CURTE UM ROMANCE FOFO E LEVE? ACESSA:
A sala da psicóloga Eunice era um refúgio silencioso no meio da rotina agitada do Instituto Discere. Com suas paredes em tons pastéis e móveis de madeira clara, o ambiente exalava serenidade. Livros de psicologia, brinquedos terapêuticos e uma xícara de chá fumegante sobre a mesa completavam o cenário que, naquela tarde, acolhia dois adultos visivelmente inquietos.
Frida estava impecável como sempre — vestido de linho bege, cabelos presos num coque suave, os olhos atentos, mas ansiosos. Victor, ao seu lado, usava um paletó sóbrio, os dedos entrelaçados como se tentasse conter o próprio nervosismo. Ambos se sentavam diante da psicóloga como quem esperava por um veredito.
Eunice abriu a pasta com o nome do filho deles estampado na capa: Valentim Almeida Cardoso. Fez isso com o cuidado de quem sabe o peso simbólico daquele gesto.
— Primeiro, eu gostaria de agradecer por estarem aqui. — Começou ela, com a voz calma. — Sei que este momento pode ser delicado, mas também representa um passo importante para o bem-estar do Valentim.
Victor assentiu, tentando parecer firme, enquanto Frida apertava discretamente a alça da bolsa no colo.
— A senhora pode falar com franqueza. — Pediu ela, a voz levemente trêmula. — A gente só quer entender o que está acontecendo com o nosso filho.
— Claro. — respondeu Eunice. — Depois de toda a avaliação, os testes e as entrevistas, o laudo que elaboramos indica que Valentim tenha TDAH. — o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. No caso dele, o tipo identificado é o predominantemente desatento.
Victor franziu a testa. — TDAH?
— Exatamente. O que observamos é que Valentim tem dificuldade em manter o foco, se distrai com facilidade, tem problemas em seguir instruções até o fim e, com frequência, parece distante, como se estivesse sempre "no mundo da lua". Mas vale dizer: isso não diminui o potencial dele. O relatório mostra um perfil cognitivo muito promissor.
Frida mordeu o lábio inferior, absorvendo cada palavra.
— Então ele... ele não é preguiçoso. Ou irresponsável. É o transtorno, né?
— Sim. É importante entender que não se trata de uma escolha ou de má vontade. É uma condição neurobiológica, que afeta diretamente o funcionamento da atenção e da organização. E o mais importante: existe tratamento. Existem caminhos.
Aquelas últimas palavras pareceram fazer o ar voltar aos pulmões de Frida.
— E quais são esses caminhos? — Perguntou Victor.
— O primeiro passo é a elaboração de um plano de tratamento. Em muitos casos, como o de Valentim, a terapia cognitivo-comportamental já traz grandes avanços. Essa abordagem ajuda o paciente a lidar com padrões de pensamento desorganizados, criando estratégias para foco, rotina e gerenciamento do tempo. Em alguns casos, avaliamos também o uso de medicamentos, psicoestimulantes, por exemplo, que ajudam a regular a atenção e o controle dos impulsos. — Destacou a Dra. Eunice.
— Medicamento? — Repetiu Frida, num sussurro.
— Pode ser uma opção, mas não é obrigatória. O mais comum é começarmos com a terapia e irmos acompanhando a resposta dele. O acompanhamento é essencial, para que possamos fazer ajustes conforme ele for crescendo e enfrentando novos desafios.
Victor olhou para o chão por um instante, antes de voltar os olhos para Eunice.
— E a escola? Como ela entra nisso?
— Com o laudo, conseguimos solicitar adaptações pedagógicas: mais tempo para as provas, apoio em sala ou atividades adaptadas. Isso garante que ele tenha as mesmas oportunidades que os colegas, respeitando suas necessidades. E tudo isso graças à professora Leda.
— Professora Leda? — questionou Victor.
— Isso, a professora Leda leciona Literatura e notou os comportamentos do Valentim. Então, solicitou o acompanhamento psicológico.
Frida suspirou, desta vez com mais leveza.
— Valentim tem sofrido tanto nos últimos anos.
— E é exatamente por isso que o diagnóstico é um ponto de virada. Agora, ele pode começar a entender a si mesmo. E vocês, como pais, ganham ferramentas para acolhê-lo com mais clareza. Não é uma sentença. É o começo de um caminho com mais luz.
O silêncio se instalou por alguns segundos. Lá fora, os corredores da escola ecoavam risadas e passos apressados, lembrando que o mundo seguia seu ritmo. Mas dentro daquela sala, o tempo parecia respirar diferente.
Eunice fechou a pasta devagar, deixando-a sobre a mesa.
— O importante agora é caminharmos juntos. Valentim não está sozinho. E vocês também não.
Frida estendeu a mão sobre a mesa, tocando o laudo com a ponta dos dedos. Como quem, enfim, aceitava que o amor por um filho às vezes também é isso: transformar a dor em ação.
***
O céu começava a escurecer quando Valentim empurrou o portão de casa. As nuvens carregadas pareciam refletir seu próprio estado de espírito. A conversa com a psicóloga, os testes, os papéis entregues — tudo estava embaralhado dentro dele, como se sua cabeça fosse uma sala revirada. Mas nada parecia tão difícil quanto encarar os pais. Ainda assim, ele sabia que precisava.
Sentaram-se à mesa da cozinha, o cheiro de café fresco tentando disfarçar o peso no ar. Valentim falou com calma, mas sua voz tremia em alguns trechos. Disse que ainda estava tentando entender tudo. Que não era uma questão de esforço ou de vontade. E, principalmente, que ele também estava assustado.
Os olhos de Frida se encheram de lágrimas, mas ela permaneceu em silêncio, apertando a mão do filho com ternura. Victor, por outro lado, parecia mais desconcertado. Seu rosto era o retrato da culpa mal disfarçada.
— Graças a Deus que você tem o nosso apoio e o da Karla. — Soltou o empresário, tentando trazer algum alívio.
Mas o comentário caiu como pedra sobre o peito de Valentim. O coração apertou. Ele hesitou, mordeu o lábio inferior, e começou:
— Pai, sobre a Karla...
— E não podemos esquecer da professora Leda. — Interrompeu Frida, como se precisasse desesperadamente se agarrar a algo positivo. — Vou preparar um presente para ela. Foi fundamental nesse processo.
Valentim engoliu a dor. Não teve coragem de falar. Ainda não. A ideia de decepcionar mais uma vez parecia insuportável. Por enquanto, o término com Karla continuaria guardado apenas para si — mais um nó naquela confusão interna que ele mal compreendia.
***
Não muito longe da casa de Valentim, o caos não era emocional — era concreto.
Noah mal teve tempo de largar a mochila no sofá quando foi surpreendido por vozes estranhas, passos firmes, ordens secas. Homens da Polícia Federal circulavam pela casa como se fosse deles. A sala estava cheia de equipamentos, maletas e olhares desconfiados. Seu pai, Raphael, estava sentado à mesa da sala, cercado por advogados e dois agentes. A mãe, em silêncio absoluto, havia se refugiado no quarto.
— O que está acontecendo? — murmurou Noah, o corpo gelado.
Um dos policiais apenas lançou um olhar apressado antes de seguir para o andar de cima. Quando Noah subiu atrás, viu seu quarto completamente revirado — gavetas no chão, cadernos rasgados, roupas espalhadas. Nem os troféus da escola foram poupados. Levaram todos os notebooks, celulares e discos rígidos de Raphael.
Tudo por causa de uma denúncia anônima ao Supremo Tribunal Federal. Acusavam seu pai de ter recebido propina de uma construtora. O nome da empresa, desconhecido para Noah, agora pesava como uma sentença.
Horas depois, quando os policiais enfim partiram, a casa parecia uma versão distorcida de si mesma. Raphael trancou-se no escritório com os advogados, mas a dor de sua voz atravessava paredes.
— A minha carreira acabou... Até eu provar a minha inocência, a opinião pública já me destruiu. — Lamento o político.
Havia uma mistura de raiva e desespero em cada sílaba. Para um homem que construíra toda a vida em cima da imagem pública, aquilo era mais do que um processo — era um desmoronamento.
— Senhor, — disse um dos advogados, ao encerrar uma ligação — também fizeram uma busca em sua casa em Brasília.
Raphael se levantou abruptamente.
— Essa análise demora quanto tempo?
— Não sei, dias... talvez uma semana.
— E o presidente do STF? Respondeu?
— Ainda não, senhor.
Raphael então olhou pela janela, onde o céu já era um breu absoluto. O brilho da cidade não era suficiente para dissipar a escuridão dentro dele.
— Eu vou para Brasília. Agora. — Afirmou com os olhos firmes, mas o rosto abatido. — Daqui eu não vou resolver nada.
Noah, parado no corredor, ouviu tudo. Pela primeira vez na vida, não reconheceu o próprio pai.
E pela primeira vez, também, sentiu medo do que ainda estava por vir.
***
No dia seguinte, Valentim sentou na poltrona macia de um consultório que, apesar de acolhedor, ainda lhe parecia estranho. As paredes em tom azul suave, os livros organizados em prateleiras altas, os brinquedos e jogos em uma estante ao canto – tudo indicava que ali era um lugar de escuta e acolhimento. O ar-condicionado soprava leve, e o tic-tac de um relógio discreto marcava o compasso da espera.
— Pode se sentar como quiser, Valentim. — Disse o psicólogo, com um sorriso tranquilo. — Aqui é um espaço seguro. Nada do que for dito será julgado.
O Dr. Luiz Carlos era um homem de voz pausada e olhos atentos. Especialista em comportamento infantil e juvenil, ele transmitia a calma de quem sabe escutar mais do que falar. Valentim sentiu um certo alívio por não estar diante de alguém que quisesse "consertá-lo", mas compreendê-lo.
— Nunca fiz isso antes. — Confessou o garoto, cruzando os braços sobre o peito.
— Tudo bem. A gente começa do jeito que for mais confortável pra você. Me conta um pouco de como tem sido sua vida.
Valentim hesitou por um momento, olhando para o chão. Depois, respirou fundo.
— Minha infância foi... normal, eu acho. Brincava, ia à escola, tinha amigos. Mas sempre me sentia diferente. Enquanto os outros pareciam entender as coisas rápido, eu tinha que me esforçar o triplo pra acompanhar.
Fez uma pausa, como se organizasse os pensamentos.
— Meus primos, por exemplo... Um já está estudando em Londres, outro passou direto pra USP. E eu? Ainda tô aqui, tentando. Não sinto inveja, de verdade, mas... me sinto mal. Como se sempre ficasse pra trás.
O psicólogo assentiu com empatia, sem interromper.
— Valentim, você não está atrasado. Está no seu tempo. E agora que temos um diagnóstico claro, temos também ferramentas. Você pode — e vai — chegar onde quiser. Só precisa encontrar as estratégias certas.
— Mas e se eu falhar? — murmurou o garoto, encarando as mãos.
— Todos falhamos às vezes. Mas isso não define quem somos. Vou te passar alguns exercícios para concentração. Coisas simples, mas eficazes. Respiração consciente, divisão de tarefas em blocos menores, pausas programadas. Mas o mais importante: você precisa tentar de verdade. Com esforço e consistência, você pode alcançar o mundo, Valentim.
Nos dias seguintes, Valentim parecia outro. Não era uma mudança repentina, mas era verdadeira. Pela primeira vez, ele queria mesmo tentar melhorar. O diagnóstico lhe dera uma explicação, e o acolhimento de todos, especialmente de sua professora de Literatura, fora um impulso.
Assim, quando recebeu um novo trabalho da disciplina, decidiu fazer diferente. Pesquisou, escreveu e reescreveu. Não foi fácil — o foco ainda era um desafio —, mas ele não desistiu. O resultado? Um projeto envolvente, bem estruturado e criativo. Valentim entregou o trabalho com orgulho.
Frida, emocionada com o esforço do filho, quis retribuir o apoio da professora. Mandou para a escola uma cesta elegante com produtos importados de cuidados para pele — cremes, óleos, sabonetes especiais.
Naquela tarde, quando a professora Leda recebeu a entrega, arregalou os olhos, surpresa.
— Não era preciso, Valentim. — Disse ela, sorrindo, segurando a cesta com delicadeza. — Só o seu desempenho no projeto já me deixou muito feliz.
— A senhora merece, professora. — Respondeu o garoto, com um brilho sincero no olhar. — Viu um problema em mim que nem eu mesmo entendia. Agora é só pra cima.
A professora sorriu, emocionada. Naquele instante, soube que havia plantado uma semente que começava, enfim, a florescer.
***
A noite de sexta-feira se estendia silenciosa sobre o Instituto Discere. Os corredores, antes vibrantes com a agitação dos alunos, agora repousavam em quietude. As luzes automáticas acendiam-se uma a uma, lançando clarões suaves sobre os armários fechados e as paredes cobertas de murais escolares. O som mais alto era o leve zumbido dos ventiladores e o eco distante de um funcionário encerrando o turno.
Valentim ainda estava na biblioteca, uma das últimas almas resistentes a deixar o prédio. Sentado à mesa dos fundos, ele se inclinava sobre o livro de história, tentando absorver as datas e eventos da Proclamação da República. Mas sua mente, teimosa, insistia em divagar. A cada página virada, uma lembrança de Noah surgia — seu jeito debochado, o sorriso torto, o olhar que parecia atravessar suas defesas mais bem construídas.
Ele respirou fundo, recordando as orientações do Dr. Luiz Carlos. Pausas programadas, leitura em blocos, associações visuais. Aos poucos, foi encontrando ritmo e foco. Ficou surpreso quando, ao revisar os tópicos principais, percebeu que lembrava tudo. Pela primeira vez em dias, sentiuque estava no controle.
Fechou o livro com alívio e pegou o estojo, pronto para ir embora. Foi quando o viu — parado junto a uma janela no corredor lateral da biblioteca, onde as estrelas podiam ser vistas sem interferência das luzes da cidade.
Noah.
Sozinho, com os olhos voltados para o céu, ele parecia parte da paisagem noturna. A luz azulada da lua iluminava seu rosto, que trazia uma serenidade estranha, como se estivesse muito distante dali.
— Não deveria estar em casa? — Perguntou Valentim, aproximando-se com cuidado.
Noah virou o rosto apenas o suficiente para encará-lo, mas manteve os ombros relaxados.
— Minhas noites nunca foram muito normais. — Respondeu com um meio sorriso, antes de sentar-se no chão, encostado à parede.
Valentim hesitou por um segundo, depois se sentou de frente para ele, sem saber exatamente por quê. Pegou o caderno de novo, fingindo reler as anotações, mas seus olhos escapavam, irresistíveis, para o outro garoto. Noah estava com um fone de ouvido, a batida de alguma música escapando baixinho, e um livro aberto nas pernas. A forma como ele franzia o cenho concentrado, os dedos batendo ritmados nas páginas, deixava Valentim desconcertado.
— Pode tirar uma foto. — Murmurou Noah, ainda olhando para o livro.
Valentim ruborizou.
— Sabe... eu nem sei por que fico te olhando tanto. Você é um saco. — Disse num tom baixo, arrancando o livro das mãos de Noah para fechá-lo.
— Eu sei. — Noah riu, a voz arrastada como um sopro. Então, em um movimento rápido, segurou o braço de Valentim e o puxou. O gesto foi forte o bastante para desequilibrá-lo, e Valentim caiu com um baque suave contra o peito de Noah, os rostos colados.
O tempo pareceu congelar.
A respiração de ambos se misturava. Os olhos de Valentim buscavam os de Noah, e por um instante ele esqueceu todos os conselhos, todas as regras, todas as dúvidas. Sentia apenas o calor do outro corpo, a proximidade proibida, e o desejo contido por tanto tempo.
Mas então, o som de passos apressados ecoou pelo corredor. Um ruído qualquer, um lembrete do mundo real.
Eles se afastaram rápido, o momento se dissolvendo como fumaça.
— Melhor a gente esquecer isso. — Disse Valentim, a voz rouca, os olhos evitando os de Noah enquanto se levantava e caminhava em direção à seção de história.
Noah não respondeu de imediato. Apenas o observou com aquele olhar cheio de camadas que Valentim ainda não conseguia decifrar.
— Até amanhã, idoso. — Falou por fim, pegando o livro do chão e saindo da biblioteca sem olhar para trás.
Valentim ficou ali, sozinho, ouvindo o som dos próprios batimentos reverberarem nas paredes silenciosas. O peso do quase-beijo ainda pairava no ar. Ele sabia, com um incômodo que o fazia tremer por dentro, que aquilo não era o fim.
Era apenas o começo.