✧ O Fragmento Astral da Água ✧
(Lucas)
A passagem que a explosão dos espelhos revelou era uma garganta de pedra, claustrofóbica e sufocante. O ar pesava nos pulmões, um miasma de terra úmida, mofo milenar e algo mais… um odor metálico e faminto, como o de um matadouro esquecido. As paredes nuas e irregulares choravam um lodo negro e oleoso que descia em trilhas lentas, refletindo a luz bruxuleante da minha espada como veias doentias.
O túnel se estreitava à frente, uma boca escura que prometia apenas ser engolido. Foi quando o próprio chão estremeceu, um tremor profundo que ressoou em meus ossos. Das sombras mais densas, onde a escuridão parecia sólida, uma figura emergiu, materializando-se como um pesadelo de pedra e carne. Um ogro. Sua estatura colossal, com mais de três metros, bloqueava completamente a passagem. Sua pele, de um cinza coriáceo e rachado como um leito de rio seco, estava coberta de pústulas e cicatrizes. Seu imenso olho, porcino e cheio de uma malícia estúpida, fixou-se em mim. Um rugido gutural rasgou o silêncio, um som borbulhante que carregava o fedor de carne apodrecida e me fez recuar um passo.
Com um esforço que fez seus músculos se contorcerem, ele ergueu uma clava de pedra bruta, do tamanho de um barril pequeno. Naquele instante, a certeza me atingiu com a força de um golpe: não havia para onde correr, apenas através dele.
(Tiago)
A seta de luz, nascida dos cacos dos espelhos, não me libertou, apenas me trocou de cela. Fui cuspido da prisão de vidro para uma selva de silêncio antinatural. A vegetação era um emaranhado de formas alienígenas; troncos retorcidos como corpos em agonia e folhas largas e cerosas que se sobrepunham num dossel impenetrável, filtrando a luz em uma penumbra verde-esmeralda doentia. Mas o silêncio era o verdadeiro monstro. Não havia o zumbido de insetos, o chamado de pássaros ou o farfalhar de vida no sub-bosque. Era um vácuo auditivo, uma ausência tão profunda que gritava perigo. Uma quietude que só existe quando um predador supremo reina, e todo o resto aprendeu a se calar ou morrer.
Sem magia, eu era uma presa fácil para qualquer inimigo. Seja ele humano, animal ou na pior das hipóteses, um demônio. O medo era o meu único companheiro naquele santuário. E então, eu o vi. Não de uma só vez, mas em fragmentos: um vislumbre fugaz de laranja vibrante contra o verde, uma listra de escuridão que se movia com fluidez impossível. Um tigre. Imenso, maior que qualquer cavalo de guerra, com uma musculatura que ondulava sob a pele com poder contido. Suas listras não eram meras marcas; pareciam sombras vivas, se contorcendo e fluindo como tinta em água. E seus olhos… fixos em mim, dois globos de âmbar incandescente que ardiam não com a fome primária de uma fera, mas com a inteligência fria e calculista de um assassino ancestral.
(Lucas)
Quando o ogro avançou, o chão tremendo a cada passo, um interruptor foi acionado nas profundezas da minha mente. O pânico e o medo que me assombraram nos espelhos evaporaram, substituídos por uma calma gélida e letal. Anos de treinamento brutal, a disciplina forjada a ferro e dor pelo meu pai e meus generais, tomaram o controle. Cada músculo, cada osso quebrado e curado, cada gota de suor e sangue derramada no pátio de treinos — tudo convergiu para este momento.
A criatura brandiu a clava num arco descendente que sibilou no ar, um golpe que pulverizaria granito. Eu já não estava lá. Deslizei para a sua direita, meus pés se movendo com uma memória própria, uma dança de aço e músculo. Não havia magia aqui, não havia a fúria caótica que eu tanto temia; apenas a precisão eficiente de um predador. A espada, minha fiel companheira, era agora uma extensão da minha vontade. Um corte rápido e profundo no tendão de Aquiles fez o gigante urrar e se desequilibrar. Quando ele se virou, tentando me esmagar com as mãos nuas, mergulhei sob seu braço levantado, cravando a lâmina no músculo exposto sob a axila. O ogro berrava agora, mais de frustração do que de dor real.
Em seu último e desesperado ataque, ele ignorou a clava e se jogou sobre mim, tentando me transformar em uma pasta de sangue e osso. Rolei por baixo de seu corpo colossal e, usando seu próprio impulso contra ele, ergui-me atrás de suas costas e cravei a lâmina com toda a força na base de seu crânio. Houve um estalido úmido e nojento. O gigante desabou com o baque surdo de uma árvore derrubada, inerte. O silêncio que se seguiu foi pesado, quebrado apenas pela minha respiração ofegante. Foi quase… fácil demais. E essa constatação me trouxe um calafrio que nada tinha a ver com o ambiente.
(Tiago)
O tigre não emitiu som. Ele simplesmente deixou de estar parado e passou a ser um borrão alaranjado de velocidade impossível. O mundo ao redor se desfez em linhas verdes enquanto ele cobria a distância entre nós num piscar de olhos. Instintivamente, ergui as mãos, segurando a adaga para assustá-lo, fingindo ser mais feroz do que ele. Foi um gesto patético, como tentar parar um maremoto com uma teia de aranha. O pânico puro tomou conta. Virei-me e corri, um ato primal de desespero. Eu sabia que era inútil. A trilha era a única rota, mas minhas pernas pareciam se mover em um pesadelo de câmera lenta, presas em um ar espesso como melaço.
Senti um bafo quente e fétido em minha nuca. E então, a dor. Um sol de agonia branca explodiu em meu ombro esquerdo. Garras como adagas de obsidiana afundaram em minha carne, rasgando músculo e tendão com uma facilidade doentia. Ouvi o som úmido e horrível de carne se partindo, seguido por um estalo seco e nauseante de osso se quebrando. A força do impacto me arremessou violentamente ao chão. Meu rosto bateu na terra úmida, e o mundo girou em uma espiral de dor e náusea. O gosto de sangue e terra encheu minha boca. A dor era uma maré vermelha e quente, afogando meus sentidos, ameaçando me arrastar para a inconsciência.
Gemi, rolei de lado, tentando me apoiar para levantar. E foi então que eu vi. Meu braço esquerdo. Ele não estava mais conectado a mim. Jazia a alguns metros de distância, uma coisa pálida e inerte sobre o tapete de folhas, parecendo um objeto estranho, grotesco. O tigre estava sobre ele, sacudindo-o brutalmente, como um cão com um brinquedo. A visão do toco ensanguentado em meu ombro, de onde o sangue jorrava em pulsos quentes e grossos, sincronizados com meu coração em pânico, fez meu estômago se revirar em uma convulsão de bile. O choque inicial estava se dissipando, dando lugar a um frio profundo que começava a se espalhar a partir do meu peito, um prenúncio da morte. Eu ia sangrar até o fim, ali, naquele chão sujo.
(Lucas)
No silêncio pesado que se seguiu à morte do ogro, um som rasgou o ar. Um grito. Não um grito de guerra ou de raiva, mas um uivo de agonia pura e visceral. Um som que eu conhecia melhor que as batidas do meu próprio coração.
“Tiago!”
O nome explodiu dos meus lábios como uma oração profana. O cansaço, a dor nos meus próprios músculos, a frieza do assassino, tudo se desfez. Saltei sobre o cadáver do ogro sem um segundo olhar e corri na direção do som. O túnel se abriu na mesma selva doentia, e a cena que encontrei congelou o sangue em minhas veias. Tiago. Caído no chão, encolhido em uma poça crescente de seu próprio sangue, a mão direita pressionando inutilmente o que restava de seu ombro esquerdo. E sobre ele, o tigre monstruoso, lambendo o sangue do focinho, agachando-se, preparando o bote final para arrancar a cabeça de meu amado.
(Lucas)
A fúria. Aquele monstro que eu mantive acorrentado nos espelhos, a força caótica que eu temia me consumir, explodiu de mim com a força de um vulcão em erupção. Não foi um pensamento. Não foi uma escolha. Foi uma reação tão fundamental quanto respirar. Um rugido de pura fúria animal, que rivalizava com o da própria fera, rasgou minha garganta.
O tigre, pego de surpresa pela nova ameaça, virou sua cabeça massiva em minha direção, os olhos de âmbar se estreitando. Não lhe dei tempo. Lancei-me sobre ele não como um homem, mas como uma força da natureza. Minhas mãos nuas buscaram seu pescoço, ignorando as garras que rasgavam minhas roupas e minha pele, os dentes que tentavam encontrar minha jugular. A dor era irrelevante; o medo era combustível. Minha dor, meu terror pela vida de Tiago, tudo se converteu em uma força sobrenatural.
Agarrando sua mandíbula inferior com uma mão e a base de seu crânio com a outra, eu torci. Com cada fibra do meu ser, com toda a força nascida do desespero e do amor, eu girei. Houve um estalo medonho, um som úmido e alto de vértebras se partindo e tendões se rompendo. O corpo imenso da fera ficou mole sob mim, um peso morto. Sua cabeça rolou para o lado em um ângulo grotesco, e a luz inteligente em seus olhos de âmbar finalmente se apagou, tornando-se vidro opaco.
(Tiago)
Através do véu de dor que escurecia minha visão, a figura de Lucas era uma silhueta de fúria vingativa, destruindo a criatura que me mutilara. Ele estava coberto de sangue — o meu, o da fera, talvez o seu próprio — um avatar de violência e proteção. Seus olhos queimavam com uma intensidade que, por um instante, me assustou mais do que o tigre. Ele correu até mim, o corpo tremendo de adrenalina e exaustão, e caiu de joelhos ao meu lado.
“Tiago! Fica comigo! Olha pra mim, abre os olhos!”, sua voz era um trovão de pânico e desespero, uma rachadura em sua fachada de força. Tentei formar palavras, mas apenas um sussurro borbulhante escapou. “Lucas… está… frio…”
A escuridão nas bordas da minha visão se fechava como um irís.
(Lucas)
“Não, não, não! Você não vai morrer! Não ouse morrer!”, gritei, mais para os deuses cruéis do que para ele.
Rasguei um pedaço da minha própria túnica e pressionei contra o ferimento, mas era como tentar conter o mar com as mãos. O tecido ficou encharcado em segundos. Ele estava se esvaindo. Em um ato de desespero cego, passei meu braço por baixo de suas pernas e o ergui, jogando-o sobre minhas costas. Ele era um peso-morto, sua cabeça pendendo sobre meu ombro, seu fôlego agora um sopro fraco e irregular contra meu pescoço.
Comecei a andar, depois a trotar, tropeçando pela trilha sem saber para onde ia, movido apenas pela necessidade primordial de encontrar ajuda, qualquer coisa, um milagre.
“Aguente firme, Tiago. Por favor, aguente firme”, eu repetia como um mantra, minha voz quebrando. Foi então que vi, entre as árvores adiante, um brilho. Uma luz azulada e suave, pulsando gentilmente de uma abertura na rocha. Esperança. Era uma chama frágil, mas era tudo que eu tinha.
(Tiago)
A consciência era uma série de devaneios dolorosos e desconexos. A sensação de ser carregado, o ritmo ofegante dos passos de Lucas, sua voz distante implorando para que eu resistisse. E então, luz. Uma luz fria e calma que parecia me puxar para fora da escuridão. Senti meu corpo ser deitado suavemente sobre um chão de pedra lisa e fria. Pisquei, e a visão se focou. Estávamos em uma pequena gruta, cujas paredes eram feitas de cristais que pulsavam com aquela luz azul serena, enchendo o ar com um zumbido baixo e harmonioso.
No centro da câmara, flutuando silenciosamente sobre um pedestal de cristal, estava uma esfera de água perfeitamente imóvel e límpida. Dentro dela, galáxias em miniatura giravam em uma dança lenta e hipnótica. O “Fragmento Astral da Água”.
Com suas últimas forças, Lucas me arrastou para mais perto, posicionando meu ombro mutilado a centímetros do campo de energia que emanava da esfera. A água reagiu. Ela se esticou magicamente, formando um tentáculo vivo e translúcido que envolveu meu ferimento. Não senti dor, apenas um frio intenso e purificador que pareceu extinguir o fogo da minha agonia. Foi seguido por uma sensação de plenitude, como um vazio existencial sendo preenchido.
Diante de nossos olhos atônitos, fios de luz azul etérea começaram a tecer uma nova realidade onde antes havia apenas um vazio sangrento. Músculos, tendões e ossos foram fiados a partir da luz. A pele se formou sobre a nova estrutura, translúcida por um instante, revelando a maravilha por baixo, antes de ganhar cor e solidez. Flexionei meus dedos, incrédulo. O movimento foi perfeito. Lucas me encarava, o queixo caído, o rosto uma máscara de exaustão e assombro.
“Seu braço…”, ele sussurrou, a voz rouca.
“Ele… voltou”, respondi, a voz ainda fraca, mas carregada com o peso esmagador de um milagre.
Continua…