— Então... — ela começou, respirou fundo e me olhou diretamente nos olhos — preciso te contar uma coisa sobre o Luke. E depois preciso te fazer uma pergunta muito importante.
Meu coração disparou, mas tentei manter a compostura. Juliette mexeu nervosamente na xícara de café à sua frente antes de continuar.
— Lucas, eu sei que você e o Luke ficam de vez em quando, disse ela sem rodeios, e senti meu rosto esquentar, não vou fingir que não sei. Mãe percebe essas coisas, sabe? E olha, eu não tô aqui pra te julgar ou dar sermão sobre isso.
Abri a boca para falar alguma coisa, mas ela levantou a mão me interrompendo.
— Deixa eu terminar, meu querido. Você lembra que uma vez eu te falei que o Luke tem transtorno de personalidade? TPP? — perguntou, e eu assenti com a cabeça — pois é, embora ele faça tratamento contínuo, às vezes ele... foge um pouco do controle. E essa semana que passou, o Luke teve uma crise muito grande.
O sangue gelou nas minhas veias. Crise? Que tipo de crise?
— Que tipo de crise, tia? — perguntei, genuinamente preocupado.
Juliette suspirou pesadamente, como se carregar aquele peso fosse exaustivo.
— Olha, Lucas, primeiro preciso te explicar uma coisa. Você sabe que o Luke tá morando sozinho agora, né? — eu assenti — bem, essa foi uma escolha minha, não dele. Muita gente pode achar que foi irresponsabilidade minha deixar um menino com os problemas dele morar sozinho, mas... — ela pausou, escolhendo as palavras cuidadosamente — eu precisava que ele crescesse, entende? O apartamento fica perto da faculdade, tem uma empregada que vai lá três vezes por semana, e eu achava que assim seria a melhor solução pra ele ganhar independência.
— Entendo — disse, mas ainda não entendia onde ela queria chegar.
— Mas tem outro motivo, Lucas — ela continuou, a voz ficando mais tensa — você sabia que o Paul vai voltar pro Brasil? Pois bem, o Paul está de volta em breve e você sabe como o Luke tem ciúmes de vocês dois, né?
Senti como se tivesse levado um soco no estômago. Paul. Esse nome que eu tinha tentado apagar da minha memória voltou com força total, trazendo junto todas as lembranças, todas as sensações, toda a intensidade daquelas noites.
— Tia, eu e o Paul nunca mais nos falamos — disse rapidamente, tentando me defender de uma acusação que ela nem havia feito ainda.
— Eu sei, querido, eu sei. Mas o Luke... ele descobriu que o Paul tá voltando pra morar no Brasil de vez. E quando soube disso, ele surtou completamente — ela pausou, os olhos marejando um pouco — foram três dias de crise, Lucas. Três dias onde eu tive que ficar com ele direto, ele não conseguia parar de chorar, de gritar, falava que você ia abandonar ele de novo, que ia correr pros braços do Paul...
A culpa começou a corroer meu estômago. Eu não tinha culpa de nada, mas mesmo assim me sentia responsável pelo sofrimento do Luke.
— Por isso que eu mudei ele pra morar sozinho antes mesmo do Paul chegar — continuou Juliette — eu sabia que se eles se esbarrassem por aí, ou se o Luke visse vocês dois juntos de novo... seria o fim. E olha, Lucas — ela se inclinou pra frente, me olhando intensamente — eu tô te pedindo, pelo amor que você tem por ele, pelo amor que você tem por mim: não procure o Paul. Não dê corda pra ele se ele te procurar. O Luke estava progredindo tanto no tratamento...
— Tia, eu não tenho interesse nenhum no Paul — menti, porque uma parte pequena e sombria de mim já estava curiosa para saber como ele estava — e além do mais, eu e o Luke não voltamos a namorar. A gente só se encontra de vez em quando, nada sério.
Ela balançou a cabeça com uma expressão de quem conhecia aquela história melhor do que eu.
— Lucas, você precisa entender uma coisa sobre o Luke e os remédios que ele toma. Eles ajudam a manter ele controlado, a regular o humor dele, a controlar os impulsos. Mas quando ele entra em crise, como entrou essa semana, é como se os remédios perdessem o efeito. Ele fica... perigoso. Não fisicamente, mas emocionalmente. Ele se torna capaz de qualquer coisa pra não perder quem ele ama.
Um arrepio percorreu minha espinha. Pela primeira vez, comecei a entender a gravidade da situação.
— E esse negócio de vocês ficarem quando querem não funciona, Lucas — continuou Juliette, a voz ficando mais firme — não é saudável nem pro Luke, nem pra você. O Luke é uma bomba-relógio, meu querido. Essa situação de vocês ficarem esporadicamente só alimenta a obsessão dele. Sinceramente, acho que vocês deveriam ou terminar de vez, ou voltar pra valer. Esse meio-termo tá matando ele por dentro.
Engoli seco. Nunca tinha pensado nisso por esse ângulo.
— Tia, não tá nos meus planos voltar pra valer com o Luke — admiti — mas eu poderia pensar em me afastar, só que... — hesitei — tenho medo do que ele pode achar. Ele pode pensar que eu tô terminando porque soube que o Paul tá voltando, que eu quero ficar livre pra ficar com ele.
Juliette me olhou com uma expressão que misturava alívio e preocupação.
— E não é exatamente isso que pode acontecer? — perguntou diretamente, e eu senti como se ela tivesse lido minha alma — Lucas, você é um menino maravilhoso, mas eu te conheço, eu vi o jeito que você olhava pro Paul, vi a intensidade entre vocês. E eu tenho muito medo de que quando ele voltar...
Ela não precisou terminar a frase. Nós dois sabíamos exatamente o que ela estava querendo dizer.
— É exatamente isso que eu tenho medo — concordei, porque não adiantava mentir pra ela — se eu me afastar do Luke agora e depois o Paul me procurar... vai parecer que foi tudo planejado. E aí o Luke vai surtar de vez.
— Vai surtar de qualquer jeito, Lucas — disse Juliette com uma tristeza profunda na voz — por isso que eu tô te pedindo: escolha. Ou você fica longe dos dois, ou você assume de vez com o Luke. Mas essa situação que tá não pode continuar. É uma bomba que vai explodir mais cedo ou mais tarde.
Ficamos em silêncio por alguns minutos, cada um perdido em seus próprios pensamentos. O peso daquela conversa estava me esmagando.
— Tia, eu vou pensar em tudo que você falou — disse finalmente — e prometo que não vou procurar o Paul. Se ele me procurar... bem, vou tentar ser forte o suficiente pra não ceder.
— Tentar não é o suficiente, Lucas — ela disse firmemente — porque quando se trata do Luke, não existe meio-termo. É tudo ou nada.
Ela se levantou, pegou a bolsa e me deu um beijo na testa.
— Cuida de você, meu querido. E lembra: algumas decisões que a gente adia acabam sendo tomadas pela vida. E nem sempre da forma que a gente quer.
E com isso, ela saiu, me deixando sozinho naquele restaurante com mais perguntas do que respostas.
A conversa com Juliette foi como um soco no estômago que doí por horas depois do impacto. Por um lado, eu teria mais um problema se aproximando, Paul estava voltando. Mas por outro lado, ele não havia me procurado durante todo esse tempo, então talvez não fosse necessariamente um problema a volta dele para o Brasil.
Mentira. Eu estava mentindo pra mim mesmo e eu sabia disso.
Apesar de tentar racionalizar a situação, quando Juliette falou o nome dele, foi como se uma represa se rompesse na minha memória. As lembranças vieram em ondas: nossas noites de amor intenso, os beijos que pareciam incendiar minha alma, a forma como ele sussurrava meu nome no escuro. Paul sempre foi intenso, sempre foi fogo puro correndo nas minhas veias. E devo ser canalha o suficiente pra admitir que se ele aparecesse na minha porta amanhã, eu cederia? Ou será que eu conseguiria ser forte o suficiente pra resistir?
Eram problemas que ainda iriam chegar, então mais uma vez resolvi adiar aquilo e deixar as coisas acontecerem no seu devido fluxo. Era minha especialidade: empurrar os problemas com a barriga até eles explodirem na minha cara. Mas uma parte de mim, a parte mais sombria e honesta, já estava contando os dias até Paul voltar.
Por outro lado, eu estava genuinamente preocupado com essas crises que Juliette havia mencionado sobre Luke. Eu sabia que ele era desequilibrado emocionalmente, mas achei que era coisa do passado, cicatrizes de adolescente que já tinham sarado. Pelo visto, eu estava completamente enganado. Faltava muito ainda pro Luke se tratar, e o pior: eu estava sendo um dos gatilhos das crises dele.
Até então, ele não tinha dado indícios claros de surtos ou crises de ciúmes extremos comigo. Afinal, meu contato com Luke era basicamente sexo, quando eu estava afim, mandava mensagem; quando ele estava afim, me mandava mensagem. A gente transava, conversava algumas bobeiras, e cada um ia pra sua vida. Não falávamos sobre voltar à rotina de namoro, nem sobre sentimentos profundos, nem sobre o futuro.
Eu estava confortável com essa situação que estávamos vivendo. Era simples, sem compromisso, sem cobrança. Mas agora, depois da conversa com Juliette, comecei a perceber que talvez essa simplicidade fosse apenas a calmaria antes da tempestade. Eu não sabia até que ponto aquele termo "bomba-relógio" poderia explodir na minha cara.
Já com Guto, tudo ia bem. Nossa química era boa, ele era bonito, transava bem, me dava conforto e estabilidade. Mas sempre faltava algo (ele me comer). Era justamente esse "algo" que eu procurava no Luke, ou em qualquer outro cara que cruzasse meu caminho.
Mas eu sabia, no fundo da alma, que esse "algo" que eu tanto procurava poderia me trazer consequências sérias. Talvez fosse a hora de parar de brincar com fogo antes que tudo explodisse nas minhas mãos.
O problema é que eu sempre fui viciado em brincar com fogo. E agora, com Paul voltando e Luke sendo uma bomba-relógio, eu estava prestes a descobrir se conseguiria sair ileso dessa vez.
Ou se dessa vez o fogo finalmente me queimaria por completo.
Voltei pra cobertura do Guto ainda com a cabeça fervilhando depois da conversa com Juliette. Precisava distrair minha mente, parar de pensar em Paul, em Luke, em bombas-relógio prestes a explodir. Resolvi fazer uma surpresa para Guto, algo simples, mas romântico. Passei no mercado e comprei um vinho tinto e uma daquelas tábuas de frios que já vem pronta. Era brega e simples, admito, mas eu queria ser um pouco romântico, queria me sentir normal por algumas horas.
Subi pelo elevador privativo da cobertura com um sorriso nos lábios, imaginando a cara de surpresa do Guto. Usei minha chave e abri a porta, as sacolas nas mãos, já falando:
— Amor, trouxe uma surpresa pra...
As palavras morreram na minha garganta quando me deparei com a cena: Haroldo estava sentado confortavelmente no sofá da sala, as pernas cruzadas como se fosse o dono do lugar, conversando animadamente com Guto. O mesmo Haroldo que havia me humilhado no CrossFit, o mesmo ex-marido venenoso que eu pensei ter deixado pra trás.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Guto se levantou rapidamente do sofá, a culpa estampada no rosto como se tivesse sido pego em flagrante traindo. Haroldo, por sua vez, se virou lentamente na minha direção com um sorriso que destilava puro veneno.
— Ora, ora, se não é o garotinho — disse Haroldo com aquele tom sarcástico e desprezível que eu já conhecia bem — que coincidência te encontrar aqui... na casa do MEU ex.
— Haroldo, o que você tá fazendo aqui? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo a raiva subir pela garganta como bile.
— Ah, que falta de educação a minha! — ele disse se levantando do sofá com uma elegância teatral — não me apresentei direito né? Sou Haroldo, o ex-marido do Guto. O VERDADEIRO ex-marido — enfatizou a palavra "verdadeiro" me olhando com desdém — aquele que foi casado com ele por três anos, não esses casos de algumas semanas que vocês jovens chamam de relacionamento.
Guto se aproximou de mim, claramente desconfortável:
— Lucas, amor, o Haroldo só passou aqui pra pegar umas coisas que tinham ficado...
— Umas coisas? — Haroldo riu com sarcasmo — Guto, querido, não precisa mentir pro menino. Eu vim aqui porque senti saudades de você, saudades da nossa conversa, da nossa... intimidade.
Senti meu sangue ferver. Deixei as sacolas do mercado na mesa de centro com mais força do que necessário, o barulho ecoando pela sala.
— Intimidade? — repeti, minha voz saindo mais baixa e perigosa do que eu pretendia — que tipo de intimidade você tá falando, Haroldo?
— Ah, gatinho — ele disse caminhando na minha direção com passos calculados — você realmente acha que conhece o Guto? Você acha que essas poucas semanas de relacionamento te dão algum direito sobre ele? — parou bem na minha frente, tão perto que eu podia sentir seu perfume caro — eu conheço cada centímetro do corpo dele, cada gemido, cada preferência. Eu sei exatamente como fazer ele gemer do jeito que ele gosta.
— Haroldo, para! — Guto interveio, mas sua voz saiu fraca, sem autoridade.
— Para nada, Guto — Haroldo continuou, não tirando os olhos dos meus — o menino precisa saber com quem tá se metendo. Precisa saber que você sempre volta pra mim, não é verdade? Sempre que a coisa aperta, sempre que você precisa de um homem de verdade, você me liga.
— É isso mesmo, Guto? — perguntei, minha voz saindo mais cortante do que uma navalha — você ligou pra ele?
Guto abaixou a cabeça, e isso foi toda a resposta que eu precisava. A traição queimou no meu peito como ácido.
— Não liga, não, gatinho — Haroldo continuou com aquele sorriso sádico — ele me mandou mensagem. Uma mensagem bem... carinhosa, devo dizer. Falando como estava com saudades, como nossa conversa fazia falta pra ele.
— Guto, isso é verdade? — perguntei diretamente, dando a ele uma chance de se explicar, de negar, de fazer alguma coisa.
— Lucas, não é bem assim... — ele começou, mas eu levantei a mão interrompendo.
— Não é bem assim ou é exatamente assim? — minha voz estava gélida agora — responde sim ou não: você mandou mensagem pra ele?
O silêncio de Guto foi mais alto que qualquer grito.
— Que lindo! — Haroldo bateu palmas devagar, como se estivesse assistindo a uma peça teatral — o garotinho descobrindo que não é tão especial quanto pensava. Guto, querido, conta pra ele sobre nossa conversa de hoje. Conta como você disse que sente falta da maturidade que eu te oferecia.
Senti algo dentro de mim se quebrar. Não era só raiva, era decepção, era humilhação, era a sensação de ter sido feito de idiota.
— Sabe de uma coisa, Haroldo? — disse, minha voz saindo perigosamente calma — você tem razão. Você conhece o Guto há mais tempo, vocês têm história, vocês têm... intimidade — cuspi a palavra como se fosse veneno — então aproveita. Ele é seu.
— Lucas, não! — Guto finalmente reagiu, tentando me segurar pelo braço — não é isso! Eu não quero ele, eu quero você!
— Quer? — ri sem humor — engraçado jeito de mostrar isso, mandando mensagem carinhosa pro ex falando como sente falta dele.
— Que drama todo é esse? — Haroldo interveio novamente — Lucas, você é muito novinho pra entender, mas relacionamentos adultos são complexos. Às vezes a gente precisa conversar com pessoas do nosso passado, relembrar bons momentos...
— Cala a boca! — explodi finalmente — você não fala comigo, não fala sobre relacionamentos adultos, não fala NADA! Você é um cara de 50 anos que não consegue superar um término e fica perseguindo o ex! Isso não é maduro, é patético!
O sorriso de Haroldo vacilou pela primeira vez desde que cheguei.
— Cuidado com as palavras, garotinho...
— Ou o quê? — me aproximei dele, toda minha raiva finalmente encontrando um alvo — você vai fazer o quê? Me humilhar de novo? Me ameaçar? Cara, você é ridículo. Um homem da sua idade brigando comigo por causa do Guto? Patético não define.
— Lucas, para, por favor! — Guto tentou intervir, mas eu estava além do ponto de retorno.
— E você, Guto — me virei pra ele, toda minha decepção transparecendo na voz — você é pior ainda. Pelo menos o Haroldo assume que quer você de volta. Você fica aí no meio termo, me iludindo, fazendo joguinho, mantendo ele por perto caso eu não dê certo. Vocês merecem um ao outro mesmo.
Peguei as sacolas que tinha trazido do mercado.
— O vinho e a tábua de frios eram pra gente ter uma noite romântica — disse jogando as sacolas pros pés do Guto — mas acho que vocês vão aproveitar melhor do que eu. Afinal, vocês têm tanta... intimidade.
— Lucas, não vai embora assim! — Guto tentou me segurar, mas eu me desviei.
— Não me toca — disse friamente — e não me liga. Não me manda mensagem. Não me procura. Acabou.
— Que pena, gatinho — Haroldo disse voltando a sentar no sofá como se nada tivesse acontecido — mas não se preocupe, o Guto vai ficar bem cuidado. Eu sei exatamente do que ele precisa.
Saí daquela cobertura com a sensação de que tinha acabado de escapar de uma armadilha. Não sabia se estava mais bravo com Haroldo por ser um manipulador, com Guto por ser um covarde, ou comigo mesmo por ter acreditado que aquilo poderia dar certo.
Mas uma coisa eu sabia: não ia dar o braço a torcer. Não ia correr atrás, não ia implorar, não ia aceitar migalhas.
Pela primeira vez em muito tempo, eu estava escolhendo minha dignidade em vez do conforto de ter alguém.
E estranhamente, isso me fazia sentir mais forte do que nunca.