✧ Segundos de Vertigem ✧
(Tiago)
A vitória contra os feiticeiros gêmeos não ofereceu consolo contra o frio implacável da montanha. O ar rarefeito queimava meus pulmões a cada respiração ofegante, e o mundo se resumia ao som do vento e ao cascalho rangendo sob nossas botas. Subíamos por uma trilha que mais parecia uma cicatriz na face do pico, um caminho esculpido pela indiferença da natureza, onde o abismo de um lado era um convite à aniquilação e a parede de rocha do outro, uma companhia gélida. Cada passo era uma negociação com a gravidade. O vento não apenas uivava; ele gritava, uma força tangível que me empurrava para o vazio faminto que devorava a luz abaixo.
Forcei-me a não olhar, mas a imensidão cantava uma canção de sereia para o meu pavor. Um nó de gelo, muito diferente da magia que eu manipulava, se formava em meu estômago — um gelo paralisante, nascido do medo primordial de cair que se aninhava no âmago da minha alma. Minhas mãos suavam dentro das luvas de couro, e eu cravava os dedos na parede de pedra como se minha vida fosse a frágil âncora que me prendia à existência. O que, de fato, era.
(Lucas)
Eu ia na frente, um batedor nato, sentindo a hesitação de Tiago como uma vibração na própria rocha sob meus pés. Seus passos eram cuidadosos demais, seu silêncio, pesado demais.
“Quase lá, mago. Apenas não alimente o abismo com seus olhares”, eu disse, minha voz um pouco mais alta para cortar a sinfonia do vento.
Tentei injetar uma confiança que eu mesmo mal sentia, pois aquele vento parecia ter dentes. Foi então que as ouvi. Não eram gritos, mas algo mais puro e terrível: eram o som de estilhaços de vidro cantando em harmonia. Três formas rasgaram o véu de nuvens acima de nós, mergulhando com uma precisão mortal. Não eram pássaros de carne e osso, mas águias esculpidas em gelo eterno, opaco como osso polido. Suas asas cortavam o ar num silêncio sobrenatural, e seus olhos multifacetados brilhavam com uma luz azul fria, a luz de uma estrela morta.
“Problema”, murmurei, o calor familiar das minhas adagas se derramando em minhas palmas. “Atrás de mim, Tiago! Agora!”
Uma delas inclinou as asas, transformando-se num míssil de gelo, suas garras, afiadas como navalhas de obsidiana, mirando diretamente meu coração.
(Tiago)
Meu corpo se cravou no lugar, mas não era a magia das criaturas que me prendia. Era a geometria do ataque. Vindo do céu, do vasto nada, do poço invertido que eu tanto temia. A águia mergulhou e, por um instante que se esticou em terror, eu me vi caindo com ela, despencando no esquecimento. Uma âncora de pavor puro me prendeu à trilha. Minha magia, normalmente uma extensão fluida da minha vontade, engasgou e se recolheu. Eu via Lucas se mover — um borrão de couro, aço e intenção — mas eu era uma estátua.
O mundo inclinou-se sobre um eixo invisível, e a vertigem me roubou não apenas o equilíbrio, mas a própria coragem. Um grito de comando, uma barreira de proteção, um projétil de gelo… qualquer coisa. Eu queria, eu precisava, mas a fonte da minha magia, normalmente um rio caudaloso, era agora um filete congelado na nascente. Minhas mãos tremiam tão incontrolavelmente que mal conseguiam se fechar, e minha mente era um redemoinho de pânico branco, surda ao combate que se desdobrava a poucos metros de mim.
(Lucas)
Rolei sob a investida, o vento do deslocamento da criatura chicoteando meu rosto. A garra de gelo atingiu a rocha onde eu estava, arrancando uma chuva de lascas com um chiado agudo. Girei sobre o calcanhar, canalizando a fúria contida que sempre ardia sob minha pele.
“Vamos ver se vocês resistem a um calor de verdade!”, bradei, liberando uma torrente de chamas dançantes contra a águia mais próxima.
E então, o impossível. Minhas chamas, meu poder, que poderiam derreter o portão de uma fortaleza, simplesmente morreram ao tocar a superfície cristalina da criatura. Elas sibilavam e eram extintas como velas num vácuo, sem deixar sequer uma gota de condensação. Aquele gelo não era deste mundo; ele era a antítese do fogo.
Antes que meu cérebro pudesse processar a quebra fundamental das leis da natureza, as três criaturas abriram seus bicos em uníssono. Não liberaram um grito, mas um pulso de silêncio concentrado, um sopro de entropia pura. O ar ao meu redor estalou com um click audível e se solidificou. O mundo se tornou um mausoléu de silêncio e âmbar gélido.
(Tiago)
Eu assisti, paralisado, enquanto Lucas era engolido por uma casca de gelo translúcido. Seu rosto, congelado no meio de um grito de guerra, era uma máscara de fúria e choque impotentes, um momento de desafio imortalizado para sempre.
O medo em meu peito, que antes era uma pontada aguda, metastatizou-se em terror absoluto. As águias se viraram para mim em perfeita sincronia, seus olhos azuis fixos na presa fácil e trêmula. Tentei recuar, fugir, mas meus pés pareciam fundidos à trilha. O mesmo sopro gélido me atingiu, um frio profano que não apenas resfriava, mas que parava o tempo dentro de mim. Era um frio que não vinha de fora, mas que nascia em cada célula, aniquilando o movimento em sua origem.
Fui encerrado em minha própria prisão cristalina, meus músculos transformados em estátuas, meus olhos abertos e fixos na figura congelada do meu único companheiro. A única coisa que se movia era minha mente, uma consciência lúcida, sepultada viva em sua própria carne petrificada, forçada a encarar o monumento da minha própria inépcia.
Preso. Imóvel. Um monumento à covardia. O tempo se desfez dentro da minha cabeça, cada segundo uma eternidade de corrosiva autoaversão. Lá estava Lucas, congelado em meio à batalha porque eu hesitei. Ele, que nunca recuava, que era escudo, muralha e vanguarda, incapacitado porque meu medo estúpido de cair foi mais forte que meu dever de protegê-lo. Uma chuva de trutas, um poço escuro, e agora isto. Cada desafio, a mesma vergonha repetida: Lucas se lançando à frente, e eu, o mago poderoso, tropeçando em meu próprio medo.
A vergonha queimou em meu peito, um fogo paradoxal no coração da minha prisão de gelo, derretendo o pavor e deixando para trás apenas o resíduo cáustico do desprezo. Não era mais o abismo que eu temia. Era o reflexo do covarde que via nos olhos congelados de Lucas. E por aquele covarde, eu senti um ódio profundo, visceral e incandescente.
Aquele ódio borbulhou, transformando-se em uma fúria que tinha seu próprio centro de gravidade. A energia dentro de mim, antes bloqueada pelo pânico, agora tinha um combustível puro e volátil. Eu não me importava mais com a altura, com a queda, com o abismo sem fundo. A única imagem em minha mente era a de Lucas, preso e indefeso por minha causa.
Com um grito silencioso que despedaçou a paisagem da minha mente, eu forcei minha magia para fora. O gelo ao meu redor não derreteu; ele foi pulverizado, explodindo para fora em uma chuva de cacos letais. Livre, não perdi um instante. Minha raiva era um bisturi. Três lanças de gelo, verdes, densas, imbuídas com a gravidade da minha fúria, materializaram-se e dispararam com uma velocidade impossível. Elas perfuraram as criaturas de cristal em pleno voo, e as águias se estilhaçaram, não em pedaços, mas em uma fina poeira de luar que o vento dispersou como um segredo.
Corri até Lucas e, com as mãos ainda tremendo pela adrenalina, impus minhas palmas em seu caixão de gelo e canalizei um pulso de pura força de vontade, quebrando-o como vidro.
(Lucas)
A sensação voltou com uma dor lancinante, o retorno brutal do sangue aos vasos capilares parecendo mil agulhas em brasa. Caí de joelhos, o ar entrando como fogo em meus pulmões congelados, cada inspiração uma agonia.
“Tiago…. você…”, comecei a dizer, a voz rouca, mas parei ao ver a poeira de cristal se dissipando ao vento. Ele tinha feito aquilo. Sozinho. Enquanto me erguia, apoiando-me na parede de rocha, meu olhar foi atraído para uma reentrância de onde as criaturas haviam surgido.
Lá, aninhado entre cacos de gelo eterno, pulsava uma luz suave e rítmica. Era uma esfera multifacetada, girando lentamente no ar, zunindo com uma energia que fazia os pelos do meu braço se arrepiarem. O “Fragmento Astral do Ar”.
Com um sorriso exausto e triunfante, eu o peguei. Era mais leve que uma pluma, quente ao toque.
“Inacreditável, Tiago! Você conseguiu! Nós conseguimos! Pegue!”, gritei, dominado pela euforia do momento e, num gesto impensado de vitória, joguei o fragmento para ele.
(Tiago)
O mundo se dissolveu em câmera lenta. O fragmento girando no ar, sua luz pulsando como um coração etéreo, o grito exultante de Lucas ecoando na montanha. Estendi a mão automaticamente, meus dedos se fechando ao redor de sua superfície lisa e vibrante. Mas meu foco estava na beleza da esfera, não na precariedade de meus pés. Minha bota escorregou na fina camada de gelo que cobria a beirada da trilha. Meu estômago despencou um segundo antes do resto do meu corpo.
O rosto de Lucas se metamorfoseou de triunfo para horror absoluto, sua boca se abrindo num grito mudo. O céu e a rocha se tornaram um caleidoscópio giratório enquanto eu me precipitava no abismo. O grito dele, agora audível, foi a última coisa que ouvi. Em pânico cego, apertei o fragmento em minha mão, um desejo desesperado, mudo e primal inundando minha mente: Não! Volte! E então, uma vertigem nauseante, mas para trás. O som do vento sendo engolido por um silêncio repentino. A sensação de queda revertida em uma ascensão impossível.
De repente, eu estava de pé na trilha, sólido, meu coração martelando contra as costelas como se quisesse escapar. O fragmento ainda estava nas mãos de Lucas.
“Não jogue!”, gritei, minha própria voz de pânico se sobrepondo ao eco do seu grito de triunfo que ainda não havia terminado.
Lucas ficou imóvel. Ele me olhou, a mais pura confusão gravada em seu rosto. “O quê…? Como você sabia que eu ia jogar? Teve uma visão?”
Dei um passo à frente, com um cuidado infinito, e peguei o fragmento de sua mão. A energia zuniu através de mim como um pensamento.
“A magia desta esfera me fez voltar no tempo”, eu disse, a voz ainda trêmula. ”Você a jogou e quando eu a peguei, acabei escorregando. Caí para a morte, Lucas.”
Enquanto eu falava, uma clareza assustadora inundou minha mente. A confusão de Lucas, sua descrença, seu alívio… eu não estava apenas vendo em seu rosto. Eu podia ouvi-los em minha cabeça: Ele caiu? Tiago quase morreu? Como isso é possível? Essa coisa… rebobinou o tempo? Será que é mais uma ilusão de meu pai?.
A voz era a de Lucas, mas seus lábios não se moveram. Eram seus pensamentos, crus e diretos.
“Seu pai nâo tem nada a ver com isso, Lucas”, respondi ao seu questionamento silencioso, fazendo-o recuar um passo, assustado. Foi quando todas as peças se encaixaram.
“Os fragmentos… eles são diferentes. O da Água tem grandes poderes curativls e nos concede pequenas visões do futuro. Este, o do Ar…”, fiz uma pausa, sentindo a verdade daquela energia em minha mão. ”Ele pode manipular o fluxo do tempo, nem que seja por um instante. E… nos dá o poder de ler pensamentos.”
Continua…