O Carnaval havia passado como uma onda colorida e barulhenta, e a rotina da escola voltava com a força de um rio caudaloso. Desta vez, Valentim parecia outro. Com as muletas encostadas ao lado, os cadernos sempre em ordem e a cabeça mais leve, se mostrava preparado para lidar com a pressão de provas, trabalhos e apresentações. Já não travava ao falar diante da turma, tampouco deixava temas incompletos ou malfeitos. Havia em sua postura um novo brilho — um equilíbrio que chamou a atenção de professores e colegas.
Parte dessa melhora se devia à terapia e também aos crochês que ele fazia pelos cantos do colégio. Até a professora Leda — fundamental nesse processo de recuperação — ganhou um presente: um chapéu horroroso, que usava apenas para agradar Valentim pelo esforço e dedicação.
O boletim do bimestre, impecável, encheu Victor e Frida de orgulho. O presente não tardou: um carro novinho, ainda com cheiro de fábrica. O próximo passo, porém, exigia ainda mais responsabilidade. Valentim havia passado no teste psicotécnico e agora encarava o desafio da autoescola, se preparando para a prova teórica no Detran-SP.
Valentim estava sentado à mesa do quarto, a apostila de Legislação de Trânsito aberta diante dele, a concentração refletida no olhar. O barulho da porta se abrindo o fez levantar a cabeça, e logo viu Noah entrando com um sorriso divertido.
— Tão lindo o meu namorado concentrado com a Legislação de Trânsito. — brincou, se apoiando na porta. — Por isso não atendeu as minhas vinte ligações.
Valentim suspirou, fechando a apostila.
— Você conhece a regra, amor. Só estudo com o celular desligado. — disse, levantando para abraçar o namorado. — A mãe que abriu para você?
— Sim, ela disse que vai ao mercado. — respondeu Noah, retribuindo o abraço.
— Entendi. — murmurou Valentim, mas a lembrança da conversa com o pai lhe atravessou a mente como uma sombra. — Amor, a gente precisa conversar.
— O assunto é sério? — Perguntou Noah, o olhando com atenção.
— Não, não é não. É que...
Antes que pudesse continuar, a porta se abriu novamente. Frida surgiu sorridente.
— Com licença, filho. Eu vou ao mercado agora. Vocês querem alguma coisa? Estou pensando em fazer tortilhas hoje à noite. Fica para o jantar, Noah?
— Claro, Frida. Inclusive, eu sei fazer um creme de abacate que é de lamber os beiços. — disse Noah animado.
— Então, vai ter que fazer hoje. — Frida riu. — Vamos ao mercado? Aproveitamos para comprar os ingredientes desse creme.
— Ah, mãe... hoje é domingo. — reclamou Valentim, com um leve emburramento.
— Vamos, amor. — Noah, no entanto, estava entusiasmado. — Eu amo fazer compras. Fora que a minha mãe não é muito de cozinhar, então eu quase não vou ao mercado.
Valentim suspirou, mas o olhar brilhante do namorado o convenceu.
— Eu vou pegar as chaves do carro. Se preparem. — anunciou Frida, saindo apressada.
O silêncio voltou por um instante, e Noah se virou para Valentim.
— Sobre o que você estava falando, bebê?
Valentim forçou um sorriso, guardando o peso do segredo só para si.
— Nada de importante, amor. Me ajuda a escolher uma roupa?
— Claro. — respondeu Noah, sem suspeitar da tempestade que se formava por trás do sorriso do namorado.
***
Março trouxe boas novas, mas também um calor abrasador que fazia o ar parecer pesado. Foi nesse clima que chegou a segunda etapa da Gincana dos Quatro Elementos: o desafio do fogo. No campo central do Instituto Discere, as equipes receberam materiais limitados e instruções básicas de sobrevivência. O objetivo era simples — mas traiçoeiro: acender e manter uma chama viva pelo maior tempo possível.
Valentim acompanhava tudo de uma cadeira dobrável, o pé ainda imobilizado, usando um ventilador portátil para diminuir o calor. Seus olhos, porém, não desgrudavam de Gabriel. O rapaz circulava em volta das equipes como um gavião vigilante, fiscalizando cada movimento com uma seriedade incomum. Oficialmente, era sua função como parte do grêmio estudantil; na prática, Valentim percebia que havia algo de pessoal em sua atenção.
Noah, por sua vez, estava concentrado na atividade, usando gravetos e pequenas fibras secas. Mas, em um raro momento de vulnerabilidade, durante a festa de Karla, ele abriu o coração a Valentim e aos colegas, confessando sua história com Gabriel. O silêncio que se seguiu foi carregado de olhares, especialmente o de Valentim, que tentava disfarçar a inquietação que crescia dentro de si.
Para reforçar a segurança, uma equipe do Corpo de Bombeiros estava presente. Eles deram uma breve palestra, lembrando que o fogo, apesar de essencial, podia ser fatal quando fora de controle.
Foi então que o acidente aconteceu. A equipe do segundo ano, aflita com o tempo, decidiu improvisar — despejaram álcool sobre o pequeno fogo que tentavam manter. A labareda explodiu num estalo, crescendo de forma assustadora. Narciso, que estava próximo, recuou com um grito, mas não a tempo. João Paulo, instintivamente, se jogou na frente dele, erguendo o braço como um escudo.
O calor foi imediato, violento. João Paulo sentiu a pele arder e o cheiro de queimado subir, mas manteve Narciso protegido. A chama quase os envolveu, e por um segundo, tudo pareceu fora de controle.
Os bombeiros reagiram rápido, abafando o fogo com mantas e extintores. O campo, antes cheio de gritos de torcida, mergulhou num silêncio pesado. Narciso, tremendo, segurava o braço de João Paulo, os olhos marejados.
— Você... você se queimou por mim... — murmurou, quase sem acreditar.
João Paulo forçou um sorriso, apesar da dor.
— Melhor eu do que você. Esse rostinho vale milhões, não é? — João Paulo acabou desmaiando.
O clima da gincana mudou. A chama do desafio ainda ardia nas fogueiras controladas, mas, para muitos, o fogo havia revelado algo além da competição: a frágil linha entre risco e coragem. Valentim, em sua cadeira, observava tudo com o coração acelerado, dividindo sua atenção entre Gabriel — sempre tão duro e impenetrável — e a cena diante de seus olhos, onde João Paulo e Narciso se aproximavam por um gesto de sacrifício.
A confusão no campo ecoava pelos corredores do Instituto Discere. A gincana, que havia começado com tanto entusiasmo, agora estava suspensa por tempo indeterminado. A direção não podia correr riscos — todos os produtos haviam sido testados antes, inclusive o álcool, mas nada explicava a chama descontrolada que quase provocara um acidente maior.
João Paulo fora levado às pressas para a enfermaria. A queda de pressão o deixara pálido, mas logo se estabilizou. O braço, envolto por uma faixa, latejava em dor. Por sorte, a queimadura não exigiria cuidados hospitalares. Mesmo assim, a imagem dele sendo socorrido ainda pairava na mente de todos os presentes.
Quando a equipe técnica revisou os materiais, a verdade perturbadora veio à tona: o líquido usado pelo segundo ano havia sido adulterado. Não era álcool, mas diesel. Um combustível mais denso, de combustão lenta, mas muito mais potente. Alguém havia sabotado a prova.
A direção imediatamente acionou o grêmio estudantil e estabeleceu um protocolo de segurança. Todas as mochilas seriam vistoriadas. A decisão pareceu absurda a princípio, mas ninguém se opôs de verdade. Afinal, era a chance de descobrir o responsável.
Três funcionários começaram a abrir uma por uma, sob o olhar atento e desconfiado dos alunos. O ar estava pesado, cada gesto acompanhado por sussurros e olhares rápidos.
Foi quando uma funcionária retirou a mochila de Noah da pilha. Ele observava em silêncio, até que ela abriu o zíper principal, tirou uma nécessaire e, ao alcançar o fundo, seus dedos tocaram um pequeno frasco de vidro. Ao erguê-lo, o cheiro característico não deixou dúvidas: diesel. O mesmo que havia colocado a vida dos colegas em risco.
Noah congelou. Seu coração disparou como se quisesse sair pela boca.
— Isso não é meu. — disse, a voz embargada, olhando em volta como se buscasse apoio imediato.
A professora Leda franziu o cenho, o tom firme mas carregado de preocupação:
— Noah, o que esse frasco está fazendo na sua mochila?
Ela respirou fundo, consciente da gravidade da acusação.
Antes que Noah pudesse responder, Valentim se adiantou, a voz quase cortando o ar:
— Professora, eu garanto que o Noah não fez nada.
Karla se aproximou, apoiando a mão no ombro do amigo:
— Eu também acredito nele, professora. Noah jamais faria isso.
Breno, mais sério que de costume, completou:
— Uma atitude dessas não é do feitio dele.
O burburinho aumentou ao redor, alguns colegas cochichavam, outros apenas observavam em silêncio. A professora Leda ergueu a mão pedindo calma.
— Chega, turma. Vamos investigar essa questão com seriedade. Noah, por favor, venha comigo até a diretoria.
Ele hesitou. O olhar perdido passou por Valentim, como se buscasse uma âncora no meio da tempestade.
— Eu vou... — murmurou.
Mas, antes que desse mais um passo, Valentim se inclinou para frente, já pronto para acompanhá-lo.
— Valentim — a professora interveio, firme, porém com doçura —, eu vou cuidar disso. Você confia em mim, não é?
Apesar da tentativa de tranquilizá-lo, o rosto de Valentim mostrava apenas angústia.
— Professora... — sua voz tremeu — o Noah nunca faria algo assim. Por favor, ajude ele.
Leda assentiu levemente, mas o peso da responsabilidade agora estava todo sobre seus ombros. Enquanto conduzia Noah até a diretoria, o silêncio no pátio parecia gritar mais alto que qualquer acusação.
Na enfermaria, o silêncio era quebrado apenas pelo som distante dos passos no corredor e pelo bip suave do monitor. João Paulo abriu os olhos devagar, sentindo o peso da fraqueza no corpo e a ardência discreta no braço enfaixado. A visão ainda turva foi se ajeitando até encontrar Narciso sentado numa cadeira próxima, a cabeça baixa, os dedos ágeis sobre o celular.
Assim que percebeu o movimento, Narciso levantou o olhar e sorriu de leve, guardando o aparelho no bolso.
— Finalmente acordou. — disse, aliviado.
João Paulo respirou fundo, tentando se localizar.
— O que... o que aconteceu?
Narciso se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.
— Encontraram um frasco de diesel na mochila do Noah.
O coração de João Paulo disparou. Ele se ergueu um pouco na maca, o corpo respondendo com um gemido de dor.
— Isso é impossível. — soltou, levando a mão boa ao braço enfaixado, como se pudesse acalmar a queimadura.
— Loucura, né? — Narciso concordou, forçando um sorriso. — Mas, por enquanto, você precisa focar em melhorar. Afinal, você é o cara que salvou esse rostinho de milhões. — piscou para o amigo, arrancando um revirar de olhos de João Paulo.
A porta se abriu de repente. Gabriel entrou acompanhado de Verônica, ambos com a postura rígida e o crachá do Grêmio Estudantil reluzindo como um brasão.
— Com licença. — disse Gabriel, a voz carregada de falsa polidez.
Sem esperar resposta, se aproximaram da cama. Narciso manteve-se ao lado de João Paulo, atento.
— Precisamos entender exatamente o que aconteceu. — explicou Verônica, cruzando os braços.
Com calma, João Paulo relatou cada passo antes da explosão: o isqueiro, o papel aceso, os gravetos... Depois, mencionou quando Narciso despejou o frasco de álcool no fogo, e a chama subiu numa pequena explosão.
Gabriel suspirou teatralmente.
— Lamentável. Por sorte, a equipe da escola pegou o bandido...
— O Noah não é um bandido. Ele não fez isso. — interrompeu João Paulo com firmeza.
Um sorriso amarelo surgiu nos lábios de Gabriel.
— Claro. Mas assim que você se sentir melhor, precisa ir à direção para abrir uma queixa formal contra o Noah. Faz parte do protocolo.
Narciso estreitou os olhos, a voz carregada de ironia:
— Foram vocês do Grêmio que separaram todos os materiais, não é?
A pergunta os pegou de surpresa. Gabriel e Verônica trocaram um rápido olhar, desconcertados.
— Olhamos todos os materiais da prova, querido. — respondeu Verônica, a voz cortante, enquanto cruzava os braços. — E não havia nenhum diesel. O Noah aproveitou um momento e colocou na garrafa de álcool. Ainda bem que não aconteceu nada com você, né, João Paulo? Já pensou... acontece algo com o bolsista?
— Já deu. — cortou Narciso, a voz mais grossa do que gostaria. — O João Paulo precisa descansar.
Gabriel manteve o sorriso, mas havia veneno no tom:
— A gente entende, Narciso. Mas, se eu fosse vocês, iria até a diretoria. Essas histórias podem chegar longe. Já pensou se a mídia descobre que o grupo de vocês, que tem até um rapaz trans, tentou te explodir? — soltou uma risada discreta. — Essa fofoca iria parar até no programa do Neo Meses. E não quero que aconteça nada com a tua carreira, que já não anda lá essas coisas, hein?
Se virou para João Paulo, com olhar quase triunfante.
— E você, José Pedro... já pensou se o pai do Valentim descobre que o próprio genro tentou te matar? Deus me livre.
O silêncio que se seguiu foi sufocante. Gabriel e Verônica deixaram a enfermaria, a porta se fechando atrás deles com um estalo seco. Narciso e João Paulo trocaram um olhar carregado de inquietação. A ameaça estava clara.
Ainda assim, a decisão entre eles foi silenciosa e firme: não prestariam queixa contra Noah.
***
Na sala de reuniões, o ar parecia mais pesado do que o normal. Noah estava sentado diante da longa mesa de madeira escura, encarando as expressões sérias de quem o observava. O diretor Sérgio Fernandes, homem alto, de cabelo grisalho impecavelmente penteado e terno alinhado, caminhava de um lado para o outro. Sua postura era quase teatral, e ainda que sua voz fosse amigável, carregava um peso velado de ameaça.
— Ninguém está te acusando, Noah — disse ele, medindo as palavras com cuidado. — Mas você entende, não é? Se esse escândalo vaza, a reputação do Instituto Discere vai para o ralo. Talvez... uma carta de desculpas resolvesse tudo.
Noah respirou fundo, a voz embargada pela indignação.
— Mas como eu vou escrever uma carta e me desculpar por algo que eu não fiz?
Ao lado do diretor, a professora Leda e a psicóloga Eunice observavam em silêncio. Seus olhares não eram de julgamento, mas de busca — como se tentassem decifrar, nas expressões de Noah, um vestígio de verdade.
— Diretor, por favor, acredita em mim — insistiu o garoto. — Eu não fiz isso. Alguém colocou aquele frasco na minha mochila.
A porta da sala se abriu, interrompendo o momento. João Paulo entrou com o braço enfaixado, acompanhado de Narciso.
— Com licença, diretor Fernandes — disse João Paulo, firme apesar da palidez. — Eu sou João Paulo, o aluno que se acidentou por causa do diesel. Mas eu tenho certeza que não foi o Noah.
Sérgio arqueou uma sobrancelha, curioso.
— E por que tem tanta certeza?
João Paulo engoliu seco e explicou: seu tênis havia rasgado antes da prova, e Noah o acompanhara até uma das lojas dentro da escola para comprar um novo. Nesse meio tempo, as mochilas de ambos ficaram sozinhas na sala de aula — abertas a qualquer oportunidade.
O diretor se voltou para Noah.
— Isso é verdade?
— Sim, senhor — confirmou o garoto, nervoso. — Eu deixei minha mochila na sala e saí com ele.
Fernandes pediu as imagens das câmeras de segurança. Em silêncio, todos assistiram ao vídeo: Noah e João Paulo entrando juntos na sala, João Paulo visivelmente frustrado pelo tênis rasgado e Noah tentando animá-lo. Em seguida, ambos saíram. Mas, no instante em que ficaram sozinhos, as imagens da sala congelaram, se tornando estáticas. As próximas gravações mostravam apenas os dois andando até a loja e depois indo direto para o jardim, onde ocorreria a prova do fogo.
— Peça para a equipe de TI verificar o que houve com esse vídeo — ordenou o diretor à secretária.
Noah suspirou, cansado. Já eram três horas de interrogatório, tentando provar sua inocência contra um silêncio que pesava mais do que qualquer acusação explícita. Fernandes, preocupado com o escândalo, pediu apenas discrição.
Deixando a sala, Noah seguiu com João Paulo e Narciso até a biblioteca, onde Valentim, Karla e Breno os aguardavam com semblantes aflitos.
— O que houve? — perguntou Valentim, se levantando de imediato.
Noah contou, resumindo tudo: como João Paulo o salvara, como as imagens da sala haviam sido corrompidas, e como ainda pairava uma sombra de dúvida sobre ele. O grupo trocou olhares silenciosos, até que Narciso comentou, pensativo:
— Quando o João Paulo te defendeu, eu vi a cara do Gabriel. Foi estranho... quase como se ele tivesse medo.
O nome foi suficiente para acender a chama da suspeita. E, como se convocado pelo pensamento coletivo, Gabriel apareceu, carregando alguns livros que viera devolver. O sorriso sarcástico estampado em seu rosto foi suficiente para que Valentim desse um passo à frente, prestes a atacá-lo, mas Karla e Breno o seguraram a tempo.
— Vocês têm provas de que fui eu? — perguntou Gabriel, cruzando os braços com falsa calma. — Porque todo mundo viu o Valentim tentar me agredir. Não esqueçam quem parece o errado aqui.
O silêncio pesou ainda mais quando ele continuou, com uma crueldade estudada:
— E lembrem-se: cada um de vocês tem algo a perder. Karla... seu pai já sabe que você namora uma pessoa trans? Narciso, e os teus fãs, o que vão pensar quando descobrirem que o galã das redes sociais anda com um grupo que tem dois gays, um transexual... e um pobretão?
O sorriso dele se alargou, venenoso.
— Então, antes de apontarem o dedo para mim, talvez seja melhor cuidarem da própria vida. Com licença.
E, com passos calmos e seguros, Gabriel deixou a biblioteca. Atrás dele, o silêncio foi quebrado apenas pelo som abafado da respiração de Noah, que sentia, mais do que nunca, o peso de estar no centro de uma trama perigosa.
— Eu não aguento mais — lamentou Noah, sentando numa das cadeiras e cobrindo o rosto com as mãos trêmulas. As lágrimas escaparam, quentes, sem que ele conseguisse contê-las. — O que mais o Gabriel quer de mim?
Karla se aproximou sem pensar duas vezes e o envolveu num abraço apertado, tentando lhe dar um mínimo de segurança.
— Calma, amigo... a gente tá contigo — murmurou, num tom doce e firme.
— Desculpa, Breno. Ele é um idiota — disse Noah.
— Não se preocupe com isso, Noah. Sabe... quando a Karla falou que ia me apresentar os amigos dela — que, no caso, eram basicamente o ex-namorado e o atual dele —, eu fiquei um pouco apreensivo. Mas nunca fui tão bem acolhido em um lugar. Pessoas podres como o Gabriel sempre vão existir, mas o importante é isso aqui — comentou, olhando em volta. — Vocês me deram uma segunda família.
Valentim, de pé ao lado dos três, pousou a mão no ombro do namorado e falou com convicção, embora os olhos estivessem ardendo de raiva.
— Ele quer usar nossos medos contra a gente. Mas não vai conseguir. Não fica assim, amor. A gente vai dar um jeito.
O clima parecia se estabilizar por um instante, até que Narciso, hesitante, baixou a voz.
— Galera... desculpa, mas eu não posso me envolver em algo assim.
O silêncio que seguiu foi abrupto, quase um choque. João Paulo o encarou, incrédulo.
— O quê? Vai ligar para a ameaça de um pivete? — perguntou, sem esconder a frustração. Antes que alguém pudesse impedir, levantou-se e saiu da biblioteca, a decepção estampada no rosto.
Narciso foi atrás dele, chamando-o pelo corredor vazio.
— João Paulo, espera. Você não sabe como é a pressão...
O garoto parou, se virou e encarou o outro com os olhos marejados, mas carregados de indignação.
— É, Narciso. Eu não sei. Me explica. Você prefere cair na chantagem de um zé ruela do que ficar ao lado de pessoas que gostam de ti?
Narciso tentou se aproximar, mas João Paulo ergueu a mão, apontando para frente.
— Vai lá. Sai daqui.
— João Paulo... — a voz dele saiu quase num sussurro.
— Só vai, Narciso. Me deixa em paz.
Sem esperar resposta, João Paulo deu as costas e voltou para a biblioteca, o coração pesado, mas decidido a permanecer ao lado dos amigos. Narciso ficou no corredor, imóvel, como se de repente o peso da própria indecisão fosse maior do que qualquer ameaça que Gabriel pudesse fazer.
Dentro da biblioteca, o grupo ainda estava em silêncio. Noah enxugava as lágrimas, Valentim permanecia firme ao seu lado, e Karla observava a porta, esperando pela volta de João Paulo. Quando ele entrou de novo, os três entenderam, pelo olhar carregado de tristeza, que a amizade com Narciso havia se rachado.
E naquele instante, todos compreenderam: Gabriel não precisava levantar um dedo. Ele já estava conseguindo exatamente o que queria.