O acidente que mudou a minha vida - Cap. 7

Um conto erótico de Pedro
Categoria: Gay
Contém 4028 palavras
Data: 16/08/2025 21:53:51
Assuntos: Bissexual, Casado, dúvida, Gay

Alguns minutos se passaram ali, comigo perdido em pensamentos, tentando achar as pontas soltas de tudo isso. Tudo o que minha vida poderia virar se eu seguisse no caminho que, no fundo, eu sabia que queria seguir.

De olhos fechados, tomei um susto quando alguém bateu no vidro.

Era o Henrique.

Abri a porta imediatamente. Assim que saí, estendi a mão para um aperto e o puxei para um abraço forte. Um daqueles que não pedem permissão. E ele, sem entender, me retribuiu na hora. Me abraçou como quem sabe que alguma coisa muito séria está acontecendo.

— O que foi? — ele perguntou, quase sussurrando. — O que aconteceu, Pedro? O que você tem?

Afastei o abraço, segurei os ombros dele com as duas mãos e o encarei. Henrique, com aquela camisa preta colada no peito, a bermuda branca meio amassada, parecia ter saído de casa às pressas. Os olhos claros de sempre, puxados da nossa mãe. Cabelo mais claro, três dedos maior que o meu, com aquele corte que nunca muda. Meu irmão mais novo... e o único em quem eu podia confiar naquele momento.

— Obrigado por ter vindo — falei, com a voz firme, mas baixa. — Eu preciso conversar com você. Mas tira a gente daqui, vamos dar uma volta. Preciso respirar. Preciso desabafar. É algo que tá preso em mim... e que de alguma forma vai mudar minha vida. E não sei se isso vai impactar na sua também.

Ele não hesitou. Estendeu a mão.

— Me dá a chave — pediu. — Eu dirijo. Vamos até o mar, sentir o vento. Barzinho, o que você quiser. Tô com você.

Entreguei a chave. Entrei no banco do passageiro. E Henrique foi direto ao volante, como quem entende a urgência de um irmão mesmo sem entender o problema.

O trânsito já estava mais tranquilo. Fomos em direção ao Rio Vermelho. Ironicamente, o mesmo lugar onde tudo começou, mas ele sabe que é um dos meus preferidos.

Henrique manteve o rádio desligado. Olhou pra mim, de vez em quando, e perguntou:

— Pedro, fala comigo. O que aconteceu? Tô preocupado, cara. Eu não lembro de já ter te visto assim. Não que seja problema você me abraçar, mas não nessas condições. Me diz, você tá bem?

Eu olhei pra frente por alguns segundos, respirei fundo... e comecei a contar. Desde o acidente. Desde a madrugada em que um motoqueiro bateu na porta do meu carro.

Henrique ouvia sem interromper. Apenas assentia, balançava a cabeça, ou soltava um “caralho” baixo. Eu contei sobre o jantar, a conversa, o toque. Contei tudo. Absolutamente tudo. Mesmo sendo ele, eu imaginava que haveria pelo menos um julgamento qualquer, uma expressão tensa, mas ele não esboçava nada além de surpresa.

Não me recordo o horário em que estacionamos no Takê. Restaurante japonês que o Henrique adorava. Eu nem tanto. Mas não recusei.

Entramos. A recepção foi rápida. Sentamos. Henrique pediu uma água. Eu pedi uma cerveja. E aproveitei a brecha para mandar mensagem pra minha esposa, dizendo que estava com o Henrique e que estava tudo bem.

Em seguida, respondi a mensagem do Daniel que dizia ter chegado em casa. Falei que estava com meu irmão, que precisava conversar, e desejei boa noite. Voltei a guardar o celular no bolso.

A comida chegou. Comemos. Henrique puxou o assunto de novo, mais calmo agora.

— Pedro, entenda. Eu adoro sua esposa. Você sabe disso. Nunca teria nada contra ela, jamais. Mas eu sempre vou estar do seu lado. Sempre. E, nesse momento, mais ainda. Porque eu sei que você tá confuso, que tá passando por algo que não esperava. E, olha... isso não muda nada na admiração que eu tenho por você. Pelo contrário. Só aumenta.

Ele fez uma pausa. Bebeu mais um gole de água. Me olhou de novo, com firmeza:

— Mas você tem que estar preparado. Se isso for adiante... se você decidir se permitir viver esse sentimento... você corre o risco de perder muita coisa. Apoios. Referências. Os pais.

Assenti. O “medo” dos nossos pais... sempre foi maior em mim do que nele. E ele sabia disso.

— Mas o mais importante — ele continuou — é que você esteja bem estruturado por dentro. Que não se afunde em culpa, que não se perca nisso tudo. Vai com calma. Não que eu esteja te incentivando a trair, tá? Mas... eu acho que você deve seguir nesse momento, sim. Sentir. Viver. Só... vai com cautela. E antes de tomar uma decisão que vai mudar tudo, pensa bem.

Sorri de leve. Pela lucidez. Pela generosidade.

— Eu quero conhecer esse cara aí — ele falou, do nada. — Saber se ele é digno de você.

— Sério? — perguntei, rindo pela primeira vez em horas.

— Sério — ele confirmou, rindo junto. — Quero saber se ele merece o irmão que eu tenho.

Saímos do restaurante, caminhando devagar até o carro. Ali, conversamos por alguns minutos. Não fiquei tanto tempo, nem cheguei a comer de verdade só tomei algumas cervejas, enquanto ele foi pedindo combinados, sushis, essas comidas japonesas que eu nem sei o nome. Aquilo tudo era uma sensação estranha, mas positiva. Eu sentia que teria o apoio dele, mas não esperava que fosse lidar tão bem com aquilo. Henrique tem 27 anos, tem amigos do meio. É casado, tem um filho lindo, meu sobrinho Caio. Trabalha com programação e tem um excelente futuro pela frente. E, mesmo com a vida já tão estruturada, ele estava ali, inteiro, ao meu lado, como se nada pudesse abalar a nossa ligação.

Fiquei ali parado, do lado da porta, olhando pro nada. E aí, sem aviso, falei:

— Sabe o que me apavora mais, Henrique?

Ele me olhou. Não disse nada.

— O medo de perder o afeto dos meus filhos. Dos nossos pais. Perder tudo isso... tudo que eu construí, tudo que eu fui até aqui... é o que me machuca mais. Não é arrependimento. Não é remorso. É medo. É como se eu estivesse com um pé no abismo e, ao mesmo tempo, querendo pular.

Henrique me puxou pro abraço. Ele não disse nada. Só me segurou forte. Apertado.

E ali, no peito dele, eu chorei. Pela primeira vez em muito tempo.

As palavras do Henrique ainda ecoavam dentro de mim como um trovão manso, devastando tudo por onde passavam, mas sem causar ruído externo. Eu continuava calado, mas agora chorava. Chorava mesmo. Chorava pelo menino que eu fui, pelas escolhas que reprimi, pelo medo que me moldou, pelas renúncias que aceitei como destino. Chorava pelo susto de estar sentindo tudo isso agora, de ter vivido algo que me virou do avesso, e pela consciência cruel de que não dava mais pra voltar pro ponto onde estava antes.

Ele continuava me abraçando firme, como se o mundo inteiro pudesse ruir ao redor, mas ele ainda seguraria minhas costas. E ele segurava. Um cafuné leve com os dedos, um gesto tão simples, mas que parecia me sustentar.

— Você é gigante, Pedro — ele repetiu. — Não é porque você tá confuso que você virou outra pessoa. Você continua sendo esse cara que eu admiro, o mesmo irmão que me ensinou a enfrentar o mundo sem baixar a cabeça. Só que agora… agora chegou a sua vez de ser acolhido. Agora eu seguro você, tá?

Assenti com a cabeça, ainda sem conseguir falar.

Respirei fundo, engoli o choro do jeito que deu, e me afastei um pouco. Ele continuava ali, firme, esperando que eu dissesse qualquer coisa. E eu disse.

— Eu tô com medo, Henrique… De tudo. De perder minha família, de magoar quem não merece, de descobrir que tudo que eu vivi até aqui foi uma mentira confortável. E, principalmente… tô com medo de perder meus filhos. E de perder vocês também, você e a nossa irmã… e nossos pais.

Henrique me encarou por uns segundos.

— Você não vai perder a gente. Eu e a Vanessa somos seus, sempre fomos. E quanto aos nossos pais… bom, você sabe como eles são. Mas Pedro, você não vai estar sozinho. Mesmo que eles virem as costas. Mesmo que todo mundo vire. Eu vou estar aqui. Com você cara.

Eu fechei os olhos. O vento da noite soprava do mar, trazendo aquele cheiro salgado e a promessa de algo novo. Ainda era cedo pra saber o que viria depois. Mas naquele instante… naquele instante, eu só me permiti existir. Ali. Ao lado do meu irmão.

E por um momento, mesmo com toda a confusão dentro de mim, eu me senti inteiro.

Ele se afastou um pouco do abraço, mas não largou. Apenas o bastante para segurar meus ombros com firmeza. Olhou direto nos meus olhos. Eu tentei desviar. Ainda tava com o rosto molhado, os olhos vermelhos. Mas ele não deixou. Segurou firme. Não me deixava baixar a cabeça. E falou:

— Olha pra mim cara, lembra que sempre que ia me falar algo importante, fazia isso? Eu tinha que olhar nos seus olhos, então, olha pra mim. Presta atenção. Pedro... você é o cara mais foda que eu já conheci. Eu não falo isso da boca pra fora. Eu falo porque é verdade. Você sempre foi meu exemplo. Sempre. Quando alguém me perguntava quem eu queria ser quando crescesse... era ser igual a você. Eu não dizia pra eles, mas era. Porque você sempre foi do caralho, cara. Sempre foi um irmão presente, protetor, justo... carinhoso. Mesmo quando você tava ferrado, mesmo quando a porra toda parecia pesar em cima de você, você dava um jeito de me proteger.

A voz dele tremia um pouco. Mas ele continuava firme. Como se quisesse me ancorar com aquele olhar.

— Você segurou tanta coisa sozinho. E nunca reclamou. E o pior... ou o melhor, sei lá... é que você me ensinava o contrário. Você dizia que eu não precisava ser como você. Que eu podia ser quem eu quisesse ser. Que eu devia ser livre. E eu fui. Porque você me permitiu isso. Porque você me deu esse chão. E agora, é a minha vez. Agora sou eu quem tô aqui pra te segurar, cara.

Ele engoliu seco. Sorriu de leve e deu dois tapas suaves no meu peito, como quem diz sem palavras que estava ali, firme comigo. E seguiu:

— Eu te admiro tanto. Não tem nada nesse mundo que vá mudar isso. Nada. O que você tá vivendo agora... eu sei que assusta. Mas, pra mim, você continua sendo o cara “mais do caralho” que eu conheço. A pessoa mais verdadeira. E isso... isso só aumenta o que eu sinto por você. Não diminui nada.

Henrique sorriu no meio das lágrimas dele. Um sorriso de amor, de irmão, de quem queria curar uma dor que nem sabia como. E completou:

— E quer saber? A Vanessa... ela vive num mundo muito mais aberto do que o que a gente cresceu. Ela é dessas... descolada, mente aberta, sem esses pesos todos. Eu duvido que ela vá deixar de gostar de você. Ela te ama, Pedro. Ela é louca por você. Porra, eu sou louco por você, cara!

Ele riu, segurou minha nuca e me puxou de novo pro peito dele. O abraço de um irmão que tava dizendo, sem falar: “você tá salvo aqui”.

— Eu não vou falar por ela, tá? Mas eu posso falar por mim. E eu vou repetir quantas vezes forem necessárias: enquanto eu estiver nesse mundo, você não vai estar sozinho. Nunca. Nossos pais... são de outro tempo. De outra formação. Vão ter mais dificuldade de entender? Vão. Mas tenta não odiar eles por isso. Tenta entender. Porque, no fundo, eu não acho que eles vão te abandonar, não. Vão se chocar. Mas se você continuar sendo esse cara que é — e eu sei que vai — com o tempo eles também vão enxergar.

Ele me apertou mais uma vez e falou, quase sussurrando:

— Você podia estar vivendo isso escondido, se quisesse. Ninguém saberia. Mas você é tão verdadeiro, tão foda... que isso tá te quebrando. Porque você quer viver com verdade. Por isso eu te admiro. Por isso eu te amo, meu irmão.

Eu abracei o Henrique mais uma vez, um abraço forte, silencioso, onde encontrei um pouco da paz que eu estava precisando. Quando me afastei, ainda enxugando o rosto na manga da camisa dele, encostei de leve na porta do carro, olhei pra ele e tentei sorrir.

— É foda, velho... — falei, com a voz um pouco trêmula. — Eu nem aprendi a lidar com isso ainda direito, e já tô pensando aqui... essa cena toda que a gente fez aqui, qualquer pessoa que passou deve ter achado o quê? “Olha ali, casalzinho brigou, agora tá se resolvendo.”

Eu ri sozinho. Era estranho, mas me ajudava a respirar.

— Acabei assumindo algo cedo demais, né? Pra quem não nos conhece...

Henrique abriu um sorriso largo e debochado.

— Que se foda, Pedro. Deixa pensarem o que quiserem. Tu tem que parar de se importar tanto com os outros, cara. Tu é foda. Olha esse carrão. Olha a tua vida. Tudo que tu construiu com esforço, com verdade. Tu não precisa da aprovação de ninguém. Só da tua paz. E se acharem que somos um casal? Melhor ainda. Pelo menos eu tô pegando um cara bonitão com um carro do caralho, falou rindo, me dando um soco leve no ombro.

A gente riu junto. Foi bom rir depois de tanto peso.

— Mas agora vamos pra casa, véi. Vai tomar um banho. Fala com tua esposa. Fica com aqueles moleques lindos que tu precisa levar lá em casa pra brincar com o Caio. Ele adora eles. E, por favor, faz o que eu te falei. Você já tá sentindo, né? Atração, vontade, essa bagunça toda na sua mente. Vive isso. Mas vive do jeito certo. Com calma. Com responsabilidade.

Henrique então parou um pouco e me olhou com um carinho que doía.

— O que eu quero... o que eu quero é que você tenha certeza. Pra não largar nada agora e depois se arrepender. E pra saber, sem sombra de dúvida, se é isso mesmo que você quer. E eu vou tá com você. Sempre.

Eu fiquei ali, encostado na porta do carro, olhando pro Henrique com um sorriso meio torto no rosto, ainda com os olhos um pouco vermelhos, umedecidos. Ele falava e brincava, e no meio das palavras dele tinha tanto amor, tanta leveza, tanta verdade... que aquilo me quebrava ainda mais, mas de um jeito bom. De um jeito que aliviava, não que pesava. E pela primeira vez naquela noite, eu senti que tava seguro.

Foi inevitável pensar em tudo que a gente viveu. Sempre fomos muito próximos, mas eu nunca tinha parado pra perceber o quanto ele me admirava desse jeito. Eu sabia que ele confiava em mim. Que ele me via como irmão mais velho, como um apoio. Mas eu nunca imaginei que fosse como referência, como exemplo de homem, como espelho.

Naquela noite, ali mesmo, parado ao lado do carro, foi como se uma parte de mim tivesse se revelado não só pra ele, mas pra mim também. Como se eu finalmente tivesse coragem de olhar pra dentro, de enxergar as rachaduras, as vontades, os desejos... e ainda assim me reconhecer. Me perdoar. Me acolher.

Porque eu sempre fui esse cara centrado. Sempre fui visto como alguém que dá conta, que resolve, que tem controle. Frio, talvez. Controlado, com certeza. Só que nessa noite... eu desabei. Me permiti desabar. E não me arrependo. Porque isso também sou eu.

Eu sou esse ser humano que sente, que ama, que deseja, que duvida. Que erra. Mas que tem coragem de tentar entender o que tá sentindo. E, ali, olhando pro Henrique rindo, brincando, me dando força sem me julgar eu soube que, aconteça o que acontecer, eu não tô sozinho. Eu tenho ele. E no pior dos cenários... isso já me basta pra levantar de novo.

A volta foi tranquila. Henrique seguiu pela orla, como eu tinha sugerido. As luzes da cidade se misturavam com os faróis dos carros e com aquele brilho amarelado dos postes que marcavam a Avenida Oceânica. A brisa do mar entrava suave pela janela entreaberta, e por um instante eu fechei os olhos. Sentia o cheiro salgado da maresia, o som distante das ondas quebrando nas pedras, o rádio ligado baixinho passando alguma música leve que combinava com o silêncio entre nós.

Eu estava calmo. Pela primeira vez desde que tudo começou, eu estava, de fato, calmo.

A estrada molhada refletia a luz dos faróis, e Henrique dirigia com a mão esquerda no volante e a direita apoiada na janela. Às vezes ele olhava pra mim de canto, como quem quer garantir que eu estava mesmo bem. E eu só retribuía com um aceno leve de cabeça. Estava.

— Tô bem, Henrique. De verdade. — falei em certo momento, quebrando o silêncio.

— Eu sei que tá, Pedro. Você só precisava colocar pra fora. — ele respondeu sem tirar os olhos da estrada.

Depois disso, ele comentou algo sobre o barulho do mar ser terapêutico, e eu concordei. À medida que nos aproximávamos de casa, aquela sensação de nó no peito foi se dissolvendo devagar. Ainda havia incertezas, claro. O que aconteceria depois? O que eu diria pra minha esposa? O que seria de mim se tudo viesse à tona? Mas naquele momento, entre a confiança no olhar do meu irmão e o vento da cidade que eu tanto amava, eu encontrei um refúgio.

Henrique entrou com o carro no condomínio. Passamos pela portaria, seguimos até a garagem. Estacionou com calma na vaga que já conhecia. Desligou o carro e me olhou.

— Vamos até lá embaixo pegar o meu Uber?

— Vamos — respondi.

Descemos juntos e seguimos caminhando lado a lado até a portaria do prédio. O vento agora estava mais frio. Henrique mexeu no celular, pediu o Uber e guardou o telefone no bolso.

— Você sabe que pode contar comigo, né? A qualquer hora. E aparece lá em casa, porra. Não mora tão longe assim. Brotas não é em outro estado — ele riu. — E leva os meninos. Meu moleque sente falta deles.

— Tá certo — falei, tentando sorrir.

Ele me olhou com aquela cara que misturava irmão mais novo e melhor amigo. Me puxou pra mais um abraço rápido e falou:

— Se cuida, viu? E vai com calma. Passo a passo. Vai entendendo. Mas vive isso aí. Vive de verdade.

Assenti, sem conseguir dizer muita coisa.

Quando o Henrique entrou no Uber, eu ainda fiquei ali parado por alguns segundos, observando o carro se afastar. Não sei explicar... era como se aquela despedida tivesse sido uma espécie de marco. Uma pausa entre tudo que eu vinha carregando no peito e o que eu precisava começar a encarar dali em diante.

Então eu virei e voltei pelo estacionamento, caminhando lentamente. As luzes amareladas refletiam no chão úmido de sereno. Fui até o meu carro, conferi se estava trancado, eu sabia que tinha trancado, mas mesmo assim precisava checar. Toquei na maçaneta, pressionei o botão da chave mais uma vez, escutei o som da trava reforçando minha segurança. Um ritual bobo, mas que me dava um mínimo de controle.

Guardei a chave no bolso, respirei fundo e caminhei até o elevador. Enquanto esperava, tirei o celular do bolso. Tinha mensagem do Daniel.

“Tá tudo bem? Foi tão ruim assim que você se arrependeu?”

Suspirei. Li e reli algumas vezes. E pela primeira vez desde que começamos a conversar, eu não digitei. Resolvi gravar um áudio. Não porque era mais fácil, mas porque eu precisava que ele ouvisse minha voz.

Falei baixo, firme:

“Eu não reagi bem ao que fiz, mas você não tem culpa. Tem algumas coisas que estão sendo complicadas pra mim, e lidar com isso é uma delas. Então eu precisei sair com meu irmão, desabafar, falar o que eu tô passando... Mas eu gostei de te ver hoje. Gostei dos momentos que a gente teve. Você parece ser um cara muito legal. Espero que esteja tudo bem aí, que você tenha uma boa noite. Uma excelente noite, tá?”

Enviei.

Ouvi o próprio áudio em silêncio, por inteiro, antes de guardar o celular no bolso.

O elevador chegou. Entrei.

A porta fechou.

E ali dentro, sozinho, tudo voltou a pesar.

Já estava escrito que eu viveria aquilo. O medo, a incerteza... isso sempre ia surgir. Não dava pra esperar que fosse simples. Era tudo muito novo pra mim, novo e profundo. Mas eu também não queria ser impulsivo. Nem deixar a emoção atropelar tudo, como o Henrique falou. Não queria transformar algo intenso em mais uma coisa à toa. Não depois de tudo o que vivi nos últimos dias.

Eu precisava entender o que o Daniel estava buscando. O que eu mesmo estava buscando.

Tudo acontecia tão rápido. Pensamentos rápidos demais. Enquanto eu subia no elevador, que parava em alguns andares, eu mal reparava nas pessoas entrando. Só respondia um “boa noite” automático, como quem ainda não voltou pro próprio corpo. Minha cabeça ainda estava na garagem, na conversa com meu irmão, no toque do Daniel, no beijo. No que podia vir depois.

Quando o elevador chegou no meu andar, respirei fundo e caminhei até a porta. Coloquei a chave, entrei. A casa estava em silêncio. A luz da sala ainda acesa, minha esposa sentada no sofá, assistindo alguma coisa na TV. Sorri, como se tentasse convencer a mim mesmo de que tudo estava sob controle. Dei boa noite, me aproximei, beijei o rosto dela com carinho e perguntei como tinha sido a noite. Ela respondeu com a mesma simplicidade de quem sabe que está tudo bem.

Entrei no quarto dos meninos. Me abaixei ao lado da cama do mais novo, passei a mão de leve no cabelo dele e fiquei ali por alguns segundos, só observando a respiração calma, o peito subindo e descendo num ritmo tranquilo. No outro quarto, o mais velho estava enrolado no lençol, dormindo de lado, com o rosto sereno. Aquela cena me trouxe paz. Mas também um certo aperto no peito.

Saí dali devagar, com cuidado pra não fazer barulho, e fui pro meu quarto. Encostei a porta com cuidado. Foi quando lembrei: tinha deixado a mochila e o notebook no carro.

Olhei pro relógio, pensei em descer pra buscar, mas... não tive forças. Não era cansaço físico. Era outra coisa.

Fui direto pro banheiro, peguei uma toalha limpa no armário e entrei no chuveiro. A água caiu morna sobre os ombros, escorrendo devagar pela pele. E foi ali, debaixo da água, com os olhos fechados e a respiração presa, que tudo me atingiu de vez.

Por mais que eu tentasse seguir em frente como se tudo estivesse no lugar, alguma coisa dentro de mim já tinha mudado. Tinha mesmo.

E a pergunta que ecoava, como um sussurro cada vez mais alto, era uma só:

E agora, o que é que eu faço com tudo isso?

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Continua

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Hoje, sábado, 16/08, consegui publicar mais uma parte. Quero já me desculpar de antemão por não ser um texto tão longo quanto os anteriores. Estou realmente com um certo déficit de tempo, mas farei questão de continuar aqui até chegar ao desfecho que pretendo dar.

Quero agradecer pelos tantos comentários incríveis, profundos e sinceros que vocês deixam. Eu leio todos, e acho incrível ver a identificação e o carinho que vocês têm pela minha história. Comecei a escrever aqui como uma forma terapêutica, para aliviar a sensação de que eu ia enlouquecer se não colocasse tudo pra fora. Mas, no processo, acabei tomando gosto em compartilhar essa experiência com vocês.

Sobre a ideia de o Daniel colocar a versão dele dos fatos: eu achei fantástica! Aqui vai um detalhe — ele não fazia ideia de que eu estava escrevendo isso. Quando li a sugestão de vocês, gostei tanto que achei justo contar pra ele. Mostrei, ele leu tudo, ficou emocionado, feliz e adorou a ideia. Só fez uma condição: que eu corrigisse o texto dele (um pouquinho folgado, né?). Mas eu farei, sim! Já disse a ele que pode ir escrevendo, que assim que eu finalizar a minha parte, ele pode começar a dele.

Gente, reforço mesmo meu agradecimento a todos vocês que leem, que deixam mensagens e que aguardam cada novo relato. Muito, muito obrigado!

Um forte abraço a todos e até a próxima!

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Comentários

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É ESTÁ MAIS DO QUE PROVADO QUE O MEDO NOS PROTEGE MAS POR OUTRO LADO TAMBÉM NOS IMPEDE DE VIVENCIARMOS SITUAÇÕES NOVAS. DA MESMA FORMA QUE CULPA E DESEJO TAMBÉM NÃO COMBINAM ENTRE SI. UM DETALHE ME CHAMOU ATENÇÃO, NO TEXTO HENRIQUE DIRIGE COM A MÃO ESQUERDA E A MÃO DIREITA NA JANELA, ISSO PRESSUPÕE QUE O VOLANTE DO CARRO É DO LADO DIREITO COMO EM ALGUNS PAÍSES DA ÁSIA. RSSSSSSSSSSSSSSSSSSS MERO DETALHE. CONTINUE, ESTÁ EMOCIONANTE. E O TAMANHO DESTE CAPÍTULO ESTÁ PERFEITO. CAPÍTULOS MUITO LONGOS TORNAM-SE CANSATIVOS DE SE LER.

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Vc me fez chorar seu danado, muita semelhança com o que vivi e que ainda vivo nas minhas recordações , foram 35 anos que vivemos juntos e hoje só a saudade é minha companheira , que Deus te abençoe e posta logo, um grande abraço

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Você escreve com tanta verdade que ela tranporta para as emoções, a verdade nua e crua dita,sentida e principalmente vivida faz desse conto tão maravilhoso. O dilema o medo,o susto,o abraço, o porto seguro enfim a engrenagem da vida vivida é surreal como os sentimentos perpassam a alma,como ser verdadeiro consigo mesmo seja tão libertador quanto inovador, que nem sempre será compreendido por aqueles que nos cercam. Afinal a vida é feita de escolhas, de experiencias , e acima de tudo de amor viva o amor.

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Eu sinto todos os seus relatos, mas esse em especial me pegou demais. Sou gay, tenho um relacionamento com outro homem, mas quando adolescente em um fato ocorrido, meu irmão mais velho me chamou para um papo a sós e me perguntou sobre minha sexualidade, pra mim foi um susto imenso, eu pensei que ele iria me reprovar, brigar, até agredir, mas ele foi totalmente um pilar pra mim, foi um herói, me estendeu a mão. Ler sobre esse seu momento com o seu irmão me levou à aquele dia e eu chorei aqui. Sua escrita é linda, seus detalhes são incríveis e eu estou amando acompanhar isso. Agora já ansioso pela história na visão do Daniel, mas muito mais ansioso para conhecer o desfecho da sua.

Obrigado por compartilhar isso conosco!

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Acabei de ler todos os capítulos de uma assentada. É raríssimo encontrar aqui uma história tão digna e elevada.

Vou fazer-lhe uma confissão. O meu percurso foi o oposto do seu. Comecei pela minha homossexualidade que me satisfazia sexualmente em pleno. Senti que era impensável seguir por aí e abdiquei de mim próprio optando por um casamento que me fizesse sentir mais seguro.

A imagem que tenho dos bissexuais é muito preconceituosa. Sinto que a maioria vive vidas duplas impondo o próprio ego a tudo e todos e sem a mínima consideração por quem tem a pouca sorte de os amar. São incapazes de amar e só manipulam a esposa e os amantes com total desprezo por todos. O seu único objetivo é a satisfação pessoal.

A sua história, embora com um desfecho oposto à minha, revela uma integridade que me cativa. É a exceção que confirma os meus preconceitos.

Dou-lhe os meus parabéns e a certeza de que cativou mais um leitor. Além do português escorreito que nos delicia ao lê-lo, por conseguir expor-nos com uma honestidade tão assertiva como desconcertante todos os seus sentimentos.

E, ainda por cima, vinda de um brasileiro com formação acadêmica em exatas. É uma exceção tão rara e digna de apreço que me cativa ainda mais.

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Poxa vida! Com o ritmo da sua escrita, é impossível não sentir o que o Pedro tá sentindo...é complicado lidar com o que vc não pode controlar ou entender e, ainda assim, sentir que é o certo. Deve ser coisa de engenheiro...rs

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