✧ Forjado em Desejo ✧
(Lucas)
O mundo retornou em estilhaços, não de uma vez, mas em fragmentos dolorosamente lentos. Primeiro, o som: o murmúrio constante do riacho, indiferente ao drama que se desenrolara em suas margens, e o zumbido insistente de um inseto perto do meu ouvido, um contraponto banal à sinfonia caótica em meu sangue. Depois, a sensação: o peso denso e úmido do ar da floresta em meus pulmões, que eu lutava para encher como um homem afogado. Meu corpo inteiro ainda vibrava com o eco daquele prazer roubado, uma onda de choque que me desnudara, me humilhara, deixando cada nervo exposto.
Tiago se afastou, o movimento lento e deliberado, como um predador satisfeito. Seus lábios brilhavam com a umidade dos nossos, e seus olhos, escuros e insondáveis, me observavam sem triunfo, mas com uma quietude que era ainda mais devastadora. Ele havia me desfeito, metodicamente, peça por peça, com uma audácia que eu mesmo lhe ensinara a temer. E em meio à ruína fumegante do meu autocontrole, uma única e terrível verdade emergiu como uma flor venenosa: eu ansiava por mais.
Antes que o silêncio pudesse se solidificar e se tornar mais uma arma entre nós, avancei. O instinto superou a razão. Minhas mãos agarraram sua nuca, os dedos se embrenhando em seu cabelo com a mesma ferocidade com que minutos antes ele me segurara. Puxei-o para mim e esmaguei meus lábios contra os dele. Não foi um beijo de ternura, nem mesmo de paixão. Foi um ato de reconquista, a brandeação de uma bandeira rasgada em território recém-conquistado. Foi desesperado, faminto e brutalmente honesto.
(Tiago)
Seu beijo era uma tempestade desgovernada. O gosto de sal, suor e da terra em que havíamos rolado se misturava ao seu, uma combinação avassaladora que me roubou o pouco de ar que me restava. Suas mãos em meu cabelo não eram um convite, eram uma ordem, puxando-me para mais perto, para o epicentro de seu caos. Sua língua invadiu minha boca com uma avidez possessiva, mapeando cada centímetro não com a curiosidade de um amante, mas com a urgência de um conquistador que busca devorar a própria alma da terra que tomou. Era brutal, desajeitado e febril — a antítese completa do meu toque calculado e provocador.
Por um instante, o medo primordial retornou, uma serpente fria se enroscando em minha espinha. Mas foi rapidamente engolido por uma onda de excitação vertiginosa, uma capitulação inebriante ao seu poder bruto. Ele se afastou, apenas o suficiente para que nossas testas permanecessem coladas, sua respiração ofegante se misturando à minha em nuvens quentes no ar frio.
“Eu estou louco por você, Tiago!”, ele ofegou, as palavras arrancadas de suas entranhas, cruas e sem polimento, como pedras brutas. “Não consigo parar de pensar em você desde o momento em que curou meu braço. Esse desejo… essa necessidade de te dominar… está me consumindo, queimando tudo por dentro!”
(Lucas)
Cada palavra era uma confissão que me esfolava a alma, arrancando camadas de uma armadura que eu nem lembrava mais como forjar. A muralha que eu construíra ao redor do meu coração por anos, tijolo por tijolo de dor, dever e perda, simplesmente desmoronava sob o peso do seu olhar.
“Eu olho para você e vejo tudo que perdi”, continuei, a voz rouca, quase um rosnado de agonia. “Vejo a luz que eu tinha, a esperança que me foi roubada. E eu quero proteger essa luz em você. Quero forjá-lo em algo inquebrável, um guerreiro que nem os deuses ousariam desafiar. Mas ao mesmo tempo…” Parei, o ar faltando. “...ao mesmo tempo, quero quebrar você em mil pedaços que pertençam apenas a mim. Você entende?”
Meus olhos suplicavam por uma compreensão que eu mesmo não possuía.
“É uma loucura. Uma doença que me corrói. E você… você é a única cura e o veneno que me mantém vivo.”
Minha obsessão, antes uma brasa escondida sob cinzas de disciplina, agora era uma fogueira que ameaçava consumir a floresta inteira, a começar por nós dois. Eu não queria apenas treiná-lo; eu queria possuí-lo, marcá-lo como meu de uma forma que nem o tempo nem os deuses pudessem apagar.
(Tiago)
Suas palavras eram um feitiço poderoso, uma torrente de paixão que deveria me afogar. Mas algo soava dissonante. O Lucas que me treinou, cuja crueldade era uma lâmina fria e precisa, não era este homem se declarando com um desespero tão febril e descontrolado. A paixão era tão repentina, tão violenta e teatral, que soava… antinatural. Uma semente de dúvida gelada brotou em meu peito, um medo mais profundo e insidioso do que qualquer castigo de treinamento.
Malakor. O nome do demônio que nos assombrava sussurrou nos recantos da minha mente. Sua influência se espalhava como uma praga invisível, corrompendo a terra, a magia… e talvez, as vontades mais fracas, os corações mais desesperados. Aquele excesso, aquela falta de controle, não era a marca de Lucas. Era a marca do caos.
“Lucas…”, eu disse, minha voz um fio trêmulo em meio à sua tempestade.
Afastei meu rosto do dele com gentileza, mas com firmeza, buscando em seus olhos tempestuosos algum vestígio do homem que eu conhecia por trás daquela febre.
“Isso… isso não parece com você. É ele, não é? É a influência de Malakor que está fazendo você se sentir assim?”
(Lucas)
A acusação me atingiu com a força de um golpe físico, roubando-me o ar. Que ele ousasse. Que ele ousasse atribuir essa tempestade, essa primeira, avassaladora e genuína emoção que senti em uma década, a um demônio sujo. A fúria superou o desejo em um piscar de olhos, congelando a lava em obsidiana afiada.
Eu o soltei como se sua pele estivesse em chamas, dando um passo para trás.
“Não se atreva”, sibilei, e o veneno familiar estava de volta em minha voz, frio e cortante. “Não se atreva a profanar o que há entre nós com o nome dele. O que eu sinto é meu. Meu tormento, minha adoração, minha loucura. É a coisa mais real que tenho. E se você não acredita, eu vou provar a você.”
A obsessão se transformou, endurecendo de um desejo febril para uma determinação implacável. Ele achava que isso era fraqueza, uma influência externa? Eu lhe mostraria a verdadeira e terrível força dessa emoção. Eu o empurrei para trás, meu movimento rápido e brutal. Abaixei-me, peguei a adaga caída do chão e forcei-a de volta em sua mão, fechando seus dedos em torno do cabo.
“Chega de descanso”, anunciei, minha voz desprovida de qualquer calor. “Você queria aprender a matar. Então aprenda.”
(Tiago)
O treinamento recomeçou, mas a atmosfera estava irrevogavelmente alterada. O ar entre nós não estava mais apenas tenso; estava carregado de uma eletricidade perigosa. Cada instrução agora era um pretexto, cada correção um toque deliberado. Quando ele ajustava minha postura, seus dedos demoravam mais do que o necessário em minha cintura, em meus ombros, o calor de sua pele queimando através do tecido fino da minha túnica. Quando ele demonstrava um golpe, seu corpo se movia contra o meu com uma fricção intencional, um lembrete constante de sua confissão e da minha dúvida.
Eu me concentrei na adaga, na sensação áspera do couro enrolado no cabo, no peso reconfortante e mortal da lâmina. Eu golpeava o ar, girava e aparava, tentando desesperadamente canalizar a confusão, o medo e o desejo que fervilhavam dentro de mim em movimentos precisos e letais. Mas eu sentia seu olhar em mim como um peso físico sobre minha pele. Ele seguia cada gota de suor que escorria pelo meu pescoço, cada músculo que se contraía em minhas costas, cada respiração ofegante que escapava de meus lábios. A lição sobre a adaga era uma farsa; eu era a lição. E ele estava me estudando com a intensidade de um predador dissecando sua presa.
(Lucas)
Eu o observava se mover, e o mundo ao redor gradualmente desaparecia, abafado por uma névoa de foco absoluto. Ele estava aprendendo rápido, uma velocidade que era ao mesmo tempo gratificante e enervante. Seus movimentos, antes hesitantes e reativos, agora possuíam um ritmo próprio, uma letalidade nascente. O rapaz assustado que encontrei na clareira estava se metamorfoseando em uma arma diante dos meus olhos. E ele era a minha obra-prima.
Um orgulho sombrio e possessivo se inflou em meu peito. Eu o queria forte, letal, capaz de se defender de qualquer um que ousasse tocá-lo. De qualquer um, exceto de mim. Para testar seus reflexos, comecei a me mover com ele, forçando-o a um combate simulado que era mais uma dança perigosa do que um treino. Nossos corpos se chocavam, a adaga dele contra a parte chata da minha espada. O som do aço, o grunhido de esforço dele, o cheiro pungente de nosso suor misturado no ar… era a mais intoxicante das sinfonias. Eu nos conduzi para longe do riacho, para dentro do coração da floresta, para um pântano fétido onde a luz do sol mal penetrava através do dossel denso. Um lugar selvagem, primordial e perigoso. Um lugar que espelhava perfeitamente o que eu sentia por ele.
(Tiago)
O ar ficou mais pesado, sufocante, impregnado com o cheiro de decomposição e vida estagnada, uma mistura de terra molhada e podridão doce. Insetos zumbiam em nuvens preguiçosas sobre poças de água escura e parada. Estávamos em um terreno traiçoeiro, um emaranhado de raízes expostas e escorregadias como serpentes adormecidas. Lucas parecia não notar, ou não se importar, seus olhos azuis fixos em mim, sua boca formando um sorriso quase imperceptível toda vez que eu conseguia bloquear um de seus ataques com alguma competência. Ele estava perdido em sua própria tempestade, cego para o perigo real ao nosso redor.
“Lucas, talvez devêssemos voltar”, eu ofeguei, desviando de um golpe amplo e quase perdendo o equilíbrio em uma raiz coberta de lodo. “Este lugar não é seguro.”
Ele apenas riu, um som baixo e gutural, desprovido de alegria.
“O perigo é o melhor professor, Tiago. Ele força você a prestar atenção. Agora, ataque!”
(Lucas)
“Ataque!”
A palavra mal havia saído de minha boca quando o chão abaixo de mim protestou com um gargarejo úmido e voraz. Não houve aviso, apenas uma sensação súbita e nauseante de vazio, seguida por um puxão violento para baixo. A terra que parecia sólida se liquefez, transformando-se em uma lama espessa e faminta. Areia movediça.
A surpresa me roubou o fôlego antes que o pânico pudesse se instalar. Em um segundo eu era o predador, o mestre do nosso jogo perigoso; no seguinte, eu estava afundando, a lama fria e pegajosa já envolvendo minhas pernas, puxando-me para o abraço sufocante da terra. Minha espada caiu de minha mão com um baque surdo e foi engolida instantaneamente. Eu me debati por puro instinto, um erro de novato que apenas acelerou meu afundamento. A lama subiu para a altura da minha cintura em segundos, seu aperto implacável.
(Tiago)
Eu vi tudo em uma clareza terrível e em câmera lenta. O sorriso de Lucas se desfazendo em choque, seu corpo forte e aparentemente invencível sendo tragado pela terra como se fosse uma ilusão. O grito que ficou preso em sua garganta ecoou em minha mente, mais alto do que qualquer som real. Por um momento, eu congelei, a adaga ainda firme em minha mão suada.
O Guardião. O guerreiro que me aterrorizava e me fascinava. O homem cuja obsessão me consumia. Estava preso, indefeso, com o pânico estampado em seu rosto pela primeira vez desde que o conheci. A ironia era tão cruel que beirava o poético. Ele queria me transformar em uma arma, em um assassino, e agora, sua vida dependia inteiramente de como eu escolheria usar a lâmina que ele mesmo colocara em minha mão.
O tabuleiro doentio que ele montara acabara de ser virado com uma violência devastadora. Ele olhou para mim, seus olhos azuis arregalados, não mais o predador, mas a presa. E eu estava em terra firme, com o aço na mão e todo o poder do mundo em minha decisão.
Continua…