Assim que terminamos de comer, Francisco juntou os pratos, enxaguou o dele na pia e me olhou com um meio sorriso cansado.
— Obrigado pela companhia… e por ficar. Eu sei que cancelei seu encontro com aquele lá — ele disse, sem me encarar direito. — Desculpa por isso.
— Tudo bem — respondi com honestidade.
Ele assentiu, enxugou as mãos numa toalha pendurada e se afastou.
— Vou pro quarto... Boa noite, Samu.
— Boa noite.
Fiquei na cozinha, mexendo lentamente o resto do macarrão na panela, como se precisasse de uma desculpa pra continuar ali, pensando. Foi quando ouvi passos suaves vindo do corredor. Minha mãe, Helena, reapareceu.
Ela parou perto da mesa e ficou me observando em silêncio por um tempo. Eu senti. Aquele tipo de silêncio que só mãe sabe fazer pesar, mesmo sem dizer uma palavra.
— Tá tudo bem? — perguntei, fingindo desatenção.
Ela cruzou os braços, encostando na parede, com um olhar firme, mas sem julgamento.
— Você tem certeza do que está fazendo?
A pergunta veio seca. E mesmo que ela não dissesse o nome dele, eu soube. Era sobre o Francisco.
Demorei um pouco pra reagir. Soltei a colher devagar na pia e me virei pra ela.
— Eu… — comecei, mas as palavras não vieram.
Ela deu um passo à frente, os olhos cheios de cuidado.
— Eu sempre vou te apoiar, filho. Sempre. Mas ele é o filho do homem com quem eu me casei. Já tem tensão ali entre eles. Já tem rusga.
— Eu sei, mãe — sussurrei, a garganta apertada.
— Só quero que você pense. Pense se ele está preparado pra isso. Porque você não merece viver escondido, à mercê das confusões dos outros. Amar já é difícil. Amar alguém que não se permite também… é duro demais.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo o peso daquilo que eu já vinha tentando ignorar.
— Eu amo o Francisco, mãe. Mas não quero viver dentro da confusão que existe na mente dele. Eu só… eu só queria que fosse simples.
Ela se aproximou, tocou meu rosto com carinho.
— E está mudando? Você sente que ele quer isso de verdade?
Assenti devagar.
— Sinto. Ele ainda está cheio de medo, mas… ele me olha diferente. Ele quer tentar. E eu quero estar ali quando ele conseguir.
Ela me puxou num abraço apertado.
— Obrigado, mãe — murmurei, sentindo o peito pesar e aquecer ao mesmo tempo.
Fiquei ali, no colo dela, por mais alguns segundos, antes de me soltar devagar e seguir pro meu quarto.
Naquela noite, deitei com o corpo cansado, mas o coração em alguma linha tênue entre esperança e incerteza.
***
Manhã seguinte, as aulas passaram rápido, ainda que minha cabeça estivesse a mil. Logo após a última matéria, saí da sala e vi Lucas encostado na parede do corredor, com um copo de café na mão e aquele sorriso fácil que ele sempre usava como armadura.
— Ei — ele disse, acenando com a cabeça.
— Ei — respondi, me aproximando.
— Tá com fome? Ou ainda tá de ressaca emocional da semana?
— Acho que dá pra juntar os dois.
Ele riu.
— Então vamos. Conheci um lugar novo que abriu do lado do campus. Não é gourmet demais, mas a comida é honesta e o garçom é gato.
— Você não perde uma — ri, mais leve.
— Se perder, a vida perde a graça, Samuel.
Seguimos caminhando lado a lado. Por um instante, a presença dele me trouxe um alívio — como se ele soubesse exatamente a medida do que oferecer: espaço e presença. Sem cobranças.
Lucas mastigava devagar, os olhos claros alternando entre o prato e o meu rosto. Era como se ele soubesse que eu estava me enrolando pra dizer alguma coisa, mas respeitava o tempo que eu precisava. Só depois do segundo copo de suco que consegui falar.
— Tô confuso — soltei, mais pra mim mesmo do que pra ele.
Lucas levantou os olhos, paciente.
— Sobre o quê?
Suspirei, largando o garfo ao lado do prato.
— Sobre tudo. O que eu senti, o que ainda sinto. Eu achei que tinha superado, que já tava seguindo em frente, mas aí ele aparece de novo… e é como se o inverno inteiro estivesse esperando por esse reencontro.
Lucas assentiu devagar, como quem já tinha ouvido algo parecido antes — talvez de outras pessoas, ou talvez do silêncio que habita a gente quando ama quem não sabe amar direito.
— Você ainda gosta dele?
— Eu acho que nunca parei. Mas tenho medo de me entregar e me machucar. Quero algo leve.
— E ele?
— Agora ele diz que quer tentar. Que não quer mais fugir.
Lucas ficou em silêncio por alguns segundos, depois sorriu de leve, aquele sorriso dele que parecia sempre saber um pouco mais do que deixava escapar.
— O amor não é uma linha reta, fofo. Às vezes ele dá voltas tão grandes que a gente nem percebe que está voltando pro mesmo lugar. E às vezes... é só o ponto final que parece vírgula.
— E você? — perguntei, encarando ele. — Fica chateado por eu estar confuso?
— Não. Fico chateado se você fingir que não está. Eu gosto de você. Bastante. Mas gosto mais ainda da pessoa que você é tentando lidar com o que sente. E se precisar de tempo pra entender... eu espero. Só não mente pra si mesmo.
Aquela frase me acertou fundo. Sorri, sincero.
— Obrigado por ser tão maduro.
— Eu sou libriano, Samuel. A gente tem fama de equilibrado.
Caímos na risada juntos, quebrando por um instante o peso das últimas semanas. Pagamos a conta e caminhamos de volta pro carro dele, lado a lado, com o vento frio lambendo as laterais da rua. Era um dia claro, mas a cidade parecia quieta demais. Ou talvez fosse só a expectativa me apertando o peito.
Lucas desligou o motor em frente à minha casa.
— Quer subir? — perguntei, sem pensar demais.
Ele ergueu uma sobrancelha, mas sorriu.
— Claro. Pode ser bom terminar a conversa.
Subimos os degraus da frente trocando frases leves. Quando entramos, o som dos nossos passos ecoava pelo corredor tranquilo. Subíamos a escada devagar, Lucas atrás de mim, até que uma voz seca nos interrompeu.
— Samuel.
Meu corpo travou. Virei o rosto e vi Francisco parado no alto da escada do outro lado do corredor. Camiseta cinza, cabelo bagunçado, olhar firme e tenso. Os olhos dele foram de mim até Lucas, depois voltaram a mim.
— Quem é o cara?
Lucas respondeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
— Lucas. Amigo do Samuel. E você deve ser o irmão dele, né?
Havia ironia suficiente no tom pra criar uma rachadura no chão. E a escolha da palavra “irmão” foi tão afiada quanto qualquer faca.
Francisco desceu um degrau e estendeu a mão, sem tirar os olhos dele.
— Nós não somos irmãos. Nem de sangue, nem de criação.
Lucas sorriu, sem baixar a guarda, mas apertou a mão que foi oferecida. Francisco apertou de volta. Forte demais. Rápido demais.
A tensão entre os dois era quase palpável. Os olhos de Francisco diziam o que ele ainda não tinha aprendido a dizer com palavras: ele não queria que Lucas estivesse ali.
Lucas soltou a mão e olhou pra mim.
— Acho melhor eu ir. A gente se vê depois?
Assenti, meio travado.
— Me manda mensagem — falei.
Ele desceu as escadas devagar, mas não sem antes lançar um último olhar pra Francisco, e depositar um beijo no meu rosto, como quem sabe que está lidando com um homem ainda em conflito com seus próprios limites.
Assim que ele saiu, o silêncio se instalou.
Francisco cruzou os braços e encostou na parede.
— Você ainda tá saindo com ele? Achei que eram só amigos.
Eu respirei fundo, tentando escolher as palavras com cuidado.
— Eu tô tentando entender o que eu quero. E você... também tá, lembra?
Ele não respondeu. Só ficou ali, parado, como se cada palavra tivesse sido uma nova ferida. Mas agora eu não podia estancar todas elas sozinho.
— Francisco, se quiser conversar... a porta tá aberta. Mas se for pra medir quem tem mais direito sobre mim, você vai perder.
Francisco não respondeu de imediato. Ficou me encarando com aqueles olhos escuros e intensos, como se estivesse travando uma luta por dentro. Depois, se aproximou devagar. Cada passo dele era como um trovão silencioso no meu peito. Parou tão perto que eu pude sentir o calor do seu corpo e o cheiro da sua pele — aquela mistura de sabonete amadeirado, suor leve e algo que era só dele.
A voz veio baixa, rouca.
— Eu sei o quanto te magoei, Samuel. E tô cansado de ficar pedindo desculpas por isso. Tô cansado de fingir que não te quero, que não sinto a sua falta cada segundo que você tá longe de mim.
Engoli em seco, mas não disse nada. Meus olhos buscaram os dele, mas Francisco estava olhando minha boca.
— Você vai voltar pra mim — ele continuou. — E quando isso acontecer... você vai pagar por cada noite que me deixou dormindo sozinho. Vai pagar cada centímetro de distância na cama. E eu vou fazer questão de te lembrar, com cada toque, cada beijo, cada gemido, que você é meu.
O sussurro dele veio perto demais do meu rosto. Fechei os olhos por reflexo. O ar entre nós parecia ter se condensado, como se cada partícula soubesse que estávamos prestes a ceder de novo. Meu coração batia forte demais. Minhas pernas estavam fracas demais.
Francisco não me beijou.
Ele apenas ficou ali por um segundo, respirando contra minha pele.
E então, antes de descer a escada, jogou a última faísca:
— E aquele Ken de Taubaté? — disse com um sorriso debochado. — Ele não vai mais encostar no que é meu.
Desceu calmamente, como se tivesse vencido alguma batalha interna.
Fiquei ali parado, o corpo ainda reagindo à presença dele, o cheiro dele ainda colado em mim, o desejo latejando no fundo da garganta.
E dessa vez, eu não tinha certeza de que conseguiria resistir por muito mais tempo.
***
A noite estava fria, mais uma daquelas típicas do final do inverno, em que o vento parecia soprar memórias pelas frestas da janela. Eu estava no quarto, com as luzes apagadas e o brilho da tela da TV pintando reflexos azuis no teto. Tentava assistir alguma coisa, mas não lembrava sequer do nome da série.
Foi quando ouvi a porta abrindo.
Francisco entrou sem bater.
Veio descalço, só com uma samba-canção escura e o peito nu, marcado pelo frio e pelos silêncios que ele costumava guardar. Se deitou na cama sem falar nada, como se o gesto fosse natural, como se nunca tivesse me deixado. O colchão afundou sob o peso dele e o quarto, de repente, ficou pequeno demais para tanto calor reprimido.
Ficamos ali. Em silêncio.
Ele colocou as mãos atrás da cabeça, se esticando, e quando virei o rosto pra encará-lo, percebi o volume evidente entre suas pernas. Ele também percebeu. Mas não desviou, não cobriu, não fingiu. Pelo contrário.
Passou a mão lentamente por cima da cueca fina, apertando. Marcando ainda mais. Como se dissesse: “olha pra mim”. Como se me testasse.
A respiração pesou.
Ele fez de novo. E de novo.
Até que eu levantei, sentindo o corpo inteiro latejar, e fui até o banheiro. Tranquei a porta com raiva. Olhei meu reflexo no espelho. Os lábios trêmulos, o coração aos pulos. Eu não estava mais em dúvida.
Estava decidido.
Quando saí… a cama estava vazia.
Francisco tinha ido embora.
***
Acordei tarde. O relógio marcava quase 10h. A luz entrava pelas frestas da persiana, dourando o chão do quarto como se o inverno estivesse finalmente se despedindo.
Desci em silêncio, ainda com a cabeça cheia da noite anterior. A casa parecia vazia, mas, ao me aproximar do corredor do escritório, vozes ecoaram.
— …você só pensa em você! Sempre foi assim! — era a voz do Francisco, rouca, alta, engasgada de raiva.
Parei. Encostei na parede, ouvindo sem respirar.
— Me chamou de inútil, de moleque mimado, como se eu nunca tivesse me esforçado pra nada! Eu era só um garoto, pai. E você quebrou tudo em mim com aquela última conversa!
— Eu não quero mais brigar, Francisco — respondeu Antônio, mais baixo, cansado. — Só quero…
— Quer o quê? Que eu finja que nada aconteceu? Que não carrego isso até hoje? Você sumiu. E quando voltou, esperava que eu estivesse inteiro. Eu não tô inteiro.
O silêncio que se seguiu pesou mais do que os gritos.
Francisco continuou:
— Eu só queria um gesto seu. Um pedido de desculpas. Um abraço. Alguma porra de sinal de que você se importa. Mas você age como se fosse tarde demais pra consertar qualquer coisa.
— Não é tarde. Ainda dá tempo — disse Antônio, com uma pausa antes de continuar. — Se você deixar.
Por um momento, me perguntei se eu devia me aproximar, entrar, falar algo. Mas fiquei ali, quieto, como se qualquer interferência pudesse desfazer o momento. Francisco, aos poucos, estava dizendo tudo que nunca teve coragem. E, de algum modo, aquele rompimento com o pai… também era sobre nós.
Sobre o quanto ele precisava se desfazer do passado pra construir algo no presente.
Eu respirei fundo, me afastando em silêncio. Sabia que aquela conversa ia marcar os próximos passos — entre eles. E entre nós também.
Porque se tem uma coisa que eu aprendi com o Francisco, é que o silêncio, às vezes, fala mais do que qualquer palavra.
E naquele dia, pela primeira vez, ele estava finalmente quebrando o dele.
_ temos capítulos atualizados no Wattpad e uma nova história chegando. @ViictorCorrea
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