A luz do fim da tarde tingia o céu de um tom laranja amargo quando parei a moto em frente à delegacia. Desci devagar, como quem sabe que está prestes a entrar em um campo minado. O capacete ainda pendia no meu braço quando atravessei o portão enferrujado. Cada passo que eu dava ecoava como um aviso. Meus olhos passaram pelos policiais de plantão, pelas paredes manchadas pelo tempo e pela porta de madeira entreaberta que levava até a sala dele.
Arthur.
Respirei fundo antes de bater duas vezes com os nós dos dedos.
— Entra — disse a voz firme do outro lado.
Empurrei a porta e lá estava ele, sentado atrás da mesa, com a farda impecável, os olhos gelados e uma pasta aberta à sua frente. Ele me encarou de cima a baixo como se estivesse avaliando mais do que minha aparência — talvez minha alma.
— Senta aí, Pedro — disse, seco.
Fechei a porta e me aproximei. O clima estava denso, como se algo não dito pairasse entre nós. Me sentei e esperei, mas ele continuava me encarando com aquela expressão atravessada. O silêncio já doía.
— Vai me dizer que aquele cara na sua casa era só visita? — ele soltou, cruzando os braços. — Sem camisa, sorriso na cara. Tava à vontade, até demais.
Meus olhos se estreitaram. O tom dele era estranho. Não era acusador... era pior. Era ciumento.
— Arthur, eu não sei o que você tá imaginando — disse, tentando manter a calma. — Flávio só passou lá pra conversar. Nada demais.
— Conversar — repetiu ele, com um meio sorriso de desdém. — Entendi. Você tem uma amizade colorida com ele ? Igual tem comigo?
Revirei os olhos. A cutucada tinha endereço certo. E o veneno também.
— Eu não tenho que me justificar pra você — rebati. — Mas, se quer saber, não tem nada demais acontecendo. Você me chama aqui por ciúmes ou tem outro motivo?
Ele sorriu, mas os olhos não acompanharam o gesto. Puxou a pasta à sua frente e a abriu devagar, como quem revela uma armadilha.
— Já que você tocou no assunto... tem sim. Tem outro motivo. Bem mais sério. E você vai me dizer se é coincidência ou se tá mentindo pra mim.
Engoli em seco.
— Vai direto ao ponto, Arthur.
Ele apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos como fazia quando estava prestes a jogar uma bomba.
— Você pode me explicar por que um apartamento no seu nome, Pedro, tá envolvido num possível duplo homicídio?
Eu travei. Por um instante, achei que não tinha ouvido direito. O coração deu uma martelada tão forte que quase tampou os ouvidos. Pisquei algumas vezes, a boca seca.
— Eu... eu não entendi a pergunta — murmurei, sentindo a garganta fechar.
Arthur puxou a pasta de volta e abriu uma das abas, virando-a para mim. Fotos. Documentos. Um print de vídeo, escuro, granulado, mas dava pra ver o sangue escorrendo. E o endereço... era o meu. Quer dizer, estava no meu nome.
— Dois homens — repetiu ele. — Bernardo e Pietro. Ambos ex-presidiários. Bernardo, condenado latrocínio e mais um monte de coisa e Pietro... tráfico. E você, Pedro, está com o nome na escritura do local onde eles desapareceram. E o pior: temos um vídeo com indícios de que houve um assassinato lá. Não há corpos — ainda —, mas há sangue...
— Bernardo e Pietro... — falei, ainda tentando entender tudo. — Eram conhecidos antigos. Bernardo foi alguém que... eu conheci bem. Me pediu ajuda um tempo atrás. Disse que estava tentando recomeçar a vida. Eu só... só emprestei o apartamento por um período. Não sabia que...
— Que eles tinham ficha? — interrompeu Arthur, os olhos cravados em mim. — Que um deles era traficante? Que a polícia estava no encalço de Pietro por causa de uma dívida com uma facção? Você empresta um imóvel pra dois ex-presidiários e acha que isso não levanta nenhuma suspeita?
— Eu não sabia! — levantei a voz, pela primeira vez. — Caralho, Arthur, eu juro que não sabia! Bernardo me pediu ajuda. Eu não tava usando o apartamento, achei que não teria problema. Não me envolvi em nada. Não sou cúmplice de nada.
Arthur se encostou na cadeira, cruzou os braços. O olhar dele era de quem queria me entender — ou me desmontar.
— Então você tá dizendo que não sabia com quem tava lidando?
— Exatamente.
Ele soltou um suspiro demorado.
— Pedro, você sabe que esse tipo de coisa não vai passar em branco. Esse caso tá ganhando atenção. A perícia já tá analisando o vídeo,logo logo vão bater na sua porta com um mandado. E aí? Vai continuar dizendo que não sabe de nada?
— Eu quero meu advogado — disse, firme. — Eu não vou falar mais nada sem ele. Eu não tenho culpa nenhuma nisso e não vou pagar por algo que eu não fiz. Se quiser me investigar, tudo bem. Façam o que quiserem. Mas eu sei do que sou inocente. E dessa história eu não sou o vilão.
Arthur assentiu lentamente, como quem já esperava por isso. Fechou novamente a pasta e levantou-se, caminhando até a janela da sala. A luz do pôr do sol invadia o espaço, dourando seus ombros largos. Ele ficou ali por um tempo, em silêncio, olhando a rua.
— Sabe, Pedro — disse ele, sem se virar —, eu queria acreditar em você. Queria mesmo. Mas a verdade é que cada vez que a gente se encontra, alguma merda explode logo depois.
— Isso não é justo — retruquei, me levantando. — Você não faz ideia do que tá acontecendo.
— Então me ajuda a entender — ele virou-se, de novo com aquele olhar duro. — Porque, se eu não descobrir o que realmente aconteceu naquele apartamento, alguém vai acabar te enterrando junto com esses dois.
Fiquei imóvel. As palavras dele pairavam no ar como fumaça espessa. Aquilo não era só um aviso. Era uma ameaça velada. E o pior... era que talvez ele estivesse certo. Talvez eu tivesse entrado numa trama mais profunda do que imaginei.
E se alguém estivesse me usando?
E se tudo isso tivesse sido armado?
E se... Bernardo tivesse me deixado numa armadilha?
Engoli em seco e fui até a porta. Antes de sair, me virei e o encarei uma última vez.
— Arthur... eu espero que, quando isso tudo for esclarecido, você esteja do meu lado. Porque eu tô começando a cansar de lutar sozinho.
Ele não respondeu. Apenas olhou pra mim com um misto de dúvida, mágoa e algo mais — algo que eu não consegui decifrar.
Saí da sala com o coração disparado, a mente em chamas e a certeza de que o pior ainda estava por vir.
Caminhei até minha moto com passos lentos, como se cada um precisasse de autorização pra acontecer.
Sentei no banco, respirei fundo e ia encaixar o capacete quando escutei a voz dele vindo logo atrás:
— Pedro... espera.
Me virei e lá estava Arthur. A farda ainda meio amassada, a expressão mais bagunçada do que eu já tinha visto nele. Ele parecia cansado... e aflito.
— A gente precisa conversar.
Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele simplesmente subiu na garupa da moto. Sem capacete, sem convite, sem hesitação.
— Só vai — disse, a voz baixa, quase um pedido.
Dei partida e obedeci. As ruas passavam ao nosso redor, vazias, silenciosas. Eu sentia as mãos dele segurando levemente minha cintura. Aquilo já era errado o bastante — policial, fardado, fora de si — e, mesmo assim, parecia inevitável. Não trocamos uma palavra até estacionarmos perto da praça antiga da cidade.
Escolhi uma parte mais escura, afastada!
Desci da moto e ele também. Fomos para parte das árvores e por um segundo, apenas nos encaramos. Arthur então quebrou o silêncio.
— Eu tô no pior momento da minha carreira, Pedro. — A voz dele soou como se estivesse confessando um crime. — Eu... não tô conseguindo mais separar a porra da vida pessoal da profissional.
Ele se aproximou e, de repente, segurou meus ombros com força. Os olhos dele ardiam.
— Me diz, olhando nos meus olhos... você realmente não tem nada a ver com a morte de Bernardo e Pietro?
Eu nem precisei pensar.
— Não. — Respondi firme, sentindo minha voz firme, meu peito pesado. — Eu juro por tudo que eu não fiz nada. Eu não teria coragem. Eu nunca faria isso.
Ele segurou o ar por uns segundos e depois soltou meus ombros com brutalidade, virando de costas. Andou até uma árvore e deu um chute nela. Depois gritou:
— Porraaaaaa!
A raiva dele era crua, suja, dolorida.
— Eu não sei o que fazer! — gritou, passando as mãos na cabeça. — Eu não sei, caralho! Tô todo fudido, Pedro! Tô te investigando, mas quando olho pra você, esqueço do caso inteiro. Esqueço de tudo.
Fui até ele devagar. Meus passos foram como os de quem se aproxima de um animal ferido. Quando cheguei perto, abracei por trás, encaixando meu corpo no dele. Ele não se afastou.
— É foda — ele disse, a voz embargada. — Tentar pensar com a cabeça de cima, sendo que toda vez que você me toca... a cabeça de baixo assume o controle.
Senti a respiração dele acelerada, o peito subindo e descendo contra meu braço. A noite era escura, mas o que havia entre a gente era ainda mais. Confuso. Quente. Vivo.
Nos sentamos na grama, ele puxando meu braço com força, como se tivesse medo de se arrepender depois. Me olhou por alguns segundos, como se estivesse esperando que eu o afastasse. Mas eu não fiz isso. Eu não conseguia.
De repente, ele me empurrou na grama, me jogando de costas com o peso do corpo sobre o meu. Sua boca encontrou a minha com fome. Beijos quentes, rápidos, como se estivéssemos engolindo o tempo perdido, as palavras não ditas, a raiva, o desejo.
Senti a mão dele passando pela minha nuca, os dedos apertando minha cintura, os beijos descendo pro meu pescoço. Meu corpo reagia sem pensar, cada célula pulsando, respondendo à urgência do toque dele. A grama úmida colava na minha roupa, mas nada ali importava além daquele momento.
Arthur estava sobre mim, me devorando, como se só eu pudesse acalmar a tempestade dentro dele.
A respiração dele pesava contra meu pescoço. Os beijos antes desesperados agora se transformavam em toques mais lentos, mais íntimos. A grama sob nós já não importava. A cidade podia estar desmoronando, o mundo girando ao contrário, mas ali, naquela escuridão escondida, nossos corpos se encontraram num ritmo que não precisava de explicação.
As mãos dele percorriam meu peito como se me procurassem no escuro. O uniforme dele foi saindo aos poucos, peça por peça, como se cada botão desabotoado fosse um pedido de silêncio, de trégua. Eu me deixei levar. Entre sussurros, gemidos abafados e a urgência que só o desejo reprimido conhece, nos entregamos um ao outro.
Ali, entre o cheiro da terra e o calor da pele, não éramos policial e suspeito. Não éramos passado e presente. Só éramos dois homens tentando esquecer o caos — um no corpo do outro.
O sexo foi intenso, carregado, suado. Mas mais do que isso... foi necessário. Como se nossos corpos estivessem tentando resolver aquilo que nossas palavras não conseguiam.
Quando tudo acabou, nos vestimos em silêncio. As roupas úmidas da grama, o peito ainda arfando, a mente rodando. Sentamos lado a lado, ainda ofegantes, e olhamos pro céu, agora mais limpo, com algumas estrelas tímidas surgindo por entre as nuvens.
Fui eu quem quebrei o silêncio.
— Eu não aguento mais essa agonia entre a gente, Arthur.
Ele virou o rosto devagar, me olhando.
— A gente parece dois adolescentes sedentos por sexo — continuei. — Sempre nesse vai e vem, nesse empurra e puxa. Como se não soubéssemos o que fazer com o que sentimos.
Arthur soltou um suspiro carregado, como quem queria dizer muito, mas só conseguiu resumir:
— O tempo parece que não ajuda a gente.
Ficamos em silêncio por um instante, o tipo de silêncio que não pesa — mas que fala.
Me levantei, limpei a calça do barro e peguei o capacete da moto. Olhei pra ele, que ainda estava sentado, os braços apoiados nos joelhos.
— Eu preciso ir pra casa.
Ele hesitou. Depois perguntou:
— Posso... posso ir com você? Dormir lá hoje?
Nos olhos dele não havia luxúria. Havia cansaço. Vontade de repousar. Medo de dormir sozinho.
— Pode — respondi.
---
O caminho até minha casa foi silencioso, mas diferente do silêncio anterior. Era um silêncio de quem finalmente se rendeu à presença do outro. Arthur abraçado à minha cintura, a cabeça colada nas minhas costas. Quando chegamos, ele tirou a bota na porta e caminhou até o sofá como se já conhecesse cada canto da minha casa.
Tomei um banho rápido. Ele veio depois. Sem muitas palavras.
Mais tarde, ligamos a televisão. Eu passeava pelos canais quando ele soltou:
— Deixa nesse... quero assistir isso.
Era "Orações para Bobby".
Fiquei surpreso. Não esperava. Mas deixei.
Sentamos lado a lado no sofá, enrolados em um cobertor velho, a luz da televisão iluminando nossos rostos. O filme correu como um rio dentro da gente. A dor do Bobby, o silêncio da mãe, a sensação de ser invisível, indesejado, estranho demais pro mundo. Eu vi Arthur engolir seco mais de uma vez. Em certo momento, senti a mão dele apertar a minha.
Não precisava de palavras.
Quando os créditos começaram a subir, ele já estava deitado no meu peito. Os olhos pesados, a respiração calma. Seus braços me envolviam como se ali fosse o único lugar seguro. E talvez fosse mesmo.
Passei os dedos devagar pelos cabelos dele, sentindo um misto de paz e medo. Porque amar alguém assim, no escuro, sem garantias, era como andar descalço em terra cheia de espinhos.
Mas naquele momento... tudo que importava era que ele estava ali.
Dormindo, finalmente em paz.
E eu... finalmente em silêncio.
Continua...