Victor encarava a paisagem pela janela do carro, mas não via nada. As últimas palavras de Valentim ecoavam como marteladas na sua mente: "Tire a Dona Joana dessa delegacia agora ou esqueça que eu sou seu filho."
Cada repetição parecia um prego atravessando seu crânio. Nos últimos dias, Victor vivera uma montanha-russa de emoções: primeiro, o sumiço do filho; depois, as investigações que indicavam perigo; e, por fim, o alívio de saber que Valentim estava vivo.
Ele sabia que não ganharia o título de melhor pai do ano, mas também sabia que amava aquele garoto desde o instante em que o segurou pela primeira vez. Aqueles olhinhos castanhos... a carinha de joelho... Ali, Victor jurou amar e proteger o filho, mesmo que nem sempre soubesse demonstrar.
— Senhor, chegamos. — Informou o motorista, tirando-o de seus pensamentos.
— Perfeito. Eu já volto, Rafael. — Avisou Victor, ajustando o paletó antes de descer.
A fachada da delegacia era fria e impessoal, mas Victor entrou com passos firmes, tentando esconder o turbilhão que sentia por dentro. O investigador Mauro, responsável pelo caso de Valentim, já o aguardava junto de um advogado.
Entraram numa sala pequena, de paredes amareladas, onde Victor explicou tudo: como Valentim afirmou que Joana o salvou de passar a noite ao relento, como aquela mulher não merecia estar atrás das grades. Mauro ouvia com atenção, o advogado organizava documentos, e Victor assinou uma pilha de papéis para acelerar o processo.
Minutos depois, foi conduzido para a sala de espera. O relógio parecia não se mover até que, finalmente, Joana surgiu. Estava pálida, os olhos fundos, e o corpo denunciava o desgaste de horas dentro de uma cela.
— Dona Joana, eu sou Victor Almeida Cardoso e...
— Fique longe de mim. — Cortou ela, passando direto.
— Dona Joana, por favor, eu posso explicar.
— Explicar o quê? Que mandaram prender uma mulher pobre que só tentou ajudar o seu filho? — A voz dela tremia, não de medo, mas de indignação.
— Escute, por favor... nós não sabíamos em quais circunstâncias tinha acontecido o sumiço do Valentim. — Tentou argumentar Victor, mas Joana estava ferida demais para ouvir.
— Eu só quero esquecer toda essa história. — Disse ela, virando-lhe as costas.
— Por favor, eu posso lhe recompensar.
— Eu não quero saber do seu dinheiro. Isso é o de menos.
Victor respirou fundo, procurando uma brecha para que ela não fosse embora.
— Mas a senhora tem um filho, não tem? Por favor, só me escute. Podemos conversar?
Contrariada, Joana acabou cedendo. Foram até um café próximo — elegante demais para o gosto dela. Joana, desconfortável com a roupa simples, tentou recusar a entrada, mas Victor a tranquilizou. Sentaram, e ele insistiu para que ela pedisse o que quisesse. Joana não se fez de rogada: pediu café, suco, sanduíches, bolo e tudo que seus olhos cobiçaram.
Antes de iniciar qualquer conversa, Victor falou.
— Dona Joana, eu lhe peço perdão. Se dependesse de mim, nada disso teria acontecido. Eu prometo que vou encontrar um jeito de reparar.
Joana o olhou com atenção pela primeira vez. A raiva ainda estava lá, mas misturada com certa curiosidade.
— Sabe, seu Victor, o Valentim é um jovem muito sensível. Ele pode não parecer, mas é.
Victor respirou fundo, sentindo o peso da verdade naquelas palavras.
— Eu demorei pra perceber isso, Dona Joana. Mas agora eu sei. — E, de repente, a muralha que ele tentava sustentar ruiu. Victor desabou ali mesmo, na frente daquela mulher estranha.
Joana, surpresa, deixou o silêncio falar por alguns segundos antes de responder.
— Às vezes faz bem colocar pra fora. Sabe o que vocês dois precisam? Um momento de pai e filho. Não sei... vocês são ricos, façam uma viagem, sei lá. O Valentim o ama, mas ele quer ser visto como ele realmente é.
As palavras ficaram no ar, tão simples e tão pesadas quanto as de Valentim horas antes. Victor enxugou as lágrimas discretamente, mas já não era o mesmo homem que entrara naquela delegacia.
***
Valentim acordou sobressaltado, o peito arfando como se tivesse corrido quilômetros. O pesadelo ainda pulsava em sua mente: estava sendo atacado novamente pelos bandidos, revivendo cada instante de medo, mas, dessa vez, quando o primeiro soco estava prestes a atingir seu rosto, Noah surgia, como um escudo humano, para protegê-lo.
Os olhos de Valentim se abriram com dificuldade, ainda pesados pela confusão do sonho. Ao virar a cabeça, encontrou Noah sentado na beira da cama, com o rosto cansado, os olhos marejados. Ele não disse uma palavra — apenas se inclinou e o abraçou com força. Valentim, ainda trêmulo, correspondeu, sentindo o peito aquecer com aquele gesto silencioso.
— Mesmo se o meu pai proibisse, eu nunca te deixaria, fedelho. — Murmurou Valentim, forçando um sorriso para aliviar o clima.
— Isso não é hora de brincar. — Retrucou Noah, com o rosto colado ao pescoço do namorado, a voz embargada. — Nunca mais some assim, idoso. — Pediu, chorando. — O que fizeram com o teu rosto? Eles te machucaram?
— Eu estou bem, Noah. — Respondeu, acariciando-lhe o cabelo. — Foi só um susto, mas tá tudo bem agora.
— Idiota... — Noah fungou, apertando ainda mais o abraço. — Me deu o maior susto, quase não dormi.
— Agora eu sei como sou amado. — Valentim tentou brincar novamente, arrancando um riso breve do namorado no meio das lágrimas.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, a porta do quarto se abriu devagar.
— Filho? — A voz suave de Frida invadiu o ambiente. No susto, Noah tentou se afastar de Valentim, mas o garoto o segurou, mantendo um semiabraço firme. A mãe reparou no gesto e apenas sorriu discretamente, sem comentar nada. — Você tem visita.
Karla entrou apressada, visivelmente emocionada. Se aproximou de Valentim e o abraçou com força.
— Eu estava tão preocupada! — Disse, com a voz trêmula. — Eu e o Noah não descansamos... começamos nossa própria investigação pra tentar te encontrar.
— Amor, eu quero respirar. — Brincou Noah, ainda espremido entre os braços de Valentim, arrancando uma risada rápida de todos.
Os três passaram horas conversando. Noah e Karla contaram as últimas fofocas da escola, falaram sobre as provas e sobre tudo o que tinham perdido nos dias de sumiço. Valentim logo se arrependeu de ter voltado — tinha esquecido completamente da semana de provas, e já podia imaginar os professores pegando pesado para compensar sua ausência.
De repente, a porta se abriu mais uma vez. Victor entrou, trazendo uma surpresa: Dona Joana e João Paulo.
— Pessoal! — Valentim se iluminou ao vê-los, se levantando da cama com esforço para abraçá-los. Joana o apertou contra o peito como uma mãe faria com um filho perdido; João Paulo, mais contido, cumprimentou com um aceno discreto, mas sincero.
— Esses foram os anjos que me salvaram. — Explicou Valentim, sorrindo. — Dona Joana, João Paulo... eu nunca vou esquecer isso.
Victor pigarreou, olhando para todos no quarto. O clima ficou silencioso, quase solene.
— Aproveitando que todos vocês estão aqui. — Começou ele, respirando fundo. — Eu quero pedir perdão a cada um. Noah, Karla, Dona Joana, João Paulo, Frida... e você, meu filho. Eu sei que ainda tenho muito a aprender, que talvez eu erre de novo. Mas tudo o que faço é porque eu te amo, Valentim. Você é o meu maior orgulho. — Declarou Victor, pegando a mão do garoto e o puxando para um abraço apertado.
Valentim tentou falar, mas as lágrimas o traíram.
— Pai... — A voz falhou. — Eu te amo.
— Também te amo, meu filho. — Respondeu Victor, com a mesma emoção estampada no rosto.
O quarto se encheu de um silêncio doce, carregado de reconciliação. Pela primeira vez em dias, todos sentiram que as coisas estavam finalmente voltando para o lugar certo.
***
Valentim finalmente voltou à Escola Discere depois de dois dias internado no hospital. O corpo ainda guardava lembranças do susto, mas a mente já estava focada na próxima batalha: uma verdadeira maratona de provas. No Discere, a educação não era brincadeira — cada professor parecia um guardião do conhecimento, pronto para cobrar até a última vírgula do conteúdo.
Nos corredores, Valentim era tratado como uma pequena celebridade. Alunos paravam para cumprimentá-lo, professores perguntavam se estava bem e, para coroar, ele ainda participou do podcast da escola, contando com humor a experiência no hospital.
Sabe quem não achou tanta graça? Noah. Ele tentava manter a expressão relaxada, mas por dentro sentia um incômodo — especialmente quando via Valentim conversando com João Paulo, o filho de Dona Joana.
Valentim percebeu. E, como bom provocador, não deixou passar:
— Ei, Noah. — Cantarolou, se aproximando do namorado com um sorriso malicioso. — Isso tudo é ciúmes?
— Ciúmes? Eu? — Noah apontou para o próprio peito, fingindo surpresa com uma cara exageradamente engraçada. — Não é ciúmes, tá? É... proteção de patrimônio.
— Eu sou o seu patrimônio? — Valentim ergueu a sobrancelha, se achando a última bolacha do pacote. — Eu não assinei nada.
Noah não respondeu com palavras. Puxou o braço do namorado e deu uma mordida de leve, mas firme o suficiente para deixar a marca dos dentes.
— Agora é meu. — Disse, com um sorriso travesso.
— Casais apaixonados, eca. — Karla interrompeu, largando a mochila na mesa e sentando-se com eles. — Vamos estudar. Hoje é o último dia de prova, e eu quero as minhas férias de verão. Inclusive... já sabem para onde vão?
— Eu vou para a fazenda dos meus pais, no interior de São Paulo. — Contou Noah, se ajeitando na cadeira.
— E eu vou conhecer a fazenda dos meus sogros. Eles me convidaram. — Valentim estufou o peito, como se recebesse uma medalha.
— Eu vou para o Nordeste com o meu amor. — contou Karla, sorrindo. — E acho justo a gente combinar uma viagem de casal. Ano que vem, Valentim completa dezoito e já vai poder dirigir. Vamos fazer uma road trip!
— Eu topo. — Respondeu Noah, animado. — Já que o meu amor vai para a faculdade e eu vou ficar preso no Discere...
— Er... — Valentim soltou um sorriso amarelo, sentindo o clima mudar de repente.
***
A manhã do último dia letivo chegou com céu nublado e o cheiro de cadernos velhos no ar. Os corredores do Discere estavam silenciosos, como se até as paredes temessem o veredito que viria nas listas de aprovação afixadas na entrada do auditório.
Valentim passou direto pelos colegas que o cumprimentavam com entusiasmo. A vitória na Gincana dos Quatro Elementos ainda ecoava como um feito memorável — mas naquele momento, era apenas um som distante no meio do turbilhão que o dominava.
Parou diante da lista com os nomes aprovados do 3º ano.
Passou o dedo pelas colunas, letra por letra, em ordem alfabética.
***
Almeida Cardoso, Valentim – Reprovado
***
O chão pareceu abrir sob seus pés. Ele sabia que tinha perdido algumas provas. Que tinha se esforçado tarde demais. Que tinha se distraído com sentimentos que nem entendia. Mas ver aquilo por escrito era diferente. Era definitivo.
Um aperto no peito. Uma vontade de desaparecer.
— Então a gente vai ser colegas de novo, hein?
A voz atrás dele soou leve, quase divertida. Valentim se virou. Noah estava ali, apoiado na parede, de mochila nas costas e um sorriso meio irônico.
— Não veio pra caçoar?
— Não. Vim pra dizer que, se isso for o universo me dando um presente, talvez ele tenha finalmente feito alguma coisa certa. — Respondeu Noah.
— Você é mesmo insuportável. — Valentim bufou, tentando segurar o riso.
— E você é um velho que vai repetir de ano. Combinação perfeita.
Os dois se olharam. Por alguns segundos, nenhum dos dois riu. Nenhum dos dois desviou os olhos. Até que Valentim quebrou o silêncio:
— Meu pai vai surtar. Ele já tava surtando antes... Agora vai ser o fim.
— Teu pai te ama, Valentim. Puxa, você passou por diversas complicações este ano. Olha, eu sei que estamos levando as coisas na leveza, mas não se preocupa com a reprovação, viu. — Comentou Noah, pegando no rosto de Valentim e o acariciando.
— Eu sei. Só não queria decepiconar o meu pai...
— Ei, o seu pai sabe o quanto você se esforçou para tentar alcançar a média. No próximo ano, você pode mostrar o seu melhor. — Valentim agradeceu com um beijo rápido.
— Falando em pais, como está o seu? — Quis saber Valentim.
— O meu também não tá muito bem — Disse Noah, e o brilho nos olhos dele se apagou um pouco. — As acusações foram desmentidas, mas ainda não devolveram o cargo. E mesmo com a investigação provando que é armação, os jornais não ligam. Já até inventaram que ele me colocou aqui pra "espionar elites". Dá pra acreditar?
Valentim assentiu devagar.
— Eu acreditaria em você, mesmo que o mundo todo dissesse o contrário.
Noah baixou o olhar por um momento.
— E você? Vai ficar bem?
Valentim encolheu os ombros.
— Vou ter que repetir. Ver meus amigos irem embora. Ouvir sermão todo dia. Mas vou ter você por perto. Isso pode valer a pena.
Noah arqueou a sobrancelha.
— Então admite que eu sou importante?
— Não exagera, fedelho.
Eles riram. E naquele riso, havia mais do que provocação. Havia um pacto silencioso de dois garotos que, mesmo entre os escombros de um ano difícil, tinham encontrado algo que valia a pena reconstruir.
Talvez a vida não estivesse seguindo o roteiro que Valentim imaginara, mas pela primeira vez, ele se sentia parte da própria história.
***
Sabe quem não tinha controle da própria história? Raphael Salles Trajano. A demora em reassumir seu cargo no Senado o consumia dia após dia. Cansado de esperar, ele abriu uma live para expor todo o caso à sociedade — afinal, já estavam o julgando por algo que não cometera.
Enquanto isso, no Instituto Discere, as aulas haviam terminado. O prédio estava silencioso, exceto por alguns alunos que circulavam pelos corredores. Noah, por exemplo, voltava apenas para os treinos esportivos de verão, uma tradição para quem levava as atividades extracurriculares a sério. Mas agora, os olhares que o acompanhavam carregavam um peso diferente.
Noticiário após noticiário, o nome de Raphael era citado como envolvido em um escândalo de corrupção que se tornou manchete nacional. A suposta criação de uma emenda que beneficiaria empresas fantasmas manchava, sem provas concretas, a reputação de um dos senadores mais populares do país.
Para Noah, aquilo doía em silêncio.
— Ei. — Soltou Valentim, se encostando na arquibancada da quadra, onde Noah chutava uma bola distraidamente.
Noah nem levantou o olhar. Apesar da relação dos dois ter evoluído, ele ainda se sentia desconfortável quando precisava de apoio.
— Não precisa vir me consolar de novo. Já tô vacinado.
Valentim se sentou no banco de concreto ao lado. Ele também não queria ficar em casa, onde o pai ainda engolia a frustração de vê-lo repetir o terceiro ano.
— Não vim pra consolar. Vim porque gosto de você. Mesmo quando você finge que não precisa de ninguém.
Noah chutou a bola com mais força, a fazendo bater na trave com estrondo.
— Meu pai está sendo massacrado por algo que ele não fez. Estão vasculhando minha vida como se eu fosse o culpado. Até minha mãe tá escondida. E você quer falar sobre sentimentos agora?
— Quero falar sobre você. — Respondeu Valentim, firme. — Porque eu vejo o que tá acontecendo e não aguento fingir que tá tudo normal.
Noah respirou fundo. Finalmente, ergueu os olhos para Valentim.
— Sabe o que é pior? — Perguntou Noah, sem esperar uma resposta de Valentim. — É que mesmo sabendo que ele é inocente... eu tenho medo. Medo de que inventem mais, de que piorem tudo. De que as pessoas continuem me olhando como se eu fosse... sujo.
Valentim se aproximou, a expressão serena.
— Você não é o seu pai. E mesmo que fosse, ainda assim eu escolheria estar aqui.
Noah hesitou. Havia uma muralha ao redor dele, construída com anos de controle emocional, autocobrança e medo de julgamento. Mas Valentim era uma força que escalava essa muralha sem pedir licença.
— Você devia me odiar. — Murmurou Noah. — Fui babaca com você desde o primeiro dia.
— Fui babaca de volta. — Afirmou Valentim, sorrindo. — E olha só onde a gente chegou. Num treino de verão, falando de amor.
Noah piscou.
— A gente tá falando de amor?
Valentim corou.
— Talvez. Talvez eu ainda não saiba muito bem como falar sobre isso. Mas eu sei que, quando você não tá por perto... é como se o mundo ficasse em silêncio.
Noah engoliu em seco.
— Eu... também sinto isso.
Foi o bastante.
Ali, na arquibancada da escola que tantas vezes fora palco de competição, intriga e orgulho, os dois se aproximaram até que suas testas se encostassem. O beijo não foi urgente. Foi um encontro demorado, tímido, mas real — como o início de algo que não precisava mais ser escondido.
Mesmo que tudo ao redor desmoronasse, por um instante, tudo fazia sentido.