Como posso viver com essa culpa? Como posso olhar pra você sabendo o que fiz? Como posso olhar para Miguel sabendo o que fiz?
- Você consegue, porque não está sozinha. Nós, eu e ele, estamos aqui e estamos aprendendo a aceitar o que aconteceu. Então, dê um passo de cada vez; viva um dia de cada vez. - Respondeu ele, a voz suave, mas firme, os olhos castanhos buscando os meus: - Seu filho está de volta e você não ficará sozinha. Nunca mais...
Evaristo, com sua honra inabalável, escolheu ficar. Ele carregava sua própria dor, mas não me deixou carregar a minha sozinha. E eu, perdida entre a culpa e a gratidão, tentava ser merecedora de uma amor como aquele, abnegado, decidido. E, nas noites silenciosas, enquanto o mundo dormia, eu me perguntava se algum dia encontraria redenção, ou se algumas feridas, como as minhas, nunca cicatrizariam.
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